Um novo internacionalismo

Dezembro- 2020

Yanis Varoufakis, economista, membro do partido SYRIZA, da Grécia, tornou-se mundialmente conhecido desde quando fora ministro das finanças do governo de esquerda grego em 2015. Esteve à frente dos embates que por fim levaram infelizmente à capitulação do povo grego perante as instituições oficiais centrais do sistema financeiro internacional. Desde então Varoufakis voltou-se para uma riquíssima militância e produção intelectual quanto à crise global do sistema capitalista e às vias de construção de um mundo pós-capitalista, democrático e solidário.

Juntou-se a vários intelectuais e lideranças políticas do mundo em prol da organização de uma "Internacional Progressista" - recentemente criada - com vistas à coordenação mundial das forças progressistas, seja na pesquisa e conhecimento do movimento, crises e transformações do capitalismo, seja na elaboração de estratégias e planos de ação coordenados de amplas forças progressistas ao redor do mundo. Conforme Varoufakis:

Se a nossa Internacional Progressista simplesmente criar espaço para a discussão aberta nas praças das cidades (como fez o Occupy Wall Street há uma década) ou apenas buscar emular esforços como o Fórum Social Mundial, ela acabará novamente fracassando. Para ter sucesso, precisaremos de um plano de ação comum e de uma estratégia de campanha incomum, que incentivem os progressistas ao redor do mundo a implementarem esse plano. Por último, mas não menos importante, precisaremos da vontade compartilhada para visualizar uma realidade pós-capitalista.

Por sua vez, este Blog tem abordado reiteradamente a temática da crise do capitalismo no Sec. XXI que aponta em direção a um novo  internacionalismo, com um novo “intelectual coletivo” nas condições contemporâneas de um mundo integrado e conectado, força dirigente das massas oprimidas para a superação do capitalismo. São exemplo a seguintes publicações do Blog:

 “A época histórica. Fim da história?” (2017);

“Bernie Sanders em Davos – propõe um novo movimento progressista mundial” (2018);

“Fadiga do Capitalismo” (entrevista de Jean Ziegler - 2019).

No artigo a seguir, Varoufakis analisa com seu grande conhecimento da situação concreta, as manobras defensivas do capital financeiro internacional, reveladoras de seus poderes econômico e político, em prejuizo de grandes massas da população. Recapitula a ascenção dos movimentos populares diante da crise. Num primeiro momento sob as bandeiras da esquerda. Mas em seguida, diante do seu refluxo e fracasso, abrindo caminho à ascenção das forças de direita mais reacionárias.

Yanis Varoufakis

Segue o artigo.

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Plano de ação para a Internacional Progressista

Yanis Varoufakis*

Nossa era será lembrada pela marcha triunfante do autoritarismo e seu rastro, em que a vasta maioria da humanidade passou por dificuldades desnecessárias e os ecossistemas do planeta sofreram uma destruição climática que podia ter sido evitada. Por um breve período — que o historiador britânico Eric Hobsbawm descreveu como “o curto século 20” — as forças do establishment se uniram para lidar com os desafios à sua autoridade. Foi uma fase rara, em que as elites tiveram que enfrentar um leque de movimentos progressistas, todos buscando mudar o mundo: social-democratas, comunistas, experimentos de autogestão, movimentos de libertação nacional na África e na Ásia, os primeiros ecologistas, radicais, etc.

Cresci na Grécia de meados da década de 1960, governada por uma ditadura de direita estimulada pelos Estados Unidos, sob o comando de Lyndon Johnson (cujo governo foi um dos mais progressistas internamente, mas que não hesitou em apoiar fascistas na Grécia ou em bombardear o Vietnam). O medo e a aversão ao populismo de direita que encontramos hoje estampado nas páginas do New York Times, simplesmente não existiam naquela época.

As coisas mudaram depois de 2008, o ano em que o sistema financeiro ocidental implodiu. Após 25 anos de financeirização sob o manto ideológico do neoliberalismo (entenda mais no artigo de Ann Pettifor sobre o sistema financeiro global), o capitalismo global teve um espasmo semelhante ao de 1929, que quase o deixou de joelhos. A reação imediata dos governos a esta crise, para apoiar as instituições financeiras e os mercados, foi ligar as impressoras dos bancos centrais e transferir as perdas bancárias para as classes trabalhadoras e médias, por meio dos chamados “resgates”.

Essa combinação de um socialismo para poucos e uma rígida austeridade para as massas, desencadeou duas coisas. Em primeiro lugar, deprimiu o investimento real global, pois as empresas sabiam que as massas tinham pouco para gastar em novos bens e serviços. Isso gerou descontentamento entre muitos, enquanto poucos recebiam grandes doses de “liquidez”.

Em segundo lugar, eclodiram inicialmente levantes progressistas — dos Indignados na Espanha e os Aganaktismeni na Grécia, ao Occupy Wall Street e a várias forças de esquerda na América Latina. Esses movimentos, no entanto, tiveram vida relativamente curta e foram tratados de modo eficiente pelo establishment, tanto de forma direta, com o esmagamento da primavera grega em 2015, por exemplo; como indireta, como no enfraquecimento de governos esquerdistas latino-americanos quando caiu a demanda chinesa por suas exportações.

À medida em que as causas progressistas foram sendo eliminadas uma a uma, o descontentamento das massas teve que encontrar uma expressão política. Imitando a ascensão de Mussolini na Itália, que prometeu cuidar dos mais fracos e fazer com que eles se sentissem orgulhosos de serem italianos novamente, testemunhamos a ascensão do que podemos chamar de Internacional Nacionalista, mais claramente expressa nos argumentos de direita alimentando a saída da Grã-Bretanha da União Europeia e nas vitórias eleitorais de nacionalistas de direita: Donald Trump nos Estados Unidos; Jair Bolsonaro no Brasil; Narendra Modi na Índia; Marine Le Pen na França; Matteo Salvini na Itália e Viktor Orban na Hungria.

E assim, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, o grande confronto político deixou de ser entre o establishment e os diversos progressismos, para se tornar um conflito entre diferentes partes do establishment. Uma parte aparece como os baluartes da democracia liberal; a outra, como os representantes do movimento anti-liberal.

Evidentemente, esse choque entre o establishment liberal e a Internacional Nacionalista é totalmente ilusório. Na França, o centrista Macron precisou da ameaça do nacionalismo de extrema-direita de Le Pen, sem o qual ele nunca seria presidente. E Le Pen precisou de Macron e das políticas de austeridade do establishment liberal, que geraram o descontentamento que alimentou suas campanhas. Da mesma forma nos Estados Unidos, onde as políticas dos Clinton e dos Obama, que resgataram Wall Street, alimentaram o descontentamento que criou Donald Trump — cuja ascensão reforça, em um círculo sem fim, as defesas de Clinton e Biden contra alguém como Bernie Sanders. Foi um mecanismo de reforço entre o establishment e os chamados populistas, replicado em todo o mundo.

No entanto, o fato do establishment liberal e a Internacional Nacionalista serem co-dependentes, não significa que o choque cultural e pessoal entre eles não seja autêntico. A autenticidade de seu confronto, apesar da falta de qualquer diferença política real entre eles, tornou quase impossível para os progressistas serem ouvidos, devido à cacofonia causada pelas muitas variantes conflitantes do autoritarismo.

É exatamente por isso que precisamos de uma Internacional Progressista — um movimento internacional de progressistas para conter a falsa oposição entre duas variedades do autoritarismo globalizado (o establishment liberal e a Internacional Nacionalista) que nos prendem em uma típica agenda de negócios que destrói as perspectivas de vida e desperdiça as oportunidades de frear a catástrofe climática.

A questão, então, é: o que uma Internacional Progressista faria? Com que propósito? E por quais meios?

Se a nossa Internacional Progressista simplesmente criar espaço para a discussão aberta nas praças das cidades (como fez o Occupy Wall Street há uma década) ou apenas buscar emular esforços como o Fórum Social Mundial, ela acabará novamente fracassando. Para ter sucesso, precisaremos de um plano de ação comum e de uma estratégia de campanha incomum, que incentivem os progressistas ao redor do mundo a implementarem esse plano. Por último, mas não menos importante, precisaremos da vontade compartilhada para visualizar uma realidade pós-capitalista.

