Marielle e a crise da democracia


Editores de "Democracia e Socialismo"
Março 2018

Por tudo de libertador, humanamente elevado e heroico que Marielle encarna e simboliza, sua execução bárbara e a de seu motorista Anderson é uma das piores afrontas à nossa democracia. Concentra num momento breve, e assim realça, o quotidiano surdo da brutalidade, da lei do mais forte, que a todo tempo submete amplas camadas do povo brasileiro em sua secular história de opressão.

Passados mais de 30 anos das lutas que culminaram na Constituição de 1988, no fundo se trata da mal resolvida questão democrática. Não se consolidaram e menos ainda avançaram as inegáveis conquistas democráticas daquele pacto constitucional.




De um lado reproduz-se o contexto histórico de autoritarismo, compadrismo, patrimonialismo, clientelismo, coronelismo, e corrupção, patrocinado pelas forças do atraso, mantendo um povo atemorizado, manipulado, carente de informação e educação, alienado, preso a crenças e valores de séculos passados.

De outro lado, as forças sociais e políticas modernas, herdeiras que são das conquistas de 1988, tem sido incapazes de construir a unidade necessária ao enfrentamento de nosso passivo social histórico.

O erro vem também dos que subestimam a importância decisiva das instituições democráticas que já temos. Tomam-nas como um elemento dado, trazido de um passado autoritário, capturadas irremediavelmente por elites reacionárias e atrasadas, como se não estivéssemos ameaçados por retrocessos maiores. A democracia que temos lhes é meramente instrumental, que ao mesmo tempo se usa e se repudia. É ferramenta de uma pedagogia da desconfiança, do "nós contra eles", seja para conduzir o povo atrás de um líder iluminado, seja para apostar no levante popular em algum dia absolutamente indeterminado, que a tudo destrua e refaça numa "outra" democracia.

Mas o Brasil moderno, daquelas mesmas bases sociais, de ampla gente, diversa em comportamentos, valores e opções políticas, anseia por cidadania e direitos plenos para todos, com olhar no futuro e no que há de progressista no resto do mundo.

Temos as lições da obra inacabada da Constituição de 1988. Quebrara-se em seguida a unidade das forças democráticas que nos levara até lá, paralisando desde então seu impulso democrático e reformista. E agora temos a dolorosa lição destas horas em que somos Marielle. Não há saída fora das instituições democráticas que temos. Não há saída fora da cooperação com os agentes do Estado brasileiro. Não há saída sem a unidade de todos os democratas.

A Vitória da Constituição


A preocupação de Werneck Vianna é com a democracia brasileira, cuja conquista custou à nossa geração sangue, suor e lágrimas. Tal preocupação faz sentido tendo em vista não só a história de nossa república como as peripécias recentes pelas quais passaram nossas instituições, do impedimento da ex-Presidenta à confusão entre as atribuições dos diferentes poderes, em particular a judicialização da política. Mas neste momento, com o movimento do Poder Judiciário, capitaneado pela Presidente do STF,  voltando a limitar-se à sua área, Werneck acusa nuvens negras ameaçando a realização da boa travessia até outubro próximo. Vamos ao artigo.

Sergio Augusto de Moraes

Domingo, 4 de março de 2018 - O Estado de São Paulo
Luiz Werneck Vianna
Sociólogo PUC-RJ

A vitória da Constituição


A saída do labirinto em que nos perdemos já foi encontrada na obediência ao calendário eleitoral, e não à toa ele já virou alvo dos que desejam mover para trás a roda da História.

Para quem queria a ocupação das ruas pelo povo, o cenário deste carnaval que passou, com as multidões que mobilizou nos blocos e nas escolas de samba, principalmente na capital paulista, ainda sem tradição nesse tipo de manifestação carnavalesca, surpreendeu os mais céticos, que não esperavam a volta da alegria na vida popular. Embora sem perder a conotação de crítica social, o momento catártico foi o dominante entre a nova geração, que ainda não conhecia a experiência carnavalesca, em particular entre as jovens que acorreram em massa aos blocos, num movimento indisfarçável de afirmação de gênero.

Com esse registro, a que se deve acrescentar o do desfile das escolas de samba, a política conta com mais uma matéria para a reflexão nesta hora de seleção das candidaturas presidenciais, ainda sem definição. Relativizando o caso de alguns desfiles que optaram por uma crítica política contundente ao governo, uma vez não se pode evitar o comentário do jornalista Ancelmo Gois, ao lembrar que no Brasil “prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme, traficante se vicia e uma escola comandada por um bicheiro, a querida Beija-Flor, vence o carnaval que fala de corrupção” (O Globo 15/2).