Quem sabe sabe

Gabeira explica o momento de dispersão das oposições democráticas, o reagrupamento de forças pró-Bolsonaro, e os fracassos e desmandos do governo diante da crise social e da pandemia ainda não devidamente reconhecidos pela população. Aponta a unidade em torno de lutas quotidianas decisivas como vacinação em massa e ajuda emergencial. Recorda lições de conjunturas semelhantes, a indicarem que não se deva extrapolar o quadro presente para 2022. 

À percepção cautelosa e aguçada de Gabeira podemos associar um pensamento recorrente em Gramsci: “(...) Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade

Segue o artigo

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O precoce começo de 22

Fernando Gabeira*

Fevereiro-2021

Algumas religiões desaconselham explicar muito sua fé. O zen-budismo, por exemplo, costuma alertar: quem sabe não fala, quem não sabe é quem fala.

O grande viajante inglês Richard Francis Burton converteu-se ao sufismo e adotou, simultaneamente, uma tática chamada taquia, que consiste em esconder sua fé. A política é uma esfera muito diferente, mas também nela é preciso cuidado para não falar muito ou dar a falsa impressão de que sabe mais que os outros.

Lembro-me de que, em Brasília, os que caíam nessa tentação eram discretamente rejeitados e, quase sempre, chamados de professor de Deus. Conheci vários professores de Deus e, confesso, que sabiam realmente muito menos do que imaginavam saber.

Dito isso, é com humildade que meto a colher nesse debate sobre a oposição a Bolsonaro e as alternativas para derrotá-lo em 2022. Talvez, no chamado centro democrático, seja necessário superar o clima de lamentos, acusações mútuas e desencanto.

Fernando Gabeira
Não há nada de extraordinário na adesão de quadros do DEM e do PSDB a Bolsonaro. Durante a ditadura, o MDB se dividiu, e os que faziam oposição eram chamados de autênticos.

Sempre sobra um pequeno núcleo com visão nacional, e sua tarefa é levar o trabalho adiante, tratando de unificar a partir das lutas cotidianas, das quais não se pode fugir. Coisas simples e decisivas, como vacinação em massa, ajuda emergencial.

No campo da esquerda, houve também uma certa surpresa, no meu entender exagerada, com o lançamento de um candidato do PT, Fernando Haddad. O partido ocupou o poder durante muito tempo, tem uma grande bancada no Congresso, disputou com Bolsonaro o segundo turno.

Todos sabem que lançará candidato próprio. Mesmo nas eleições municipais de São Paulo, com poucas chances segundo as pesquisas, disputou o primeiro turno.

Já defendi a idéia de que é indispensável uma grande frente. No entanto as próprias eleições municipais mostraram possibilidades diferentes.

O candidato de Bolsonaro perdeu tanta consistência em São Paulo que nem chegou ao segundo turno. No Rio, o aliado do presidente chegou ao segundo turno tão combalido que seria derrotado pelo próprio índice de rejeição.

Alguma dessas hipóteses pode acontecer com Bolsonaro, uma vez que ainda não foi metabolizado pela população seu fracasso ao tratar da pandemia, muito menos sua irresponsabilidade em defender e produzir remédios ineficazes contra o coronavírus. E nem foi revelado amplamente à juventude do país seu trabalho de destruição da natureza.

O caminho pela frente, de um lado, é de crise social; de outro, uma aliança entre Bolsonaro e o Centrão, que pode até esboçar algumas respostas, mas, ao longo da história, tem se mostrado um tipo de aliança que cava um abismo entre política e sociedade.

Os que defendem a frente falam também de um projeto nacional, uma visão de como e para onde conduzir o Brasil, sua inserção internacional. É inegável a importância do argumento. No entanto a experiência tem mostrado também que muitos eleitores se definem por algum tema que lhes interessa e avaliam também a trajetória e a personalidade do candidato.

Por isso, talvez, em vez de estarmos vendo apenas a fragmentação de uma potencial frente única, estejamos assistindo às cotoveladas e artimanhas que antecedem o lançamento das candidaturas.

É importante que se lancem e comecem a trabalhar seriamente. Não existe uma certeza de que a eleição que virá repetirá os protagonistas da eleição de 2018. Muito menos a certeza de que, repetindo os protagonistas, repita o resultado.