Permitam-me destrinchar esses três pré-requisitos, um a um:

Pré-requisito 1: Um plano de ação progressista comum

Os fascistas e os banqueiros têm um programa comum. Se você conversar com um banqueiro no Chile ou na Suíça, com um apoiador de Trump nos Estados Unidos ou com um eleitor de Le Pen na França, você ouvirá a mesma narrativa. Os banqueiros dirão que a regulamentação e os controles de capital são prejudiciais ao progresso; que a engenharia financeira aumenta a eficiência com que o capital flui para a economia; que o setor privado é sempre melhor na prestação de serviços do que o setor público; que salários mínimos e sindicatos impedem o crescimento ou que as mudanças climáticas só podem ser enfrentadas pelo setor privado.

Por sua vez, a narrativa Internacional Nacionalista é a seguinte: cercas elétricas nas fronteiras são essenciais para preservar a soberania nacional; os imigrantes ameaçam os empregos locais e a coesão social; os muçulmanos, em particular, não podem ser integrados e precisam ser mantidos pra fora; os estrangeiros conspiram com as elites liberais locais para enfraquecer a nação; as mulheres devem ser incentivadas a criar seus filhos em casa; os direitos LGBTQI+ vêm em detrimento da moralidade básica e, por último, mas não menos importante: “Dê-nos o poder de agir de forma autoritária, que nós faremos com que o país volte a ser grandioso e você orgulhoso”.

Os progressistas também precisam de narrativas compartilhadas. Felizmente, sabemos o que deve ser feito: a geração de energia deve transitar maciçamente de combustíveis fósseis para fontes renováveis, principalmente eólica e solar; o transporte terrestre deve ser eletrificado, enquanto o transporte aéreo e o transporte marítimo devem recorrer a novos combustíveis com zero emissão de carbono (como o hidrogênio); a produção de carne deve diminuir substancialmente, com maior ênfase nas culturas orgânicas; e limites estritos ao crescimento físico desde toxinas até cimento são essenciais.

Também sabemos que tudo isso custará pelo menos 10% da receita global, ou quase 10 trilhões de dólares, anualmente – uma soma que pode ser facilmente mobilizada, desde que estejamos prontos para criar instituições para coordenar as várias ações e redistribuir as receitas entre o Norte e o Sul globais. Para conseguir isso, precisamos invocar o espírito do New Deal original de Franklin Roosevelt — uma política que teve sucesso porque inspirou pessoas que haviam perdido a esperança de que existissem maneiras de direcionar os recursos ociosos ao serviço público.

Nosso Green New Deal Internacional terá de utilizar instrumentos de crédito transnacionais e impostos sobre carbono — de modo que o dinheiro arrecadado com a taxação do petróleo possa ser devolvido aos cidadãos mais pobres que dependem de carros a gasolina, a fim de fortalecê-los de modo geral, permitindo, também, que possam comprar carros elétricos. Para aplicar esses recursos em investimentos ecológicos, é necessária uma nova Organização para a Cooperação Ambiental de Emergência, com o fim de reunir a inteligência da comunidade científica internacional em algo como um Projeto Manhattan verde — que vise, em vez do assassinato em massa, o fim da extinção.

Sendo ainda mais ambiciosos, nosso plano comum deveria incluir uma União de Compensação Monetária Internacional, do tipo sugerido por John Maynard Keynes durante a conferência de Bretton Woods em 1944, apresentando restrições bem elaboradas aos movimentos de capitais. Ao reequilibrar salários, comércio e finanças em escala global, tanto a migração involuntária quanto o desemprego involuntário diminuirão, encerrando assim o pânico moral sobre o direito humano de circular livremente pelo planeta.

Pré-requisito 2: Uma campanha incomum

Sem isso, nosso plano comum, o Green New Deal Internacional, permanecerá só no rascunho. E aqui vai uma ideia de campanha: precisamos identificar as empresas multinacionais que abusam dos trabalhadores localmente e atacá-las globalmente, utilizando a grande disparidade de custos para os participantes de, por exemplo, boicotar a Amazon por um dia e os custos dos mesmos boicotes para as empresas-alvo. Boicotes de consumidores globais não são novos, mas agora, usando o poder de megaempresas de plataforma, como a Amazon, contra elas próprias, podem ser muito mais eficazes. Especialmente, em uma segunda fase, eles seriam combinados com ações de greve local envolvendo os sindicatos mais importantes. Essa ação global em apoio aos trabalhadores ou comunidades locais tem um alcance imenso. Com comunicação e planejamento inteligentes, eles podem se tornar uma forma popular de as pessoas no mundo todo compartilharem o sentimento de estar ajudando a tornar o planeta um lugar mais livre e justo.

Claro, para que isso aconteça, nossa Internacional Progressista requer uma organização internacional ágil. O problema das organizações que são capazes de uma coordenação global é que elas, sorrateiramente, reproduzem em si burocracias, exclusão e jogos de poder. Como podemos evitar que o neoliberalismo e o nacionalismo autoritário destruam o mundo sem criar nossa própria variedade de autoritarismo? Reconheço que é mais difícil encontrar a resposta certa para essa pergunta sendo progressistas que rejeitamos as hierarquias, as burocracias e as invasões do paternalismo. Mas temos o dever de encontrá-la.

Pré-requisito 3: Uma visão compartilhada do pós-capitalismo


Consideremos o que aconteceu no dia 12 de agosto de 2020, quando foi divulgada a notícia de que a economia britânica havia sofrido a maior queda de sua história. A Bolsa de Valores de Londres deu um salto de mais de 2%! Nunca tinha acontecido nada comparável a isso. Fatos semelhantes ocorreram em Wall Street, nos Estados Unidos.

Efetivamente, quando a Covid-19 se deparou com a bolha gigantesca na qual governos e bancos centrais têm mantido corporações e instituições financeiras vivas como zumbis, desde 2008, os mercados financeiros finalmente se desvincularam da economia capitalista em seu redor.

O resultado destes desenvolvimentos notáveis é que o capitalismo já começou a evoluir para um tipo de feudalismo tecnologicamente avançado. O neoliberalismo é hoje o que o marxismo-leninismo costumava ser durante os anos 80 soviéticos: uma ideologia totalmente em desacordo mesmo com o regime que a invocou. Após o colapso do bloco soviético em 1991, e do capitalismo financeirizado em 2008, estamos numa nova fase, em que o capitalismo está morrendo e o socialismo se recusa a nascer.

Caso eu esteja certo, mesmo aqueles progressistas que ainda nutrem esperanças de reformar ou civilizar o capitalismo devem considerar a possibilidade de olharmos para além do capitalismo — ou, na verdade, de planejar uma civilização pós-capitalista. O problema é que, como meu grande amigo Slavoj Zizek apontou, a maioria das pessoas acha mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.

Para combater essa falha de nossa imaginação coletiva, em meu livro mais recente, intitulado  Another Now: Dispatches from an alternative present (“Outro Agora: despachos de um presente alternativo”), tento imaginar o que ocorreria se minha geração não tivesse perdido todos os momentos cruciais que a história nos apresentou. E se tivéssemos aproveitado o momento de 2008 para uma revolução pacífica de alta tecnologia, que tivesse nos levado a uma democracia de economia pós-capitalista? Como seria?

Haveria mercados para bens e serviços, já que a alternativa — um sistema de racionamento do tipo soviético, que confere poder arbitrário ao pior dos burocratas — é deprimente demais. Mas, para que um novo sistema seja à prova de crises, há um mercado que não podemos nos dar ao luxo de preservar: o mercado de trabalho. Por que? Porque, se que o tempo de trabalho é reduzido a um bem de aluguel, os mecanismos de mercado inexoravelmente empurram seu preço para baixo, enquanto mercantilizam todos os aspectos do trabalho (e, na era do Facebook, até do lazer). Quanto maior a capacidade do sistema para fazê-lo, menor o valor de troca de cada unidade de produção que ele gera, menor a taxa média de lucro e, em última análise, mais nos aproximamos de uma nova crise sistêmica.

