Dezembro- 2020
Yanis Varoufakis, economista,
membro do partido SYRIZA, da Grécia, tornou-se mundialmente conhecido desde
quando fora ministro das finanças do governo de esquerda grego em 2015. Esteve
à frente dos embates que por fim levaram infelizmente à capitulação do povo
grego perante as instituições oficiais centrais do sistema financeiro
internacional. Desde então Varoufakis voltou-se para uma riquíssima militância
e produção intelectual quanto à crise global do sistema capitalista e às vias
de construção de um mundo pós-capitalista, democrático e solidário.
Juntou-se a vários intelectuais
e lideranças políticas do mundo em prol da organização de uma "Internacional Progressista" - recentemente criada - com vistas à coordenação mundial das forças
progressistas, seja na pesquisa e conhecimento do movimento, crises e
transformações do capitalismo, seja na elaboração de estratégias e planos de
ação coordenados de amplas forças progressistas ao redor do mundo. Conforme
Varoufakis:
Se a nossa Internacional Progressista simplesmente criar espaço para a discussão aberta nas praças das cidades (como fez o Occupy Wall Street há uma década) ou apenas buscar emular esforços como o Fórum Social Mundial, ela acabará novamente fracassando. Para ter sucesso, precisaremos de um plano de ação comum e de uma estratégia de campanha incomum, que incentivem os progressistas ao redor do mundo a implementarem esse plano. Por último, mas não menos importante, precisaremos da vontade compartilhada para visualizar uma realidade pós-capitalista.
Por sua vez, este Blog tem
abordado reiteradamente a temática da crise do capitalismo no Sec. XXI que
aponta em direção a um novo internacionalismo, com um novo “intelectual
coletivo” nas condições contemporâneas de um mundo integrado e conectado, força dirigente
das massas oprimidas para a superação do capitalismo. São exemplo a seguintes
publicações do Blog:
“A época histórica. Fim da história?” (2017);
“Bernie Sanders em Davos –
propõe um novo movimento progressista mundial” (2018);
“Fadiga do Capitalismo” (entrevista
de Jean Ziegler - 2019).
No artigo a seguir,
Varoufakis analisa com seu grande conhecimento da situação concreta, as manobras
defensivas do capital financeiro internacional, reveladoras de seus poderes
econômico e político, em prejuizo de grandes massas da população. Recapitula a
ascenção dos movimentos populares diante da crise. Num primeiro momento sob as
bandeiras da esquerda. Mas em seguida, diante do seu refluxo e fracasso,
abrindo caminho à ascenção das forças de direita mais reacionárias.
Yanis Varoufakis |
Segue o artigo.
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Plano de ação para a Internacional Progressista
Yanis Varoufakis*
Nossa era será lembrada pela
marcha triunfante do autoritarismo e seu rastro, em que a vasta maioria da
humanidade passou por dificuldades desnecessárias e os ecossistemas do planeta
sofreram uma destruição climática que podia ter sido evitada. Por um breve
período — que o historiador britânico Eric Hobsbawm descreveu como “o curto
século 20” — as forças do establishment se uniram para lidar com os
desafios à sua autoridade. Foi uma fase rara, em que as elites tiveram que
enfrentar um leque de movimentos progressistas, todos buscando mudar o mundo:
social-democratas, comunistas, experimentos de autogestão, movimentos de
libertação nacional na África e na Ásia, os primeiros ecologistas, radicais,
etc.
Cresci na Grécia de meados da década de 1960, governada por uma ditadura de direita estimulada pelos Estados Unidos, sob o comando de Lyndon Johnson (cujo governo foi um dos mais progressistas internamente, mas que não hesitou em apoiar fascistas na Grécia ou em bombardear o Vietnam). O medo e a aversão ao populismo de direita que encontramos hoje estampado nas páginas do New York Times, simplesmente não existiam naquela época.
As coisas mudaram depois de
2008, o ano em que o sistema financeiro ocidental implodiu. Após 25 anos de
financeirização sob o manto ideológico do neoliberalismo (entenda mais no artigo
de Ann Pettifor sobre o sistema financeiro global), o capitalismo global teve
um espasmo semelhante ao de 1929, que quase o deixou de joelhos. A reação
imediata dos governos a esta crise, para apoiar as instituições financeiras e
os mercados, foi ligar as impressoras dos bancos centrais e transferir as
perdas bancárias para as classes trabalhadoras e médias, por meio dos chamados
“resgates”.
