População, alimentos e meio ambiente

Nos últimos meses cresceu o debate internacional sobre os problemas entrelaçados do desequilíbrio ambiental, da pressão sobre os recursos naturais pelas tecnologias atuais da produção de alimentos, do crescimento populacional global, e da potencial irradiação de novas pandemias nesse contexto.

Quanto ao crescimento da população mundial, cujas tendências, somadas aos padrões de consumo difundidos pelo capitalismo, pressionam os recursos naturais, a produção de alimentos e o equilíbrio ecológico, Sergio A. Moraes, em seu livro “Capitalismo e População Mundial”, abre a perspectiva da análise desse problema mediante a tese de K. Marx da subordinação no longo prazo do crescimento populacional às leis de reprodução do capital.

Em escala planetária, com as fronteiras abertas à integração dos mercados e ao acesso do capital aos imensos reservatórios de trabalhadores de baixo custo de reprodução, não estaria à vista nenhum interesse do capital em fazer valer as conquistas culturais e de conhecimentos das sociedades, engendradas sob este mesmo capitalismo, em prol de uma evolução mais equilibrada da população mundial.

Na sequência reproduzimos o Capítulo 6 do referido livro.

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População, alimentos e meio ambiente*

Sergio Augusto de Moraes**
Junho -  2021

 A “pegada ecológica” é uma metodologia utilizada para medir as quantidades de terra e água (em termos de hectares globais - gha) que seriam necessárias para sustentar o consumo atual da população. Considerando cinco tipos de superfície (áreas cultivadas, pastagens, florestas, áreas de pesca e áreas edificadas), o planeta Terra possui aproximadamente 13,4 bilhões de gha de terra e água biologicamente produtivas.

Segundo dados de 2010 da Global Footprint Network, a pegada ecológica da humanidade atingiu a marca de 2,7 gha por pessoa, em 2007, para uma população mundial de 6,7 bilhões de habitantes na mesma data (segundo a ONU). Isso significa que para sustentar essa população seriam necessários 18,1 bilhões de gha. Ou seja, já ultrapassamos a capacidade de regeneração do planeta no nível médio de consumo mundial atual, com pegada ecológica de 2,7 gha.

Sergio Augusto de Moraes

“Se a população mundial adotasse o consumo médio do continente africano - com pegada ecológica per capita de 1,4 gha - poderia atingir 9,6 bilhões de habitantes. Se o consumo médio mundial fosse igual à média asiática (com pegada ecológica de 1,8 gha), a população mundial poderia ser de 7,4 bilhões de habitantes. Com base na pegada ecológica da Europa (4,7 gha), não poderia passar de 2,9 bilhões de habitantes. Com a pegada ecológica da América Latina (2,6 gha), o limite seria de 5,2 bilhões de habitantes. Com as pegadas ecológicas da Oceania (5,4 gha) e dos Estados Unidos e Canadá (7,9 gha) precisaríamos parar em 2,5 bilhões e 1,7 bilhão de habitantes, respectivamente”.[1]

Esta fotografia da situação atual nos dá uma idéia da dimensão do problema que a humanidade enfrenta. E notem que estamos falando de médias que envolvem os mais ricos e os mais pobres de cada continente ou país.

O professor J. Eustáquio Diniz Alves acima citado conclui:

 

“Não há, evidentemente, como manter esse crescimento nos padrões de produção e consumo atuais. Para que a humanidade possa sobreviver e permitir a sobrevivência das demais espécies, será preciso promover uma revolução na matriz energética, incentivar a eficiência do uso de energia, reciclar e reaproveitar o lixo. Enfim, reduzir os desperdícios em todas as suas formas. Será necessário introduzir inovações tecnológicas nos prédios e casas para melhorar o aproveitamento da energia e a reciclagem de materiais, reforçar e melhorar o transporte coletivo, criar empregos verdes; ampliar as áreas de floresta e mata e a preservação ambiental”.

O autor lista ainda uma série de outras medidas que poderiam reduzir a agressão ao planeta, que vão desde avançar na aquicultura até a redução de bebidas alcoólicas e gastos militares .A projeção da situação atual para os próximos 40 anos  não melhora o quadro. Segundo a FAO:[2]

“(...) a população da terra deverá crescer dos 6,9 bilhões em 2010 para algo em torno de 9,2 bilhões em 2050, crescimento este localizado quase integralmente nas regiões menos desenvolvidas; e as maiores taxas de crescimento são previstas para os países mais pobres. Então algo em torno de 70% da população global deverá ser urbana comparada com os 50% atuais. Se as tendências atuais persistirem, a urbanização e o incremento dos rendimentos nos países em desenvolvimento redundarão num maior consumo de carne o que exigirá aumento da produção de cereais para alimentar os rebanhos. O uso de produtos agrícolas na produção de biocombustíveis também deverá crescer. Nos anos 2020 os países industrializados deverão consumir 150 kg de milho por pessoa  por ano sob a forma de etanol – similar às taxas de consumo alimentar de cereal por pessoa nos países em desenvolvimento(...).