Uma economia avançada pode funcionar sem mercados de trabalho? Claro que sim! Considere o princípio de a cada um funcionário, uma ação e um voto. Alterar a legislação societária de modo a transformar cada funcionário em um sócio igual (ainda que não igualmente remunerado), através da concessão de um voto não negociável de uma pessoa-uma ação-um voto, é tão inimaginável e radical hoje quanto o sufrágio universal parecia ser no século 19. Se, além dessa transformação fundamental da propriedade da empresa, os bancos centrais proporcionassem a todos os adultos uma conta bancária gratuita, passaríamos a ter uma economia de mercado pós-capitalista.

Com o fim dos mercados de ações, a alavancagem da dívida associada a fusões e aquisições também se tornaria uma coisa do passado. A Goldman Sachs e os mercados financeiros que oprimem a humanidade, subitamente deixariam de existir — sem nem ser preciso bani-los. Livres do poder corporativo, livres da indignidade imposta aos necessitados pelo estado de bem-estar social, da tirania dos lucros e do cabo de guerra entre lucros e salários, as pessoas e comunidades podem começar a imaginar novas maneiras de empregar seus talentos e criatividade.

Chegamos a uma bifurcação. O capitalismo está em crise profunda, embora sigamos a caminho da distopia. Somente uma Internacional Progressista poderá ajudar a humanidade a alterar o seu caminho.

LEIA TAMBÉM:

A época histórica. Fim da história?

Bernie Sanders em Davos –propõe um novo movimento progressista mundial

Fadiga do Capitalismo

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(*) Originalmente publicado em 10/06/2020, blog de Varoufakis, https://www.yanisvaroufakis.eu/2020/10/06/how-progressives-could-still-win-the-21st-century-the-correspondent/ Aqui se republica conforme tradução de Simone Paz em Outras Palavras, 09/10/2020.

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Piketty: "Que venha o socialismo!"

Em Junho de 2019, ao introduzir uma entrevista do Prof. Jean Ziegler publicada neste Blog dizíamos que “(...)Carecemos de uma alternativa consistente ao capitalismo, uma proposta elaborada democraticamente que desenhe uma outra sociedade, que garanta a preservação do planeta, a extinção da miséria e a redução das desigualdades.” Agora, em entrevista ao jornal francês “Le Point”, Thomas Piketty lança um novo livro “Que venha o socialismo” no qual retoma o desafio de desenhar uma alternativa democrática ao capitalismo.

Na apresentação da obra, o autor defende que não podemos nos contentar em sermos “contra” o capitalismo ou o neoliberalismo e que é preciso ser “a favor” de algo. Segundo ele, apesar das críticas existentes, socialismo continua sendo o termo mais adaptado para designar a idéia de um sistema econômico alternativo ao capitalismo. Abaixo a reportagem da “Carta Capital”* diz mais sobre tal proposta.

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Em novo livro, Piketty defende socialismo e diz: ‘desigualdade não gera crescimento’

Autor defende que não se deve somente ser contra o capitalismo ou neoliberalismo; é preciso ser a favor de algo.

A revista francesa Le Point desta semana traz uma entrevista com o economista francês Thomas Piketty. O autor do best seller “O Capital no Século XXI” acaba de lançar um livro no qual reúne suas crônicas econômicas publicadas nos últimos quatro anos.

Após a publicação em 2019 de “Capital e Ideologia”, um livro de mais de 1.200 páginas, e de um filme documentário que estreou este ano e cujo título retoma o nome seu best seller, Piketty lança este mês “Vivement le socialisme!”, título que poderíamos traduzir como “Que venha o socialismo!”.

O economista Thomas Piketty

Na apresentação da obra, o autor defende que não podemos nos contentar em sermos “contra” o capitalismo ou o neoliberalismo e que é preciso ser “a favor” de algo. Segundo ele, apesar das críticas existentes, socialismo continua sendo o termo mais adaptado para designar a idéia de um sistema econômico alternativo ao capitalismo.

Nas páginas da revista Le Point o economista francês mais conhecido da atualidade denuncia novamente o que classifica como uma narrativa da desigualdade, imposta ao mundo desde o início dos anos 1980 pelo que ele chama de “revolução de Ronald Reagan”.

Piketty usa o exemplo dos Estados Unidos, que entre 1930 e 1980 aplicaram impostos visando os mais ricos, que chegaram a 90%.

No entanto, relembra o francês, Reagan foi eleito em 1981 e implementou uma reforma fiscal que reduziu os impostos a uma média de 28%.

“Os Estados Unidos são um caso extremo”, diz Piketty. “Eles inventaram um imposto progressivo bastante elevado, como em nenhum outro lugar, mas logo em seguida, com o mesmo vigor, foram no sentido oposto.”

O economista explica que o objetivo da Casa Branca na época era incentivar o crescimento do país, mesmo que isso representasse um possível aumento das desigualdades.

Renda dos americanos caiu pela metade em 30 anos

Ao avaliar a estratégia de Reagan, Piketty argumenta que a ideia do presidente não era absurda, mas não deu certo. “Trinta anos mais tarde, constatamos que os americanos não alcançaram o aumento de renda esperado e, ao contrário, a taxa de crescimento da renda por habitante caiu pela metade entre 1990 e 2020.”

Além disso, os salários dos mais pobres estagnaram – um fenômeno que, segundo o francês, ajudaria a explicar a instabilidade política atual nos Estados Unidos.

“O sistema de desigualdade no qual se construiu a globalização desde os anos 1980 não apenas foi ineficaz para gerar crescimento, como também é cada vez mais insustentável do ponto de vista político. A classe média e os mais pobres não querem mais isso e votam contra a Europa e a globalização sempre que podem”, lança o economista, citando como exemplo o apoio, principalmente entre o eleitorado mais jovem, às propostas de Elizabeth Warren e Bernie Sanders para a criação de uma taxa anual de 8% para os bilionários nos Estados Unidos.

Se inspirar no que deu certo no século 20

Ainda usando o caso norte-americano, Piketty fala da questão da educação como outro parâmetro da desigualdade. Se o crescimento nos Estados Unidos caiu pela metade desde os anos 1980, isso se deve também à estagnação educativa, acusa o economista.

“O país ainda tem grandes universidades, ricas e no topo dos rankings, mas 70% dos americanos mais pobres não têm acesso a uma boa educação. Os Estados Unidos perderam seu avanço histórico nessa área”, aponta Piketty.

O francês utiliza o exemplo da economia norte-americana antes de Ronald Reagan para, como ele mesmo afirma, se basear no que teria dado certo no mundo durante o século 20.

“Eu mencionei o imposto progressivo dos Estados Unidos – que cobra mais dos que ganham mais – porque ele permitiu reduzir muito a desigualdade sem impedir o crescimento, pois a receita gerada – pelos encargos – serviu para investir na educação, na saúde e nas infraestruturas”, detalha o francês.

“A lição que podemos tirar de tudo isso é que correr em busca de cada vez mais desigualdade não é o que gera crescimento econômico”, resume Thomas Piketty nas páginas da revista Le Point.

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(*) Originalmente publicado em Carta Capital-Economia, 9 de outubro de 2020. 

Leia também: Fadiga do capitalismo.

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O Centro está orfão

O recuo de Bolsonaro, refletido na sua manobra de aliança com partidos do Centrão, decorreu da resistência das forças democráticas que o fizeram se afastar da "ala ideológica" de ultra-direita. Nem por isto aquelas forças podem relaxar no esforço de montagem de alianças de centro-esquerda nas eleições de novembro. 

O artigo abaixo, por vias indiretas, aponta pistas para isto.

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O Centro está órfão*

Luiz Carlos Azedo**

Outubro – 2020

O candidato no poder tem vantagens estratégicas e precisa errar muito para perder a eleição. A oposição enfrenta muitas dificuldades para construir uma alternativa convincente.