Essa combinação de um
socialismo para poucos e uma rígida austeridade para as massas, desencadeou
duas coisas. Em primeiro lugar, deprimiu o investimento real global, pois as
empresas sabiam que as massas tinham pouco para gastar em novos bens e
serviços. Isso gerou descontentamento entre muitos, enquanto poucos recebiam
grandes doses de “liquidez”.
Em segundo lugar, eclodiram
inicialmente levantes progressistas — dos Indignados na Espanha e
os Aganaktismeni na Grécia, ao Occupy Wall Street e a
várias forças de esquerda na América Latina. Esses movimentos, no entanto,
tiveram vida relativamente curta e foram tratados de modo eficiente
pelo establishment, tanto de forma direta, com o esmagamento da
primavera grega em 2015, por exemplo; como indireta, como no enfraquecimento de
governos esquerdistas latino-americanos quando caiu a demanda chinesa por suas
exportações.
À medida em que as causas
progressistas foram sendo eliminadas uma a uma, o descontentamento das massas
teve que encontrar uma expressão política. Imitando a ascensão de Mussolini na
Itália, que prometeu cuidar dos mais fracos e fazer com que eles se sentissem
orgulhosos de serem italianos novamente, testemunhamos a ascensão do que
podemos chamar de Internacional Nacionalista, mais claramente expressa nos
argumentos de direita alimentando a saída da Grã-Bretanha da União Europeia e
nas vitórias eleitorais de nacionalistas de direita: Donald Trump nos Estados
Unidos; Jair Bolsonaro no Brasil; Narendra Modi na Índia; Marine Le Pen na
França; Matteo Salvini na Itália e Viktor Orban na Hungria.
E assim, pela primeira vez
desde a Segunda Guerra Mundial, o grande confronto político deixou de ser entre
o establishment e os diversos progressismos, para se tornar um
conflito entre diferentes partes do establishment. Uma parte aparece
como os baluartes da democracia liberal; a outra, como os representantes do
movimento anti-liberal.
Evidentemente, esse choque
entre o establishment liberal e a Internacional Nacionalista é totalmente
ilusório. Na França, o centrista Macron precisou da ameaça do nacionalismo de
extrema-direita de Le Pen, sem o qual ele nunca seria presidente. E Le Pen
precisou de Macron e das políticas de austeridade
do establishment liberal, que geraram o descontentamento que
alimentou suas campanhas. Da mesma forma nos Estados Unidos, onde as políticas
dos Clinton e dos Obama, que resgataram Wall Street, alimentaram o
descontentamento que criou Donald Trump — cuja ascensão reforça, em um círculo
sem fim, as defesas de Clinton e Biden contra alguém como Bernie Sanders. Foi
um mecanismo de reforço entre o establishment e os chamados
populistas, replicado em todo o mundo.
No entanto, o fato do
establishment liberal e a Internacional Nacionalista serem co-dependentes, não
significa que o choque cultural e pessoal entre eles não seja autêntico. A
autenticidade de seu confronto, apesar da falta de qualquer diferença política
real entre eles, tornou quase impossível para os progressistas serem ouvidos,
devido à cacofonia causada pelas muitas variantes conflitantes do
autoritarismo.
É exatamente por isso que
precisamos de uma Internacional Progressista — um movimento internacional de
progressistas para conter a falsa oposição entre duas variedades do
autoritarismo globalizado (o establishment liberal e a Internacional
Nacionalista) que nos prendem em uma típica agenda de negócios que destrói as
perspectivas de vida e desperdiça as oportunidades de frear a catástrofe
climática.
A questão, então, é: o que uma
Internacional Progressista faria? Com que propósito? E por quais meios?