Tenho dúvidas se conseguiremos deter satisfatoriamente a pandemia antes de 2022. Isso torna o caminho mais complicado, mas não impede a existência de um caminho aberto, ainda não fatalisticamente desenhado; enfim, um que depende daqueles que vão desbravá-lo.

LEIA TAMBÉM: Vida e Democracia

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(*) Fernando Gabeira é jornalista. Publicado originariamente em "O Globo", 15/02/2021.


Os sete segredos de 2020

Fevereiro - 2021

Nesta virada de ano Yanis Varoufakis publica novo artigo, agora focado na atuação dos governos e das instituições financeiras oficiais durante a pandemia, nas regiões do capitalismo mais avançado. 

Cidades fechadas na pandemia. Nápoles, Itália. Foto: Veja.

Varoufakis desmascara um modo de produção degenerado que já deixou de ser o capitalismo que apregoam (denomina-o “tecno-feudalismo”). Mais importante, mostra estarem historicamente construídas, e mais vivas do que nunca, a base produtiva de alta tecnologia e algumas das alavancas institucionais estratégicas para a superação do atual estado de coisas. Medidas propositivas o autor já esboçara no documento dirigido à Internacional Progressista, recentemente publicado neste Blog (ver "Um novo internacionalismo").

É mais um pequeno passo para identificarmos "(...) os meios necessários para por termo aos males descobertos (...) meios que não devem ser tirados da cabeça de ninguém, mas a cabeça é que tem de descobri-los nos fatos materiais da produção, tal qual a realidade os oferece" (F. Engels, “Do socialismo utópico ao socialismo científico”, 1877).

Segue o artigo.

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Os sete segredos de 2020*

Yanis Varoufakis**

ATENAS - Um castelo de cartas. Um conjunto de mentiras que aceitamos inconscientemente. É assim que nossas certezas parecem durante crises profundas. Esses episódios nos chocam ao reconhecermos como nossas suposições são inseguras. É por isso que este ano pareceu uma maré recuando rapidamente, obrigando-nos a enfrentar verdades submersas. 

Costumávamos pensar, com bons motivos, que a globalização desfigurou os governos nacionais. Os Presidentes curvaram-se diante dos mercados de títulos. Os primeiros-ministros ignoraram os pobres de seu país, mas nunca a Standard & Poor's. Os ministros das finanças se comportaram como os patifes do Goldman Sachs e os sátrapas do Fundo Monetário Internacional. Magnatas da mídia, homens do petróleo e financistas, não menos do que críticos de esquerda do capitalismo globalizado, concordaram que os governos não estavam mais no controle.

Então veio a pandemia. Da noite para o dia, os governos criaram garras e exibiram dentes afiados. Fecharam fronteiras e aterrissaram aviões, impuseram toques de recolher draconianos em nossas cidades, fecharam nossos teatros e museus e nos proibiram de confortar nossos pais moribundos. Eles até fizeram o que ninguém pensava ser possível antes do Apocalipse: cancelaram eventos esportivos.

O primeiro segredo foi assim exposto: os governos retêm um poder inexorável. O que descobrimos em 2020 é que os governos nacionais têm optado por não exercerem  seus enormes poderes de modo a que os enriquecidos pela globalização pudessem exercer os seus.

A segunda verdade é uma que muitos suspeitavam, mas eram tímidos demais para gritar: a árvore que faz brotar dinheiro é real. Os governos que proclamavam sua penúria sempre que chamados a pagar por um hospital aqui ou uma escola ali, de repente descobriram muito dinheiro para pagar férias forçadas e desempregados, nacionalizar ferrovias, assumir companhias aéreas, apoiar montadoras de automóveis e até mesmo sustentar academias e cabeleireiros.

Os que normalmente protestam que o dinheiro não cresce nas árvores, que os governos devem deixar os cavacos da sorte e do azar se espalharem onde quer que seja, engoliram a língua. Os mercados financeiros comemoraram, em vez de lançar um ataque à onda de gastos do estado.

A Grécia é um estudo de caso perfeito da terceira verdade revelada este ano: a solvência é uma decisão política, pelo menos no Ocidente rico. Em 2015, a dívida pública da Grécia de € 320 bilhões (US$ 392 bilhões) superava uma renda nacional de apenas € 176 bilhões. Os problemas do país foram notícia de primeira página em todo o mundo, e os líderes europeus lamentaram nossa insolvência.