O presidente Jair Bolsonaro não é mais um líder sem estado-maior. No Palácio do Planalto, consolidou-se um alto-comando formado por oficiais generais de quatro estrelas: Braga Netto (Casa Civil), Luiz Ramos (Secretaria de Governo) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), agora reforçado com a ida do almirante de esquadra Flávio Augusto Vianna Rocha, da Secretaria de Assuntos Estratégicos para a Secretaria-Geral da Presidência, no lugar do ministro Jorge Oliveira. Completam o time os líderes do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE); no Congresso, senador Eduardo Gomes (MDB-TO); e na Câmara, Ricardo Barros (PP-PA), que operam as articulações políticas no Congresso, com apoio dos ministros do Desenvolvimento, Rogério Marinho; da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas; e da Agricultura, Teresa Cristina. O cururu na história é o ministro da Economia, Paulo Guedes, que joga praticamente sozinho.

Luiz Carlos Azedo
Duas batalhas estão em curso no Congresso: uma é a disputa pelo controle da Comissão de Orçamento, entre o DEM e os partidos de Centrão; outra é pela reeleição dos presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que depende da aprovação de uma emenda constitucional pelo Congresso –– muito difícil –– e da aceitação da mudança regimental pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o que é mais difícil ainda. Alcolumbre trabalha abertamente pela permanência no cargo, com apoio do Palácio do Planalto, mas o mesmo não ocorre com Maia, que, inclusive, se declara contra a reeleição. Em qualquer circunstância, porém, o candidato do Palácio do Planalto a presidente da Câmara é o deputado Arthur Lira (AL), líder da bancada do PP.

Bolsonaro se finge de morto nas eleições municipais, mas opera uma estratégia bem pensada de ocupação do centro político, um espaço cada vez mais aberto em razão do esvaziamento das nunca assumidas pré-candidaturas do ex-ministro da Justiça Sergio Moro e do apresentador Luciano Huck. Quando a popularidade de Bolsonaro despencou, em razão da pandemia da covid-19 e das suas próprias trapalhadas, ambos apareciam como possíveis alternativas de poder, inclusive com estruturas partidárias à disposição: o Podemos, no caso de Moro, e o Cidadania, no caso de Huck. Acontece que “o mundo gira e a Lusitânia roda”, como diz o velho reclame de caminhões de mudança. A pandemia virou tudo de pernas para o ar. O governador de São Paulo, João Dória (PSDB), enfraquecido pela crise sanitária, está confinado e, provavelmente, concorrerá à reeleição.

O terreno

Cavalo não passa arreado quando se trata de reeleição. O candidato no poder tem vantagens estratégicas que pesam na balança e precisa errar muito para perder a eleição. A oposição enfrenta muitas dificuldades, precisa construir uma alternativa de poder que seja convincente. Isso não é possível com dissimulação. Moro e Huck estão se inviabilizando por causa disso. Ciro Gomes, o candidato do PDT, que tenta essa construção pela terceira vez, foi completamente contingenciado pelo PT, que manteve a candidatura de Lula, mesmo considerado um ficha-suja, ofuscando, inclusive, a melhor alternativa que a legenda teria: Fernando Haddad, que nas eleições passadas obteve 47 milhões de votos, 44,8% do total, contra 57,7 milhões de Bolsonaro, 55,1% dos votos válidos. Com Ciro emparedado, Lula acredita que o PT terá um lugar seguro no segundo turno contra o presidente. O grande risco é a reeleição ocorrer no primeiro, com o deslocamento de Bolsonaro para o centro. Por isso, ele não faz o menor esforço para alavancar os candidatos bolsonaristas de raiz nas eleições municipais.

Militares classificam os terrenos de acordo com as dificuldades de manobra. O campo que pode ser facilmente atravessado por qualquer lado é considerado acessível, leva vantagem quem ocupa as melhores posições primeiro. É o que está sendo feito por Bolsonaro. Nas eleições municipais, faz um duplo movimento: de um lado, avança sobre o eleitorado de baixa renda, graças ao auxílio emergencial; de outro, tece alianças com os adversários de seu inimigo principal, a esquerda, principalmente no Nordeste. Sua prioridade é impedir que surja uma alternativa de poder ao centro e isolar a esquerda; não é agradar a sua base eleitoral mais ideológica, que não tem alternativa. Como a esquerda é incapaz de se aliar ao centro, a não ser quando recebe apoio eleitoral, a manobra de ocupação de terreno ficou muito mais fácil.

Ninguém se iluda, a política tradicional não morreu. Renasce das cinzas na disputa pelo controle das prefeituras e câmaras municipais, uma tradição que vem desde o período colonial. O MDB é o partido com maior número de candidatos (44 mil), seguido pelo PSD (39 mil) e PP (38 mil); todos estão na base de Bolsonaro e podem emergir das eleições municipais como os maiores partidos. DEM, PSDB, ao centro, e PT, à esquerda (com 30 mil cada), disputam o segundo pelotão. Republicanos e PL, bolsonaristas; e PDT (com 28 mil) e PSB (26 mil), firmes na oposição, vêm a seguir. PTB, PSL, na base de Bolsonaro, e Podemos, ao centro, estão na faixa dos 20 mil. PSC, Solidariedade, Patriota e o Avante, governistas, e Cidadania, na oposição, em torno de 17 mil. Mais abaixo estão a oposição mais à esquerda: PV e o PCdoB (10 mil); PSol e Rede, com menos de 5 mil candidatos.

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(*) Originalmente publicado no Correio Braziliense em 9/10/2020.

(**) Jornalista colunista do Correio Braziliense.

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Tática e manobra

Sergio Augusto de Moraes*

Alfredo Maciel da Silveira*

Setembro/2020

Em maio do ano passado, face às seguidas investidas do governo e de seus asseclas contra as instituições democráticas, dizíamos que o centro de nossa tática para enfrentar e derrotar tais movimentos era “isolar a ala ideológica do governo” (ver “Outra Tática”,neste Blog). Um ano depois Bolsonaro recua e faz aliança com parte do Centrão, negando uma de suas maiores bandeiras eleitorais - não fazer a “velha política” do toma-lá-dá-cá - com vistas a evitar o crescimento das forças que poderiam resultar em seu afastamento.

Quase ao mesmo tempo porém explode no Brasil a pandemia do corona vírus. Os movimentos de rua em defesa da democracia que começavam a encorpar, os democratas de todas as cores que iniciavam aquele movimento, se unem em torno do Ministro Mandetta, da Saúde, pregando o único remédio comprovadamente eficaz para evitar o contágio: o isolamento social. Era e é, até que a ciência nos dê uma vacina eficaz, a única forma de evitar milhares de mortes, principalmente dos mais pobres.

Foi uma batalha permanente contra as “receitas” apregoadas pelo Presidente  que perdura até hoje. Do lado democrata ela foi liderada pelo pessoal da área da saúde, secundada por milhares, talvez milhões de voluntários e apoiada pelos humanistas, pela maioria dos democratas. Aí deu-se uma nova divisão do povo brasileiro: de um lado aqueles que defendiam e aplicavam o isolamento e do outro o grupo de Bolsonaro e a maior parte do comércio, dos serviços e da indústria que viram seus lucros minguarem ou serem reduzidos a pó, secundados por milhões de desempregados e pobres correndo atrás do auxílio governamental. Foi com tais manobras que Bolsonaro conseguiu aumentar seus índices de aprovação nas pesquisas de opinião.

De certa forma foi e continua sendo uma batalha política entre aqueles que privilegiam a vida mesmo em detrimento do PIB.

