O outro não é inimigo


"Precisamos exigir mais controle e investigação sobre a circulação das armas de fogo no país. Como não se montou uma força-tarefa para investigar os comerciantes legais e ilegais de armas ou uma Operação Lei Desarmada para fiscalizar os que as portam em locais públicos? Carecemos de ações culturais e educativas contínuas para desconstruir o etos guerreiro, responsável pelo uso impulsivo que fazem delas jovens e policiais".
Alba Zaluar*
Junho-2018

Dualizou-se e rachou-se o país em dois pedaços inimigos, incapazes de interagirem e conversarem. No calor das emoções, foi-se do agônico para o antagônico, onde a possibilidade de escutar o outro, de ter compaixão pelo seu sofrimento, desapareceu. Mas haverá um abismo intransponível entre brancos e negros, elite e povo, classe média e pobres? Certamente não dentro das favelas, onde também há pessoas de classe média, brancos e de escolaridade mais alta.

Alba Zaluar - Antropóloga

Para reformar a segurança pública no país, será preciso desconstruir falsas polaridades e parar de estimular ódios porque, segundo inúmeros estudos internacionais, é a construção do outro como inimigo desumanizado que motiva um ser humano a se armar e matar outros seres humanos, de diferentes religiões, raças, ou classes de escolaridade e rendimento, isto é, classes sociais não antagônicas. Nos anos pesquisando jovens vulneráveis do Rio de Janeiro, deparei-me com a definição de um inimigo ameaçador que justifica os ataques letais contra ele. É com base nessa construção imaginária que os meninos da favela se transformam em traficantes soldados. É com ela que os policiais, fardados ou não, se transformam em policiais guerreiros. Para isso, contam com a simbologia e a eficácia de armas de fogo que matam rapidamente, dando aos que as usam a sensação de poder sobre a vida e a morte dos outros. Nada mais atraente para os homens em busca de afirmação e poder. Nada mais ilusório pois quem usa armas é alvo preferencial de tiros. Até que ponto a tese do genocídio negro não estimula o ódio e a agressividade entre negros vítimas do racismo de policiais, e entre os policiais apresentados como seus algozes?

É preciso pensar em projetos para ganhar os jovens atraídos pelos comandos de crime organizado que atuam hoje em todo o território nacional, desmantelando a atração exercida por este importante ator nas trevas das atividades empresariais. As armas de fogo, com a posse das quais os jovens vulneráveis prosseguem se sentindo poderosos e protegidos pela organização criminosa, continuaram entrando no país. As drogas, com as quais tantos se compensam pelas frustrações e estresses de viver numa sociedade altamente desigual e competitiva, continuaram sendo vendidas ilegalmente dando enormes lucros para os seus empreendedores. Nada foi feito para mudar essa atração pelo negócio ilegal altamente lucrativo.

Recentes estudos internacionais falam dessa guerra irregular, selvagem, sem limites institucionais que se espalhou pelo mundo na forma do que se denominou Transnational Organized Crime (TOC), baseada nos negócios ilegais que trazem muito ganho quando garantem a impunidade dos seus agentes, ou na forma de organizações fundamentalistas baseadas no terror contra outras religiões, justificadas pela verdade incontestável das suas crenças. O que há de comum nessas organizações com características tão diferentes é o uso de armas leves — que podem ser colocadas nas mãos dos muito jovens, até mesmo crianças — assim como a facilidade com que superam fronteiras porosas entre países com institucionalidade fraca. Fazem parte do processo de globalização, aquele que poderia ser chamado de globalização das trevas ou infra globalização por ser pouco visível, mas destruidor do respeito às leis e aos direitos, ou seja, ao estado democrático de direito. Muitos estados constituídos também praticam formas de terrorismo e de interferência em países cujas fronteiras invadem. Porém, no Brasil, enfrentamos, sim, os efeitos desagregadores do TOC.

Precisamos exigir mais controle e investigação sobre a circulação das armas de fogo no país. Como não se montou uma força-tarefa para investigar os comerciantes legais e ilegais de armas ou uma Operação Lei Desarmada para fiscalizar os que as portam em locais públicos? Carecemos de ações culturais e educativas contínuas para desconstruir o etos guerreiro, responsável pelo uso impulsivo que fazem delas jovens e policiais. É o maior desafio, pois o medo de morrer armou mãos e cabeças e justificam as mortes de inimigos imaginários. Os efeitos, inclusive na formação subjetiva dos que se tornam autores, mas também vítimas da violência armada, só podem ser enfrentados com a cooperação de todos.
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(*) Professora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj
Publicado em O Globo, 25/06/2018