Hoje, no meio de uma pandemia que piorou uma economia ruim, a Grécia não é um problema, embora nossa dívida pública seja € 33 bilhões mais alta e nossa receita € 13 bilhões mais baixa, do que em 2015. Poderes da Europa que antes haviam decidido ser suficiente uma década para lidar com a falência da Grécia, então decidiram declarar a Grécia solvente. Enquanto os gregos elegerem governos que transferem consistentemente para a oligarquia sem fronteiras qualquer riqueza (pública ou privada) que resta, o Banco Central Europeu fará o que for necessário - comprar tantos títulos do governo grego quanto necessário - para manter a insolvência do país fora dos holofotes.

O quarto segredo que 2020 revelou foi que as montanhas de riqueza privada concentrada que observamos têm muito pouco a ver com empreendedorismo. Não tenho dúvidas de que Jeff Bezos, Elon Musk ou Warren Buffett têm um talento especial para ganhar dinheiro e controlar mercados. Mas apenas uma pequena porcentagem da sua apropriação acumulada é o resultado da criação de valor.

Considere o aumento estupendo desde meados de março na riqueza dos 614 bilionários da América. Os US $ 931 bilhões adicionais que eles acumularam não resultaram de nenhuma inovação ou engenhosidade que gerou lucros adicionais. Eles ficaram mais ricos durante o sono, por assim dizer, à medida que os bancos centrais inundaram o sistema financeiro com dinheiro fabricado, fazendo com que os preços dos ativos e portanto a riqueza dos bilionários disparassem.

Com o rápido desenvolvimento, teste, aprovação e lançamento das vacinas COVID-19, um quinto segredo foi revelado: a ciência depende da ajuda estatal e sua efetividade é abstraída de seu suporte público. Muitos comentaristas se tornaram líricos sobre a capacidade dos mercados de responder rapidamente às necessidades da humanidade. Mas a ironia não deve escapar a ninguém: a administração do mais anticientífico presidente dos EUA de todos os tempos - um presidente que ignorou, intimidou e zombou de especialistas mesmo durante a pior pandemia em um século - alocou US $ 10 bilhões para garantir que os cientistas tivessem o recursos de que necessitavam.

Mas há um segredo mais amplo: enquanto 2020 foi um ano marcante para os capitalistas, o capitalismo como tal já deixou de sê-lo. Como isso é possível? Como os capitalistas podem florescer à medida que o capitalismo evolui para outra coisa?

Fácil. Os maiores apóstolos do capitalismo, como Adam Smith, enfatizaram suas consequências não intencionais: precisamente porque os indivíduos em busca de lucro não têm consideração por ninguém, eles acabam servindo à sociedade. A chave para converter o vício privado em virtude pública é a competição, que impele os capitalistas a buscarem atividades que maximizem seus lucros. Num mercado competitivo isto serve ao bem comum, aumentando a diversidade e a qualidade dos bens e serviços disponíveis, ao tempo em que baixa constantemente os preços.

Não é difícil ver que os capitalistas podem se sair muito melhor com menos competição. Este é o sexto segredo que 2020 expôs. Liberadas da competição, colossais empresas de plataforma como a Amazon se saíram surpreendentemente bem com a extinção do capitalismo e sua substituição por algo semelhante ao tecno-feudalismo.

Mas o sétimo segredo que este ano revelou foi como receber uma encomenda de prata. Embora introduzir mudanças radicais nunca seja fácil, agora está perfeitamente claro que tudo poderia ser diferente. Não há mais razão para aceitarmos as coisas como são. Pelo contrário, a verdade mais importante de 2020 é capturada no aforisma adequado e elegante de Bertolt Brecht: “Porque as coisas são como são, as coisas não permanecerão como são.”

Não consigo pensar em nenhuma fonte maior de esperança do que esta revelação, entregue num ano que a maioria preferia esquecer.

LEIA TAMBÉM: Um novo internacionalismo

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(*) Publicado originalmente em Project Syndicate - 28 de dezembro de 2020 - https://www.project-syndicate.org/commentary/seven-secrets-revealed-by-2020-by-yanis-varoufakis-2020-12?utm_source=project-syndicate.org&utm_medium=email&utm_campaign=authnote& 

(**) Yanis Varoufakis, ex-ministro das finanças da Grécia, é líder do partido MeRA25 e professor de Economia na Universidade de Atenas.

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