Mas tal manobra que joga com o desespero e com a ambição pode não ter vida longa. As divergências entre o ministro da economia e o presidente, escancaram as dificuldades da manobra populista e eleitoral do Presidente se mantida a legislação do “Teto de Gastos”. Mudanças nas regras do “Teto” neste ano, por sua vez requerendo emenda constitucional e sob severas restrições de calendário, não encontra apoio em ala relevante do “centro político”, sob a liderança do Presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que exige de Bolsonaro a contrapartida preliminar de desgastes com as reformas administrativa, tributária, e outras reformas da vida estatal que sinalizassem a busca da eficiência e da justiça social no uso do dinheiro público. Note-se também que o Gen. Mourão tem se esmerado na defesa do “Teto” e em elogios a Paulo Guedes através de “Lives” para as cúpulas dos principais bancos privados atuantes no país.

Ao mesmo tempo, o comportamento criminoso de Bolsonaro na pandemia, confrontando governadores, inclusive aliados da direita como Ronaldo Caiado, de Goiás, gerou uma surpreendente convergência e concertação entre praticamente todos os governadores, reforçando a Federação e abrindo um clima de diálogo com conseqüências para o cenário político. Verdade é que diante das manobras de Bolsonaro, ao atrair parte do “Centrão” e de milhões dos desamparados, tudo às vésperas de eleições municipais, faz ver que no jogo partidário a esquerda e o centro democráticos dependem um do outro.

Não por acaso, um veículo de comunicação tipicamente ligado ao centro liberal e democrático como o jornal O Globo, deu espaço a artigo recente do governador do Maranhão Flavio Dino-PCdoB, e a entrevista do governador da Bahia, Rui Costa-PT. Em ambos os casos, os governadores propõem a mais ampla aliança democrática em bases programáticas com vistas às eleições de 2022, antevendo inclusive acordos para segundo turno, de modo a isolar e derrotar a ameaça autoritária, fascista e entreguista sem disfarces do bolsonarismo.

De resto, para uma consistente retomada do desenvolvimento econômico acelerado do país, com a necessária recuperação do investimento público e efetiva derrubada do “Teto de Gastos”, tudo dependerá de uma profunda mudança na correlação de forças nas bases sociais de sustentação dos governos e no seio das sociedades civil e política, com o reconhecimento de erros do passado recente e enfim com o estabelecimento da aliança de centro-esquerda que o país espera desde 1988.

Os sinais dessa aliança parecem já estar à vista e corroboram a proposta que antevíamos há mais de um ano em nosso mencionado artigo “Outra tática”, em particular quanto ao imperativo da mudança na política isolacionista da esquerda petista. Se assim for, a manobra de Bolsonaro terá fôlego curto.

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A direita bandida

O texto abaixo ajuda a desnudar o jogo da direita bandida no mundo e no Brasil. Se os democratas não aprenderem a desmontar suas armadilhas serão derrotados nas próximas eleições.

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A política quântica*

Elimar Nascimento**

Agosto - 2020

O livro de Giuliano Da Empoli, Os engenheiros do caos, é um livro pequeno, mas que produz uma enorme inquietude nos espíritos daqueles que não concordam com o novo populismo, seja ele de esquerda ou de direita. Aliás, em alguns casos, como na Itália, o maior partido populista (Movimento 5 Estrelas) ignora esta distinção e ganha eleitores de uma parte e de outra. Na Alemanha, o partido populista Alternativa para a Alemanha (AFD) e, na França, o Front Nacional de Le Pen fazem o mesmo. Ganham eleitores da direita e da esquerda. Redutos de eleitores comunistas, socialistas e sociais democratas deslocam-se no apoio a estes partidos. Hoje, o AFD é a terceira força política na Alemanha e Le Pen a segunda na França.

Ao final da leitura, tentando visualizar a imagem que fica do livro, veio-me a representação da física quântica. Aparentemente, ela define melhor o que é a configuração da política populista no mundo moderno. A física newtoniana descreve um mundo mecânico, em que uma certa causa produz uma certa consequência. A unidade última das coisas é o átomo, dotado de propriedades estáveis. A física quântica explode o átomo e salpica nosso mundo de paradoxos que desafiam a racionalidade científica. Nela, uma realidade objetiva não pode existir, pois um simples “olhar” muda a trajetória de uma partícula, que pode ocupar dois lugares ao mesmo tempo. Assim, duas verdades podem existir sem que uma invalide a outra. Cada observador determina a sua própria realidade. Esta é a nova configuração da política hodierna, uma política quântica. É sobre esta base, movediça, que se erguem os novos populismos.

 

Elimar Nascimento

No livro, publicado pela Editora Vestígio no Brasil, Giuliano Da Empoli estuda a ascensão do populismo no mundo atual, citando várias situações, entre as quais a de Israel (Benjamin Netanyahu), França (Coletes Amarelos) e Brasil (Jair Bolsonaro). Centra-se, contudo, no estudo de quatro exemplos: Estados Unidos, com a eleição de Donald Trump; Inglaterra, com a votação do Brexit; Hungria, com a permanência no poder de Viktor Orban; e Itália, o “Valle do Silício” do populismo moderno, com a constituição e ascensão ao poder do Movimento 5 estrelas (M5E). Este é o partido-algoritmo que nasce em 2010, sob a direção de um comediante, Giuseppe Pierre Grillo, conhecido como Beppe Grillo. Mas, estes personagens ou movimentos são os visíveis, aqueles que podemos ver nos meios de comunicação. O que o cientista politico ítalo-francês, formado na Science Politique de Paris, nos mostra é mais interessante. Mostra os feitores do sucesso destas novas forças políticas e, sobretudo, as práticas que lhes deram a vitória. Mostra quem são aqueles que trabalham nas assessorias, nas sombras, para produzir estas vitórias “inesperadas”, e como eles trabalham: físicos, matemáticos, engenheiros, tecnólogos e estatísticos. Porque a vitória eleitoral destas novas forças políticas depende mais destes novos profissionais do que de cientistas políticos e comunicadores. Da Empoli desvela essas feições que a maioria de nós não tem nem ideia. São eles, entre muitos outros: Gianroberto Casaleggio (Itália), que aliado ao comediante Beppe Grillo cria o partido-algoritmo M5E; Dominic Cummings (Inglaterra), que conduz o movimento Brexit ao sucesso, quando as expectativas eram inversas; Steve Bannon (EEUU), o grande estrategista de Donald Trump, que revolucionou sua campanha eleitoral, e seu auxiliar, o inglês Milo Yiannopoulos; Andrew Breitbart, o mestre de Bannon; e Arthur Finkelstein, americano nova-iorquino que leva Benjamin Netanyahu a vencer Simon Perez, em Israel, e leva Orban ao poder na Hungria.

São realidades distintas as estudadas pelo autor, e como era de se esperar cada qual com suas diferenças, suas especificidades. Mas, elas têm elementos comuns. São estes, e não o específico de cada local, o que tem de mais relevante no livro. E que tentaremos mostrar aqui, de forma breve, em nove pontos.

As elites como inimigas, a inexperiência como qualidade. À semelhança dos demagogos na Grécia antiga e dos nazistas e fascistas dos anos 1930, os principais adversários do populismo moderno são as elites: financeiras, políticas e intelectuais. Para os seus eleitores, as elites constituem uma casta blindada formada por traidores do povo e da nação, indivíduos corruptos. No slogan dos líderes populistas, o mundo assiste, hoje, à revolta dos povos contra as elites globais, o capital financeiro, a intelectualidade de esquerda e, sobretudo, os políticos e partidos tradicionais, tanto de esquerda, quanto de direita. O comediante Beppe Grillo e os ministros do primeiro governo do M5E, em 2018, são neófitos na política e inexperientes no trato da coisa pública. Para seus eleitores, é sinal de pureza, de distanciamento das elites. Prova de que são “bons políticos”.

A política sem cortesia, a grosseria como valor. Em todos os casos estudados (EEUU, Itália, Hungria e mesmo Israel e Brasil) os líderes populistas são diretos, grosseiros, sem “papas na língua”. Isso, que poderia ser defeito, é lido como qualidade por seus leitores. É sinal de autenticidade. Traços que os distinguem das elites políticas, que seus eleitores odeiam e culpam por todos os males que sofrem: a perda de emprego e renda; as dificuldades no acesso aos serviços de saúde e educação de qualidade; o transporte sofrível e a habitação cara; a violência urbana; a ameaça à família tradicional, com os novos formatos; o desmoronamento dos valores tradicionais, por práticas discursivas dos esquerdistas e as ameaças imaginárias, provindas dos imigrantes, entre outros.

