O mal-estar na civilização em tempos de pandemia

Sergio Gonzaga de Oliveira (*)
Abril-2020
A presença do novo coronavírus vem provocando um elevado estresse na maioria dos países por onde passa. As mortes no mundo já ultrapassam a casa das 150 mil pessoas e nada parece indicar que essa triste escalada vai ser contida no curto prazo. A dura experiência tem demonstrado que um Estado estruturado e eficiente é a principal arma de enfrentamento para esse tipo de crise. Isto certamente irá se refletir nos futuros debates sobre o papel do Estado no modelo político-econômico dominante, indicando em muitos casos a necessidade de fortalecimento das estruturas estatais em todos os países. Entretanto, na prática os caminhos possíveis não são tão simples. A humanidade atravessa um momento de sua evolução onde o sistema de produção capitalista e o desenvolvimento tecnológico têm desencadeado alguns fenômenos que tendem a fragilizar os Estados nacionais. Este é o tema principal de dois artigos escritos para este blog sob o título de “O mal-estar na civilização”. O primeiro foi postado em janeiro próximo passado e o segundo ainda não tinha sido publicado, embora tenha sido escrito antes da rápida evolução da pandemia. Como o leitor poderá verificar, suas observações são bastante atuais e merecem nossa atenção. Segue-se o segundo artigo:
Hospital de campanha sendo montado

O mal estar na civilização (II)

No artigo anterior, postado em janeiro próximo passado, tomei emprestado de Freud a expressão “o mal-estar na civilização” para associá-la a uma crescente onda de rebeliões populares que se espalharam por várias partes do mundo; seguidas da ascensão de forças políticas radicais que não tinham, até então, expressão eleitoral significativa. Por conta disso, formulei a hipótese de que essa insatisfação generalizada tenha um fundamento comum. Seja o resultado de uma conjunção perversa entre a tendência histórica de concentração de renda, observada por pesquisas empíricas recentes, e alguns fenômenos econômicos, políticos, sociais e demográficos que têm dificultado ou até impedido as ações distributivas realizadas tradicionalmente através do Estado.


A concentração de renda

Com relação à concentração de renda, relatei que alguns pesquisadores mostraram que a liberação das forças de mercado, como querem algumas escolas do pensamento econômico, levam com muita frequencia à concentração de renda. O trabalho mais conhecido é o de Thomas Piketty descrito em seu livro “O Capital no Século XXI” (1). Mais recentemente, Òscar Jordà, professor e pesquisador da Universidade da Califórnia publicou no conceituado The Quarterly Journal of Economics da Universidade de Oxford (2) os resultados de mais uma pesquisa confirmando o trabalho de Piketty. Esses acadêmicos constataram, no longo período analisado, uma diferença muito significativa entre a taxa média de retorno do capital e a taxa média de crescimento das principais economias do planeta, confirmando a tendência histórica de concentração da renda no sistema de produção capitalista.
A consciência de que algo grave está acontecendo em relação a essa concentração é tão forte que já extrapolou os alertas insistentes das organizações de esquerda. Exemplos marcantes, mas não únicos, são as declarações do mega investidor Warren Buffett informando, em tom crítico, que pagava menos impostos que sua secretária. Mais ainda, um blockbuster como o Coringa, de Todd Phillips, coloca no centro da trama a transformação do palhaço em um símbolo dos protestos dos excluídos de Gotham City contra a elite rica e predatória da cidade. Entre os bilionários americanos, no cinema de Hollywood ou nas redes sociais, cresce a constatação de que a conjunção histórica que reuniu a democracia representativa e o sistema de produção capitalista se aproxima de um ponto crítico. Muito provavelmente, devido à maior circulação de informações, a população, cada vez mais, percebe que o crescimento econômico favorece sistematicamente às camadas superiores da estratificação de renda. O descontentamento e as tensões na sociedade humana aumentam.
Mas isso não é tudo. Os caminhos tradicionais para promover o desenvolvimento econômico ou forçar a distribuição de renda parecem ser obstruídos por diversos fenômenos que evoluíram com as mutações tecnológicas das últimas décadas. Essas transformações fragilizam o Estado, ao mesmo tempo em que aumentam os custos e dispêndios necessários para manter o bem estar social.