Se a nossa Internacional
Progressista simplesmente criar espaço para a discussão aberta nas praças das
cidades (como fez o Occupy Wall Street há uma década) ou apenas buscar emular
esforços como o Fórum Social Mundial, ela acabará novamente fracassando. Para
ter sucesso, precisaremos de um plano de ação comum e de uma estratégia de
campanha incomum, que incentivem os progressistas ao redor do mundo a
implementarem esse plano. Por último, mas não menos importante, precisaremos da
vontade compartilhada para visualizar uma realidade pós-capitalista.
Permitam-me destrinchar esses
três pré-requisitos, um a um:
Pré-requisito 1: Um plano de ação progressista comum
Os fascistas e os banqueiros
têm um programa comum. Se você conversar com um banqueiro no Chile ou na Suíça,
com um apoiador de Trump nos Estados Unidos ou com um eleitor de Le Pen na
França, você ouvirá a mesma narrativa. Os banqueiros dirão que a regulamentação
e os controles de capital são prejudiciais ao progresso; que a engenharia
financeira aumenta a eficiência com que o capital flui para a economia; que o
setor privado é sempre melhor na prestação de serviços do que o setor público;
que salários mínimos e sindicatos impedem o crescimento ou que as mudanças
climáticas só podem ser enfrentadas pelo setor privado.
Por sua vez, a narrativa
Internacional Nacionalista é a seguinte: cercas elétricas nas fronteiras são
essenciais para preservar a soberania nacional; os imigrantes ameaçam os
empregos locais e a coesão social; os muçulmanos, em particular, não podem ser integrados
e precisam ser mantidos pra fora; os estrangeiros conspiram com as elites
liberais locais para enfraquecer a nação; as mulheres devem ser incentivadas a
criar seus filhos em casa; os direitos LGBTQI+ vêm em detrimento da moralidade
básica e, por último, mas não menos importante: “Dê-nos o poder de agir de
forma autoritária, que nós faremos com que o país volte a ser grandioso e você
orgulhoso”.
Os progressistas também
precisam de narrativas compartilhadas. Felizmente, sabemos o que deve ser
feito: a geração de energia deve transitar maciçamente de combustíveis fósseis
para fontes renováveis, principalmente eólica e solar; o transporte terrestre
deve ser eletrificado, enquanto o transporte aéreo e o transporte marítimo
devem recorrer a novos combustíveis com zero emissão de carbono (como o
hidrogênio); a produção de carne deve diminuir substancialmente, com maior
ênfase nas culturas orgânicas; e limites estritos ao crescimento físico desde
toxinas até cimento são essenciais.
Também sabemos que tudo isso
custará pelo menos 10% da receita global, ou quase 10 trilhões de dólares,
anualmente – uma soma que pode ser facilmente mobilizada, desde que estejamos
prontos para criar instituições para coordenar as várias ações e redistribuir
as receitas entre o Norte e o Sul globais. Para conseguir isso, precisamos
invocar o espírito do New Deal original de Franklin Roosevelt — uma
política que teve sucesso porque inspirou pessoas que haviam perdido a
esperança de que existissem maneiras de direcionar os recursos ociosos ao
serviço público.
Nosso Green New Deal
Internacional terá de utilizar instrumentos de crédito transnacionais e
impostos sobre carbono — de modo que o dinheiro arrecadado com a taxação do
petróleo possa ser devolvido aos cidadãos mais pobres que dependem de carros a
gasolina, a fim de fortalecê-los de modo geral, permitindo, também, que possam
comprar carros elétricos. Para aplicar esses recursos em investimentos
ecológicos, é necessária uma nova Organização para a Cooperação Ambiental de
Emergência, com o fim de reunir a inteligência da comunidade científica
internacional em algo como um Projeto Manhattan verde — que vise, em
vez do assassinato em massa, o fim da extinção.
Sendo ainda mais ambiciosos,
nosso plano comum deveria incluir uma União de Compensação Monetária
Internacional, do tipo sugerido por John Maynard Keynes durante a conferência
de Bretton Woods em 1944, apresentando restrições bem elaboradas aos movimentos
de capitais. Ao reequilibrar salários, comércio e finanças em escala global, tanto
a migração involuntária quanto o desemprego involuntário diminuirão, encerrando
assim o pânico moral sobre o direito humano de circular livremente pelo
planeta.