A política populista vive da mentira. Arthur Finkelstein define com clareza este aspecto da política do moderno populismo: “ninguém sabe de nada e o que você percebe como verdade passa a ser verdade”. O bom político é o cara que diz uma série de coisas verdadeiras para, em seguida, dizer uma série de coisas falsas. Uma mentira tem em média 70% mais chances de se propagar do que uma verdade. Como já dizia Mark Twain “uma mentira pode fazer a volta ao mundo no mesmo tempo em que a verdade calça seus sapatos”. No meio dos eleitores do populismo, um líder que agrega Fake News (FN) a sua narrativa é um homem de ação, que constrói sua própria realidade para responder aos anseios de seus seguidores. Pois, para estes, a veracidade dos fatos não conta. O que importa é a versão explicitada pelo líder, pois para os eleitores do populismo “Ele sabe, ele conhece, ele diz o que pensamos e sentimos. Ele diz a verdade”.

A raiva e o medo como motores da ação. A propaganda do populismo moderno é assentada nos sentimentos de raiva, medo e rancor, existentes no âmbito de pequenos grupos extremistas e, de maneira difusa, na grande massa dos seus eleitores. Os primeiros compõem o núcleo duro de seus apoiadores, que se mobilizam, investem, agem. Soldados em combate nas redes sociais, espalhando Fake News para todo lado. A estes, soma-se a grande massa dos eleitores que se sentem ameaçados por inimigos reais ou imaginários que são os imigrantes, a globalização, a União Europeia, a valorização da diversidade cultural, os valores tradicionais ameaçados pelas mudanças dos costumes etc.

É interessante observar como a raiva é o afeto narcisista por excelência, segundo os psicólogos. Afinal, a raiva é uma grande fonte de energia em pleno desenvolvimento no mundo inteiro. Por sua vez, ela é agudizada pelas redes sociais. Os líderes populistas a compreendem e a justificam: “a culpa é dos outros e você pode se tornar um soldado pela justiça, agregue-se a nós”. O mote da vitória do Brexit era: descubra porque as pessoas estão com raiva, identifique o quê, diga que a culpa é da Europa e peça para ela votar contra a Europa.

A xenofobia é outro traço do populismo moderno. Em todos os países que as forças populistas ascenderam, o nacionalismo é um elemento central dos discursos de seus lideres. Como diz Orban: “não queremos nenhuma minoria com patrimônio cultural diferente do nosso”. O sentimento anti-imigração reúne a direita e a esquerda sob o manto do novo populismo. Dessa forma, apenas repetem uma das características do nazi-fascismo dos anos 1930.

A propaganda costumizada e o fim dos programas partidários. As redes cultivam a cólera, exacerbam os conflitos de forma generalizada. Aproveitando deste fato, a publicidade populista rearticula os conflitos e os substitue pelo conflito entre “nós” e “eles”, o povo e as elites. Alimentada, sobretudo, pelas emoções negativas como a raiva e a cólera; aproveitando do escárnio dos excluídos como ferramenta para dissolver as hierarquias e o medo para mobilizar as pessoas em ações pouco racionais, a propaganda populista cria uma mensagem em conformidade com as características de cada eleitor. E tudo isso sem a necessidade de ter coerência no coletivo, pois cada um recebe a mensagem que lhe cabe. Ninguém sabe o que o outro recebe, só o centro da propaganda conhece cada um e os seus sentimentos. Não existe comunicação horizontal, só vertical. Para cada eleitor identificado e caracterizado pelos computadores é produzida uma mensagem particular, pessoal, com variações e modalidades distintas, e em grande quantidade. Trump emitiu 5,6 milhões de mensagens desta natureza; Hillary, sua rival, 66 mil.

As mensagens produzidas nos computadores visam mobilizar seus eleitores e desmobilizar os eleitores do adversário. Permita-me utilizar o exemplo de Trump, que está mais perto de nós brasileiros para explicar este último aspecto. Nas vésperas das eleições, a campanha dele enviou mensagens particulares para eleitores de Hillary, particularmente três grupos. Aos que apoiaram o candidato democrata que perdeu as primárias para Hillary, Bernie Sanders, foram enviadas mensagens das relações de Hillary com o mundo financeiro. Para as jovens mulheres, eleitoras do Partido Democrata, mensagens sobre “desvios” sexuais da família Clinton. Finalmente, para os afro-americanos foram enviados trechos de discursos da adversária, em geral retirados de seu contexto, que se referiam de maneira indelicada ou grosseira aos negros americanos. As mensagens legais, que tinham algum respaldo na imprensa, em relatórios ou livros eram enviadas pela central da campanha de Trump. As mensagens ilegais, Fake News sobre os mesmos temas, eram enviadas por centenas de centros distribuídos no mundo, inclusive São Petersburg, na Rússia.

A política tornou-se uma tarefa de softwares. O método dos assessores dos líderes políticos populistas, em todo o mundo, é o microtargeting: análises demográficas sofisticadas, levantamento de dados nas redes sociais e sondagens eleitorais constantes, correlacionadas por máquinas inteligentes e superpotentes. Identificar os eleitores, seus gostos, dúvidas e raivas é o objetivo primeiro. Com isso, produz-se mensagens customizadas em função dos rancores e dúvidas de cada eleitor. Como diz DominicCummingis: “Se você quer fazer progresso em política, contrate físicos ao invés de cientistas políticos e comunicadores”. O físico está habituado a trabalhar com uma infinidade de dados, o que não estão os cientistas políticos. Na física, o comportamento de uma partícula não é previsível, mas o de aglomerados, é. Pela observação do sistema é possível prever o médio, estabelecer padrões. O sistema possui características e regras que o tornam previsível. Os físicos e estatísticos sabem usar métodos de simulações dos sistemas, convergência para solução ótima e correlações entre as variáveis. Há 10 anos atrás, os dados não permitiam trabalhar com os aglomerados humanos, hoje sim. E cada ser humano pode ser tratado como uma variável de um sistema simulado.

Com a internet das coisas e o Big Data, teremos uma profusão de dados ainda maior sobre as pessoas, que permitirão fazer uma política de convencimento e mobilização como jamais vista no mundo. Cada eleitor receberá uma mensagem adequada ao seu perfil, e nenhuma outra pessoa saberá, salvo o centro emissor e controlador dos dados. E essa propaganda escapa a qualquer forma de controle.

O centro político se esvazia, os extremos crescem. Com a propaganda personalizada, o jogo político não consiste mais em reunir as pessoas em torno de um denominador comum, um programa de ideias e proposições, mas inflamar as paixões, estimular os grupelhos nos extremos e depois adicioná-los, mesmo à revelia. Unir os extremos e impedir os eleitores de convergirem para o centro.

Afinal, a política dos populistas é como um carnaval. Não há lugar para observador na política populista, todos são atores. Não há lugar para comportamentos politicamente corretos, tudo é gozação e grosseria. O intelectual progressista é um pedante, e é preciso ridicularizá-lo. Não existe compromisso com a verdade, com os fatos, mas apenas com a brincadeira, a narrativa do líder populista. Antes, havia opiniões e interpretações diferentes em torno dos mesmos fatos. Agora não, os fatos são distintos e existem ou não em função da narrativa de cada um, da verdade de cada pessoa. O carnaval não se afina com o bom senso, nem com a racionalidade habitual, ele tem sua própria lógica. Está concentrado na intensidade da narrativa e não na exatidão ou veracidade dos fatos.

Como dizem os especialistas em organização e mobilização, o absurdo é um fator organizacional mais eficaz do que a verdade. O carnaval da política populista se alimenta de dois elementos: a cólera de alguns meios populares e uma máquina superpotente de dados. Se Lênin dizia que o comunismo nascia do casamento dos sovietes e da energia, os engenheiros do caos afirmam que o populismo nasce do casamento da cólera com os algoritmos.