O vírus, a era global e a oportunidade que se abre

Abaixo o belo, dramático e lúcido texto de Marco Aurélio sobre a COVID19. Ele acusa a necessidade de se criar “uma alavanca que faça a roda reformadora girar”. Ela ainda não existe. Mas, não só no Brasil como no mundo, seus germens estão na solidariedade entre os vizinhos, nas músicas que estão sendo criadas, na entrega do pessoal médico e para-médico, no esforço para ampliar o “fique em casa’, no empenho dos cientistas, em milhares, milhões de pequenos e grandes atos para vencer este inimigo da vida.
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O vírus, a era global e a oportunidade que se abre*

Marco Aurélio Nogueira**
Abril – 2020
Pandemias já houve muitas na história. Todas produziram abalos e levaram a grandes transformações. Mas nenhuma foi como está sendo a do novo coronavírus.
A gripe espanhola (1917-1918), “a mãe de todas as pandemias”, foi uma variante mutante do vírus Influenza. Os cálculos sugerem que de 30 a 40% da população mundial foram infectados, com cerca de 50 milhões de mortes. Só no Brasil morreram 35 mil pessoas. Os números são imprecisos, mas indicam bem a letalidade da doença.
Antes dela houve a epidemia da cólera (1817-1824), que matou milhares de pessoas em praticamente todos os continentes. Causada por uma bactéria intestinal, a doença continua produzindo estragos pelo mundo, especialmente onde faltam condições básicas de saneamento básico e higiene.
A “peste negra”, a peste bubônica, causada por uma bactéria presente em ratos pretos assolou o norte da Europa e atingiu a China, o Oriente Médio e a Rússia, entre 1347 e 1352. Calcula-se que provocou mais de 25 milhões de mortes, ou seja, cerca de 1/3 da população europeia à época.
Depois da gripe espanhola, o mundo foi periodicamente sacudido por doenças pandêmicas. Quanto mais o mundo se integrou e manteve acesas as turbinas do produtivismo, mais os problemas se tornaram comuns a todos. Em 1957 houve a Gripe Asiática (2 milhões de mortos), dez anos depois a Gripe de Hong Kong (H3N2), que matou 1 milhão de pessoas, em 2009 foi a Gripe Suína (H1N1), que chegou a 187 países e provocou cerca de 300 mil mortes. De 1980 em diante, mais de 20 milhões de pessoas morreram devido a complicações da AIDS, causada pelo vírus do HIV, transmitido sexualmente. Uma epidemia trágica, ainda sem cura ou vacina.
Marco Aurélio Nogueira
O que há de diferente na pandemia do novo coronavírus?
Primeiro de tudo, ela é a primeira pandemia de uma época categoricamente global. Coincide com a expansão dos mercados, a porosidade das fronteiras nacionais, o desenvolvimentismo produtivista e antiecológico, a alta mobilidade e a circulação intensa das pessoas. Tudo isso facilita enormemente a que o vírus se espalhe. A própria estrutura complexa da vida atual, com seus componentes de fragmentação e individualização, contribui para que tudo reverbere com intensidade e meio fora de controle. Há risco, insegurança, incertezas, que se integram à experiência da vida cotidiana e fazem, entre outras coisas, com que todas as decisões se tornem dilemáticas. Ao mesmo tempo, vamo-nos dando conta do que há de intolerável e inadmissível no modo como vivemos: a desigualdade, o racismo, a miséria, a falta de condições dignas de existência, o desperdício, a agressão ao meio ambiente.
A época também é de crise da política e da democracia representativa. Isso abre buracos complicados entre os cidadãos, os legisladores e os governantes, dificultando a que as decisões tomadas no vértice estatal repercutam positivamente na vida comunitária. Os cidadãos desconfiam de seus governos e tendem a problematizar tudo o que parte deles. Recusam-se a obedecer, em nome de suas verdades e da convicção de que os governantes nada mais são do que “politiqueiros”. Sem uma dose mínima de “obediência”, uma pandemia como a do COVID torna-se quase impossível de ser debelada.
Como lembrou Byung-Chul Han, filósofo coreano que vive em Berlim, uma das vantagens dos asiáticos é que eles aceitam com facilidade a autoridade do Estado e suas ordens. Estariam mais predispostos a aceitar um Estado autoritário, que procede por tecnologia da informação e controles digitais. É um recurso de sobrevivência, mas também pode ser a porta de entrada de formas ditatoriais e não democráticas de organização da comunidade política, com controles permanentes sobre tudo e todos.
Em segundo lugar, a pandemia atual convive com redes e trocas frenéticas de informação. Isso, por um lado, é excelente, pois facilita a comunicação e a cooperação entre médicos, pesquisadores e cientistas. Ter dados disponíveis e acessíveis é uma poderosa ferramenta de conhecimento e gestão. A malha digital e a inteligência artificial são preciosas seja para monitorar ameaças, seja para debelá-las.
Por outro lado, porém, essa nova estrutura de informação e comunicação promove a produção incessante e a disseminação de notícias falsas, boatos e mentiras, que geram confusão e dificultam a gestão do problema. É o que a OMS chamou de “massivo infodêmico”, algo como um vírus que espalha desinformação e ideologias regressivas, anticientíficas e irracionais. No caso concreto do COVID-19, ativistas desse tipo – humanos e robôs, sistemas programados para disparar mensagens – estão na dianteira do “negacionismo” obscurantista (recusando-se a reconhecer a pandemia, o aquecimento global e até a curvatura da Terra) e da pregação de saídas nacionalistas hostis ao entendimento entre os Estados.
O COVID-19 irrompeu num momento de exuberância científica, de conhecimento ampliado, de reconhecimento do valor da ciência e de suas aplicações na área médica e sanitária.
Se os humanos conseguirem suportar o impacto inicial da doença (o confinamento) e não forem prejudicados por governantes inescrupulosos, que manipulam politicamente o problema e duvidam de sua gravidade, é de esperar que o vírus seja controlado. A vida, porém, não será mais a mesma. A pandemia deixará marcas profundas na experiência humana individual e coletiva, afetando a economia, o modo como se trabalha, os relacionamentos, a política.
O sistema produtivo conhecerá crise profunda, agravando ainda mais o mundo do trabalho, muita coisa nova surgirá, os desafios serão grandiosos. Será difícil que o neoliberalismo se reponha e uma nova versão do Estado social baterá às portas. Em meio a dor e medo, poderá se abrir uma oportunidade para que se comece a pôr em xeque o desenvolvimentismo produtivista, com sua cegueira ecológica, climática, ambiental, sua voracidade predatória. Poderá ser um bom momento para que se recupere a ideia, tão mal aproveitada antes, de “sustentabilidade”.
O problema é que falta uma alavanca que faça a roda reformadora girar: política democrática, programas de ação, agentes organizados que unifiquem os cidadãos e pautem os governos. Há um “vazio” existencial e político que impede a materialização de propostas democráticas consistentes. Caso não se reverta essa situação, a pandemia causará um efeito negativo adicional: levará à acomodação dos interesses dominantes e à reprodução (modificada em maior ou menor grau) do desenvolvimentismo prevalecente, com sua voracidade destruidora.
Poderá até ser pior. Em vez de reformas para frente, a pandemia poderá impulsionar o ressurgimento do “nacionalismo”, das pulsões “patrióticas”, em detrimento dos esforços de articulação internacional, a imposição do unilateralismo no lugar do multilateralismo. O que levará de roldão a democracia e parte importante do que há de humanismo, fraternidade e liberdade na experiência moderna.
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(*) Publicado originariamente em "Revista Será?", 10/04/2020 
(**) Cientista político brasileiro, doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo e professor de teoria política na Universidade Estadual Paulista.