(...)Tais mudanças na demanda levarão a uma significativa necessidade de aumento na produção de todos os principais alimentos. As projeções da FAO sugerem que por volta de 2050 a produção agrícola deverá crescer globalmente uns 70% - e quase 100% nos países em desenvolvimento - para atender somente a demanda por alimentos, excluindo a demanda adicional por produtos agrícolas usados na produção de biocombustíveis. Isto é equivalente a uma produção extra de cereais da ordem de um bilhão de toneladas e a 200 milhões de toneladas de carne a serem produzidos anualmente em 2050, comparados com a produção entre 2005 e 2007”.

O documento da FAO assinala as dificuldades para expandir as áreas de cultivo, as consequências do uso intensivo dos solos e as agressões ao meio ambiente e sugere um outro paradigma: a intensificação sustentável para o aumento da produção de alimentos.

 

“A intensificação sustentável da produção de alimentos, quando efetivamente implementada e suportada, provocará o “duplo ganho” requerido para atingir as duas mudanças de alimentar a população mundial e salvar o planeta” .

 Mais adiante afirma:

 

“Ao mesmo tempo que trará múltiplos benefícios para a segurança alimentar e o meio ambiente, a intensificação sustentável tem muito a oferecer aos pequenos agricultores  e às suas famílias - que constituem mais de um terço da população mundial - pelo aumento de sua produtividade, redução de custos, elevando sua resistência ao desgaste e fortalecendo sua capacidade de lidar com o risco”.

Tais objetivos são meritórios e as medidas indicadas, ainda em pequena escala mundial vem sendo implementadas em diversas regiões e por diversos organismos. Mas seria possível estendê-las a todo o planeta? Torná-las dominantes? Quais as tendências mais fortes do desenvolvimento atual?

 

A concentração de terras

No Brasil, um país que tem uma extensão considerável de terras virgens públicas, portanto sujeitas a uma distribuição menos concentrada, a situação é a seguinte:

 

TABELA - A concentração de terras no Brasil [3]      

 

   Propriedade            % área ocupada

                                          2003         2010

Minifúndios, pequenas                                               

e médias propriedades    48,4            43,8

Grande propriedade         51,6             56,1

E isto não se limita aos produtores nacionais. O ex-ministro Delfim Netto, personagem insuspeito neste sentido, dá um brado de alerta: “Os chineses compraram a África e agora estão tentando comprar o Brasil[4] e certamente os chineses não produzem nas pequenas ou médias propriedades.

A situação do Brasil não é exceção. Na Europa fenômeno semelhante vem ocorrendo: “metade de toda a terra agrícola na União Europeia está hoje concentrada em 3% de grandes fazendas com mais de 100 ha(...)”e “(...) na Alemanha um total de 1,246 milhões de propriedades em 1966/67 reduziu-se para 299,1 mil fazendas em 2010. Dessas a área coberta por propriedades de menos de 2 ha reduziu-se drasticamente enquanto aquelas com 50 ha ou mais expandiram sua área de 9,2 milhões de hectares em 1990 para 12,6 milhões de hectares em 2007”.[5]

LEIA TAMBÉM: População e Previdência Social sob o Capitalismo

  


[1] A Terra no limite, de J. Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas ENCE/IBGE. Disponível em: <Planeta Sustentável.abril.com.br>.

[2] FAO – Save and Grow – The Challenge (www.fao.org/ag/save-and-grow)

[3] MST – Gerson Teixeira – Agravamento da concentração de terras.

[4] O Estado de São Paulo, 23/08/2010.

[5] John Vidal, The Guardian, 18/04 e 13/05/2013.

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(*) O texto reproduz o Capítulo 6 do livro "Capitalismo e População Mundial", de Sergio Augusto de Moraes, Fundação Astrogildo Pereira e Editora Contraponto, Brasilia-DF, 2016

(**) O autor é Engenheiro pela UFRJ e Mestre em Econometria pela Universidade de Genebra. Trabalhou no Chile para o governo de Salvador Allende, 1971-1973 quando, depois do golpe de Estado de Pinochet, esteve preso no Estadio Nacional. Dali conseguindo livrar-se  pela solidariedade internacional, foi para a Europa, onde ficou seis anos exilado. Voltou ao Brasil em 1979. É autor também do livro "Viver e Morrer no Chile" - 2010, e um dos editores deste Blog "Democracia e Socialismo".   

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Reinventar, articular, reconstruir

A volta de Lula à disputa eleitoral e as recentes pesquisas de intenção de voto expoem a fragilidade e equívocos das forças de uma “terceira via” que pudesse evitar em 2022 a repetição da polarização das eleições de 2018. Marco Aurélio Nogueira põe o dedo na ferida, em especial apontando realisticamente a falta de articulação nacional das forças democráticas e o equívoco de atacarem Lula e o PT ao invés de forçá-los ao entendimento amplo.

Segue o recente artigo de Marco Aurélio.

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Reinventar, articular, reconstruir*

Marco Aurélio Nogueira**
Maio-2021

"Fala-se em ‘terceira via’ para 2022 como se fosse mágica, mas pouco se faz por ela."

O melhor seria passar um pano em tudo e começar de novo.