Para finalizar, duas conclusões de caráter mais geral: a) uma máquina superpoderosa irrompeu na política, transfigurando-a; b) as campanhas eleitorais se transformaram em guerras entre softwares. O jogo eleitoral mudou. Antes, predominava uma força centrípeta, ganhava quem ocupava o centro do corpo eleitoral. Agora, domina a força centrífuga, que estimula os grupelhos extremistas, radicaliza-os e, depois, agrupa-os no dia das eleições. A mensagem agora é individual e pode ser contraditória sem que ninguém perceba. O líder político se torna um homem oco, pois sua vontade é ditada pelo que as máquinas conseguem captar dos sentimentos dos indivíduos. Dessa forma, e de maneira surpreendente, as minorias intolerantes ditam o rumo da história em alguns países. Assim, a vitória dos líderes populistas depende da existência do apoio de uma minoria intolerante e de uma maioria tolerante. Afinal, os extremistas se tornaram o centro do sistema político.

Nem tudo está perdido, porém. Um sistema movido por uma força centrífuga escapa do ponto de equilíbrio e fica cada vez mais instável. E elementos de instabilidade concentram-se em diversas dimensões no mundo. Na economia, observa-se o aumento acentuado das desigualdades; no plano internacional, o crescimento exacerbado do nacionalismo e da xenofobia; na cultura, a intolerância cresce em relação aos que pensam diferente; na política, registra-se o crescimento das forças extremas do leque ideológico; no social, constata-se o incremento dos processos de exclusão social. Finalmente, na dimensão ambiental, a crise ecológica não é corretamente enfrentada com riscos crescentes para as condições da vida dos humanos, senão da sua própria existência. Tudo isso causa uma enorme instabilidade no mundo e não sabemos quando ocorrerá a ruptura. E, sobretudo, para onde ela nos levará.

De toda forma, há sinais interessantes de reação, inclusive no berço do populismo moderno, a Itália, como o movimento conhecido como das Sardinhas. Vale a pena conhecê-lo.

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(*) Republicado conforme o Blog "Democracia Política e Novo Reformismo"

(**)Sociólogo, com doutorado pela Université de Paris V (René Descartes, 1982), e pós-doutorado na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Professor associado dos Programas de Pós-Graduação do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UNB) e do Programa Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Autor do livro Um mundo de riscos e desafios: conquistar a sustentabilidade, reinventar a democracia e eliminar a nova exclusão social (FAP, 2020).

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Um pouco de mundo

Werneck nos propõe buscar a porta para o caminho político do Brasil olhando o que se passa no mundo bem agora.

“(...)A política é o lugar próprio para essa descoberta, que já empreende passos promissores em vários países europeus com a valorização dos temas ambientais e das desigualdades sociais, e começa a encontrar espaço entre os democratas americanos que ora se contrapõem, até aqui bem-sucedidos, à reeleição do anacrônico neoliberalismo de Donald Trump. Sobretudo ela é necessária aqui, neste canto do mundo que cedeu ao atraso e abdicou de suas melhores promessas com este governo Bolsonaro que acena com o fascismo e com uma administração tecnocrática nos moldes preconizados por Paulo Guedes, ministro da Fazenda de confissão neoliberal”.

Segue o artigo:

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A muralha e a sua porta*

Luiz Werneck Vianna**

Julho/2020

Aparentemente a atual conjuntura experimenta um tempo homogêneo e vazio em que se reitera o já vivido, como se a sociedade estivesse condenada a movimentos de repetição de suas experiências passadas sem lhe conceder a faculdade de descobrir suas alternativas de futuro. A aceitar esses termos viver-se-ia agora, no Brasil, nas mesmas condições dos idos de 1964 a 85, restando a nós reiterar as práticas bem-sucedidas naquele período. Mas, de fato, nosso tempo nem é homogêneo e nem vazio, pois forças surgidas das entranhas da sociedade capitalista contemporânea brasileira trazem consigo a heterogeneidade e fazem emergir novos sentidos na vida social, alargando a porta estreita de que falava Walter Benjamin pela qual podem entrar as forças da transformação.

Figura do original: IHU

Com efeito, se em boa parte novos processos benfazejos que transcorrem no mundo devem sua aparição à ação do domínio dos fatos como protagonista, outra parte se deve ao plano da consciência do ator que se anima e se inova ao vislumbrar as novas possibilidades que percebe na porta entreaberta que tem diante si. De fato, a intervenção sem freios que a expansão do capitalismo expôs o mundo, desencadeando exponencialmente suas forças produtivas, vem precipitando processos disfuncionais que põe sob ameaça sua própria reprodução, entre os quais os riscos ambientais, como a atual pandemia, que, se não controlados, podem, no pior dos cenários varrer do planeta a nossa espécie ou degradar a herança cultural que ela acumulou em sua jornada de séculos.

A onda neoliberal que tomou conta do mundo a partir dos anos 1970, em sua versão de um capitalismo vitoriano, deixou em sua esteira, como o demonstra incansavelmente o economista Thomas Piketty, um lastro de desigualdades que corrói por dentro a legitimidade do seu modo de produção. Ao lado disso, o legado do colonialismo com que o capitalismo iniciou sua trajetória de triunfos deu como um dos seus frutos amargos a questão do racismo, primeiro pela importação massiva, sob o estatuto da escravidão, de africanos com que se supriu as plantations de mão de obra com que as Américas realizaram sua inserção no mundo do capitalismo, e bem mais tarde, aí já em cenário europeu, com as migrações originárias das antigas colônias, também em grande escala, em busca de oportunidades de vida em sociedades carentes de força de trabalho barata em serviços subalternos.

A entrada em cena do racismo, em especial nos contextos europeus e americanos, como que vieram a sobredeterminar as desigualdades sociais, instalando um sentimento generalizado de que a injustiça se naturalizou na vida social, sentimento particularmente experimentado pelos jovens que se deparam com sociedades adversas à sua participação. O movimento catártico dos jovens em grande número de países, massivo no caso americano, em reação ao bárbaro assassinato de um negro por motivo banal pelas forças policiais, trouxe à luz a existência de uma ainda embrionária sociedade civil mundial e de novos personagens políticos prontos a entrarem em ação.

A atual pandemia que nos assola, por sua vez, acentua o quadro de fim de época que se insinua neste tempo que parece nos ensinar a abandonar as concepções de mundo do utilitarismo que o capitalismo nos impôs para buscar novos caminhos, alguns deles já conhecidos pela longa história humana como os que investiram nos ideais da igual-liberdade, para usar uma forte expressão de E. Balibar.            
A política é o lugar próprio para essa descoberta, que já empreende passos promissores em vários países europeus com a valorização dos temas ambientais e das desigualdades sociais, e começa a encontrar espaço entre os democratas americanos que ora se contrapõem, até aqui bem-sucedidos, à reeleição do anacrônico neoliberalismo de Donald Trump. Sobretudo ela é necessária aqui, neste canto do mundo que cedeu ao atraso e abdicou de suas melhores promessas com este governo Bolsonaro que acena com o fascismo e com uma administração tecnocrática nos moldes preconizados por Paulo Guedes, ministro da Fazenda de confissão neoliberal.

Se Bolsonaro é prisioneiro dos idos do AI 5, a oposição democrática a isso que aí está, não deve ficar retida na sua história de sucessos nos anos 1980, embora deva estar atenta às suas lições. A trama é nova e novos são os personagens, muito particularmente aqueles que surgiram com a auto-organização da vida popular em suas lutas pela vida em meio à catástrofe da pandemia, eles e os seus intelectuais que ganharam estofo nessas lutas, e junto a eles os movimentos de cientistas, de universitários e de intelectuais que a eles se associaram. A política democrática não poderá perdê-los de vista, assim como abrir generosos espaços a esses emergentes setores da esquerda, que, embora ainda imaturos em alguns casos, trazem consigo seiva nova a ser valorizada.