O Pôquer de Bolsonaro

Alfredo Maciel da Silveira
Abril-2020
Os humanos não podem ler os pensamentos uns dos outros. Nem por isso deixamos de praticar o pôquer, o xadrez, jogos estratégicos em geral, a começar pelos de guerras reais.
Todos os analistas de economia e de política estão perplexos com a lentidão com que o governo federal encaminha as medidas emergenciais de proteção social já aprovadas pelo Congresso e autorizadas pelo Supremo Tribunal Federal.
Em paralelo, Bolsonaro não tem escolha, a não ser declarar concordância com elas. Um blefe?


A todo momento insufla o desrespeito ao isolamento social, ameaça demitir o Min. Mandetta, e até aposta num decreto liberatório daquele isolamento, mesmo já advertido de sua provável inconstitucionalidade. E declara esperar “pelo povo”...
Editoriais da imprensa nesta sexta feira 3 de abril acham tudo isso “incompreensível”. Colunistas de política antevêem uma “crise institucional” se Bolsonaro avançar em suas ameaças.
Ora, ninguém até agora, ninguém que se saiba, levantou a hipótese da intencionalidade de Bolsonaro em postergar os pagamentos da proteção social emergencial!
Penso que ele o faz com a ajuda do Guedes. Por que o Guedes tirou da cartola a necessidade da PEC? Por que Bolsonaro ameaça a toda hora liberar as medidas de isolamento social?
Não por acaso, o Rodrigo Maia bancou o desafio. E o Congresso está aprovando a PEC em tempo recorde, em votação não presencial! E por ser uma PEC, não dependerá de sanção presidencial!
Isolado, e vendo derreter seu projeto autoritário, anti-democrático, de “poder-pelo-poder”, só resta a Bolsonaro a revolta popular pela fome!...
Ele ainda poderá ter os black-bozo-blocs saídos das cavernas virtuais para as ruas a insuflarem os saques às lojas, etc...
Mas haveria só um intervalo de tempo, uma " janela de oportunidade" para esta abominável aposta: teria que ser antes dos cadáveres nas ruas...

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Publicado originariamente na Página do Facebook "Esquerda Democrática", 3-04-2020.