Só que é impossível. Sociedades, Estados, sistemas políticos, instituições, acumulam pó e sujeira, mas não podem ser limpos com panos e detergentes comuns. Requerem recursos e ingredientes que não se encontram no mercado. E que, hoje, nesse Brasil que está deixando de ser tão brasileiro, fazem uma falta lancinante, que machuca e faz sofrer.

Marco Aurélio Nogueira
Falta-nos, antes de tudo, uma ideia de sociedade futura. Como queremos viver, para além da obviedade de que queremos todos ser felizes e bem tratados, ter um Estado eficiente e instituições que se façam respeitar e regulamentem a vida? Queremos justiça e igualdade (entre gêneros, etnias, orientações sexuais e classes), mas não há pistas de como isso poderá ser alcançado. Reivindicações e desejos saltam na vida cotidiana, mas os atores políticos não sabem como agarrá-los.

Com qual economia, para começo de conversa? Uma pujante, consciente de suas possibilidades, disposta a incluir o País no sistema de intercâmbios internacionais, capaz de gerar renda e empregos, de adotar a sustentabilidade como critério estratégico, de aceitar o Estado como regulador ativo? Ou uma perdulária, sem produtividade, voltada para si, sem tecnologia incorporada? Uma economia atenta aos imperativos categóricos do planeta, a começar da agenda climática e ambiental, ou caolha, dedicada à destruição da natureza, ao desmatamento predatório, à conquista da terra como bem a ser explorado sem cautela e sem interesse coletivo?

Não temos um projeto para revitalizar a Federação, equiparar minimamente Estados e municípios, dar a cada um deles as condições necessárias para progredir. O País está manco, caminha claudicando.

Não temos um plano para recuperar os sistemas vitais, a educação, a saúde, a assistência – a proteção social. Tudo nessas áreas é imperfeito, deixa a desejar, as carências estão expostas à luz do dia, sem que saibamos como abordá-las.

Falta-nos um projeto de Estado, um padrão de governança que tenha estabilidade e produza resultados, que valorize e blinde as instituições contra aventureiros autoritários, ideólogos reacionários, redes irresponsáveis, negacionistas contumazes, oportunistas, corjas de malfeitores que só pensam nas vantagens a obter, que são ignorantes da sociedade existente. Estamos sentindo na pele as consequências do desvario que nos acometeu em 2018 e possibilitou a eleição de uma cúpula de estroinas perversos.

É assustador constatar que estamos assim apesar de possuirmos recursos técnicos, intelectuais, culturais e políticos para reinventar o Brasil. Vivemos como se dependêssemos de um milagre celestial, de uma explosão popular ou das conclusões de uma CPI no Senado. Por que nossos políticos preferem se entregar ao jogo miúdo da pequena política, a lançar granadas de baixa potência e que não atingem o alvo, optando por privilegiar seus interesses partidários, regionais, ideológicos, em vez de oferecer algo consistente à sociedade?

Quero crer que isso se deva a alguns fatores.

Primeiro, nossos políticos não têm dimensão intelectual. Não falo de formação escolar ou de diplomas, que todos os exibem a mancheias. Falo de capacidade de compreender o mundo, a sociedade em que atuam, os cidadãos que os elegem. Nesse ponto, falta-lhes o fundamental. Ética pública democrática, domínio da linguagem, generosidade cívica, comunicação. Em muitos falta também honestidade.

Segundo, os partidos vivem em crises que se sucedem sem interrupção e os impedem de atuar como entes coletivos, que saibam disputar o poder sem virar as costas para a sociedade e com coesão suficiente para que sejam confiáveis para o eleitorado. Ora se estapeiam em brigas internas fratricidas, ora se arrastam para obter os apanágios e as prebendas do governo de plantão, ora se entregam aos mandachuvas de sempre, incapazes de confrontá-los ou ponderar sua imprescindibilidade. Gostam de polarizações simplificadoras, da posição confortável de repetir mantras surrados, como se servissem para todo o sempre.

Terceiro, a base do que mais nos falta: capacidade de articulação nacional e democrática. O provincianismo e o tribalismo político predominam. Hoje se admite que em 2022 se vai repor a polarização que nos atazana a vida desde 2018. Fala-se em “terceira via” como se fosse mágica, mas pouco se faz por ela. Não se reconhece que o polo Lula é superior em tudo ao polo Bolsonaro e que, portanto, não se deveria bater em Lula e nos petistas, mas, sim, forçá-los ao entendimento amplo. O PT poderá voltar ao governo, por que não? Tudo terá de ser processado para que o País renasça. Por todos, incluídos Lula e o PT. Sem isso será mais do mesmo.

Lula e o PT, afinal, não são os únicos jogadores e é muito fácil atribuir a eles a responsabilidade pela não existência do que poderia reconstruir o Brasil e unificar os brasileiros. É fácil, mas é um equívoco, que somente serve para ocultar a incompetência que grassa entre os demais jogadores.

LEIA TAMBÉM: Tática e Manobra

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(*) Originalmente publicado em "O Estado de São Paulo", 22 de maio de 2021.

(**) Professor Titular de Teoria Política da Unesp.

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