As eleições municipais – eleições, na nossa experiência, consistem em uma forma superior de luta – estão batendo em nossas portas, e aí estará o momento, especialmente se a malfadada pandemia arrefecer para recuperarmos os espaços que fomos coagidos a abandonar. Nessa hora de retomada cumpre alargar, de forma tal que empalideça todas nossas experiências anteriores, uma frente democrática que invista com energia contra as muralhas reacionárias que os desavindos com a nossa história e melhores tradições ergueram para a proteção dos seus privilégios e de suas crenças malévolas.

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(*) Originalmente publicado em IHU - Instituto Humanitas Unisinos, em 22/07/2020

(**) Sociólgo PUC-RJ

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Depois de tudo

FERNANDO SABINO

NOS  ENSINANDO,

ANOS ATRÁS, O QUE

FAZER APÓS A PANDEMIA...

 

DEPOIS DE TUDO


De tudo ficaram três coisas:

A certeza de que estamos

sempre a começar...

A certeza de que é preciso continuar...

A certeza de que podemos ser interrompidos

Antes de terminar.

 

Por isso devemos:

Fazer da interrupção um caminho novo...

Da queda, um passo de dança...

Do medo, uma escada...

Do sonho, uma ponte...

Da procura, um encontro.


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Vida e morte do saneamento básico

Desde há muito se discute a participação dos capitais privados no saneamento básico. Seja na construção das estações e linhas seja na operação das mesmas. A experiência no Brasil é que a construção das estações tem sido feita quase totalmente pelos estados. O capital privado prefere operar as estações e linhas e nisto tem sido, dentro de certos limites, eficiente. Tanto o abastecimento d’água quanto o tratamento de esgotos é muito custoso para a imensidão das populações pobres. Terão condições de pagar? O remuneração dos investimentos e da operação seria atrativa ao capital privado? 

Abaixo Roberto Freire abre uma discussão sobre a participação dos capitais privados no saneamento*.

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 1. Como avalia a aprovação do Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico? Não é um conflito ser de esquerda e aprovar a entrada da iniciativa privada no setor?

De forma alguma. E isso está na história do PCB. Sempre fomos reformistas. Se as circunstâncias mudam, nós mudamos. Não faz sentido no mundo de hoje, descentralizado e interconectado, defender um modelo centralizado no papel do Estado. Não fazia sentido já na década de 1980, faz ainda menos agora. Não podemos ser dogmáticos e não somos. Somos um partido historicamente reformista. Éramos gorbachovianos como PCB, evoluímos como PPS e isso não mudou como Cidadania. Esse modelo está aí há décadas e deixou 100 milhões sem tratamento de esgoto e 35 milhões sem água potável. Há abertura agora para que investimentos privados ajudem a mudar esse quadro. Nada disso vai acontecer da noite para o dia, mas foi dado um passo nessa direção. A alternativa é deixar esses milhões de pessoas sem acesso a esses direitos básicos e à mercê de uma série de doenças que atingem principalmente os mais pobres.

2. A água foi privatizada como querem alguns críticos?

A nova lei não privatiza nem estatiza. Ela estabelece metas e faz cobrança pelos resultados. Cria concorrência. Se a empresa é privada ou estatal, deverá ser cobrada pelo seu serviço. O fato de uma empresa ser estatal não garante que ela serve ao interesse da sociedade. Essa é uma discussão atrasada, ideológica, que vem impedindo o Brasil de avançar. Uma âncora do pensamento. Não importa a cor do gato, desde que cace o rato.

3. Muitos alegam que o momento econômico é ruim e que haveria dificuldades para a realização de investimentos numa área que sempre foi bastante complicada em razão do grande volume de aporte necessário.

Estamos em meio a uma pandemia, com uma crise social e econômica gigantesca, agravada pelo negacionismo e pela irresponsabilidade do presidente Jair Bolsonaro. No momento, difícil realmente ver cenário de investimento produtivo no Brasil. Mas apesar de Bolsonaro, isso vai passar. Sem dúvida, com grande trauma, mas vai passar. E precisaremos estar preparados para o momento seguinte. O projeto é importante por isso, mas é evidente que por si só não resolve nada. Há uma série de condições para atração de investimentos e tudo o que Bolsonaro faz é torná-las mais distantes. Mas, passado esse momento, estados e municípios poderão atuar na contramão do presidente, se lá ele ainda estiver. Terão uma carta na manga numa área tão sensível, mas com grande potencial de mudar a realidade dos brasileiros mais vulneráveis. No Nordeste, por exemplo, somente 28% da população tem esgoto tratado.

4. O senhor vê algum paralelo com a privatização da telefonia no governo FHC? Água não é mercadoria diz quem critica…

É um comentário bastante esdrúxulo, mas aceito a provocação. Poderíamos não ter privatizado a telefonia porque a comunicação é um direito constitucional e pertence ao Estado. Estaríamos hoje com redes obsoletas, internet discada e aparelhos telefônicos como bens de alguns poucos. Essa era a realidade então. E o Estado não tinha os recursos necessários para fazer frente à revolução tecnológica que se impunha. Podemos ficar com a “água estatizada”, um ativo na mão, se querem assim, e continuar alijando de condições mínimas de sobrevivência digna mais de 100 milhões de brasileiros. Muitos desses críticos têm água potável, parte do esgoto tratado – porque o Brasil trata muito pouco –, celular e internet de alta velocidade. Por quê? Porque o Estado pelo Estado funciona para alguns, mas não para quem mais precisa. O Estado brasileiro foi privatizado para o interesse de uns poucos. E não estamos falando, nesse caso do saneamento, de todo poder à iniciativa privada ou todo poder ao Estado, mas de uma parceria no melhor interesse público. Se for preciso ajustar o modelo, que isso seja feito. Do jeito que está é que não pode continuar.

5. O senhor se considera um privatista?

Veja, essa visão é simplista. Certamente não sou mais um estatista, mas é impossível reproduzir a lógica do setor privado no setor público, como querem Paulo Guedes e alguns de sua equipe. Nem o Estado é mais ou menos corrupto do que a iniciativa privada. Muitas vezes, a iniciativa privada, desobrigada de certas limitações corretamente impostas pela legislação ao setor público, poderá ser mais eficiente. Nesse caso, o modelo que está aí não deu conta do recado. E veja que já há empresas públicas, com participação privada e ações na bolsa, como Copasa e Sabesp, então não estamos falando de um modelo puramente estatista. Essas empresas são estatais e têm lucro. Devo muito da mudança de concepção que tenho sobre o papel do Estado ao economista Ignácio Rangel. Ele já fala em concessões à iniciativa privada como meio de financiar a expansão da infraestrutura na década de 1970.

6. O senhor inclusive conduziu alguns processos como Deputados Federal e líder do governo na Câmara…

Já em 1989, como candidato a presidente, defendi as privatizações. Não havia porque falar em setores estratégicos, em inovação, e continuar produzindo aço. Fui líder do governo Itamar Franco na Câmara dos Deputados e vivi essa discussão de perto quando da privatização da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda (RJ), e da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), em Cubatão. Hoje, os países mais avançados discutem robótica e inteligência artificial. É nessas áreas que o Estado tem de focar sua agenda econômica. Até para ter condições de cuidar do social. Enquanto ficamos nesse debate sobre Estado x Privado, uns poucos seguem privatizando lucro e socializando o prejuízo, ficamos parados, perpetuando a desigualdade, e vendo outros países deixarem o Brasil para trás. Falar em privatização da água é desonestidade intelectual. Precisamos superar a queda do muro de Berlim. O modelo de uma economia totalmente planificada foi derrotado, mas uma parte da esquerda está ainda atrás de um muro de Berlim imaginário.

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(*) Entrevista originariamente concedida ao site Cidadania23, publicada em 25 de junho de 2020: 

https://cidadania23.org.br/2020/06/25/freire-votacao-do-novo-marco-regulatorio-do-saneamento-mostra-atraso-da-esquerda-pre-muro-de-berlim/?fbclid=IwAR1KVn1BXu_LZHOm17TG64YyRTBkUCPfAOcEsC6oW5ggypknzsS_H91mn5Y


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