Pré-requisito 2: Uma campanha incomum
Sem isso, nosso plano comum,
o Green New Deal Internacional, permanecerá só no rascunho. E aqui
vai uma ideia de campanha: precisamos identificar as empresas multinacionais
que abusam dos trabalhadores localmente e atacá-las globalmente, utilizando a
grande disparidade de custos para os participantes de, por exemplo, boicotar a
Amazon por um dia e os custos dos mesmos boicotes para as empresas-alvo.
Boicotes de consumidores globais não são novos, mas agora, usando o poder de
megaempresas de plataforma, como a Amazon, contra elas próprias, podem ser
muito mais eficazes. Especialmente, em uma segunda fase, eles seriam combinados
com ações de greve local envolvendo os sindicatos mais importantes. Essa ação
global em apoio aos trabalhadores ou comunidades locais tem um alcance imenso.
Com comunicação e planejamento inteligentes, eles podem se tornar uma forma
popular de as pessoas no mundo todo compartilharem o sentimento de estar
ajudando a tornar o planeta um lugar mais livre e justo.
Claro, para que isso aconteça,
nossa Internacional Progressista requer uma organização internacional ágil. O
problema das organizações que são capazes de uma coordenação global é que elas,
sorrateiramente, reproduzem em si burocracias, exclusão e jogos de poder. Como
podemos evitar que o neoliberalismo e o nacionalismo autoritário destruam o
mundo sem criar nossa própria variedade de autoritarismo? Reconheço que é mais
difícil encontrar a resposta certa para essa pergunta sendo progressistas que
rejeitamos as hierarquias, as burocracias e as invasões do paternalismo. Mas
temos o dever de encontrá-la.
Pré-requisito 3: Uma visão compartilhada do pós-capitalismo
Consideremos o que aconteceu no dia 12 de agosto de 2020, quando foi divulgada a notícia de que a economia britânica havia sofrido a maior queda de sua história. A Bolsa de Valores de Londres deu um salto de mais de 2%! Nunca tinha acontecido nada comparável a isso. Fatos semelhantes ocorreram em Wall Street, nos Estados Unidos.
Efetivamente, quando a Covid-19
se deparou com a bolha gigantesca na qual governos e bancos centrais têm
mantido corporações e instituições financeiras vivas como zumbis, desde 2008,
os mercados financeiros finalmente se desvincularam da economia capitalista em
seu redor.
O resultado destes
desenvolvimentos notáveis é que o capitalismo já começou a evoluir para um tipo
de feudalismo tecnologicamente avançado. O neoliberalismo é hoje o que o
marxismo-leninismo costumava ser durante os anos 80 soviéticos: uma ideologia
totalmente em desacordo mesmo com o regime que a invocou. Após o colapso do
bloco soviético em 1991, e do capitalismo financeirizado em 2008, estamos numa
nova fase, em que o capitalismo está morrendo e o socialismo se recusa a
nascer.
Caso eu esteja certo, mesmo
aqueles progressistas que ainda nutrem esperanças de reformar ou civilizar o
capitalismo devem considerar a possibilidade de olharmos para além do
capitalismo — ou, na verdade, de planejar uma civilização pós-capitalista. O
problema é que, como meu grande amigo Slavoj Zizek apontou, a maioria das
pessoas acha mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.
Para combater essa falha de
nossa imaginação coletiva, em meu livro mais recente, intitulado Another
Now: Dispatches from an alternative present (“Outro Agora: despachos de um
presente alternativo”), tento imaginar o que ocorreria se minha geração não
tivesse perdido todos os momentos cruciais que a história nos apresentou. E se
tivéssemos aproveitado o momento de 2008 para uma revolução pacífica de alta
tecnologia, que tivesse nos levado a uma democracia de economia
pós-capitalista? Como seria?
Haveria mercados para bens e
serviços, já que a alternativa — um sistema de racionamento do tipo soviético,
que confere poder arbitrário ao pior dos burocratas — é deprimente demais. Mas,
para que um novo sistema seja à prova de crises, há um mercado que não podemos
nos dar ao luxo de preservar: o mercado de trabalho. Por que? Porque, se que o
tempo de trabalho é reduzido a um bem de aluguel, os mecanismos de mercado
inexoravelmente empurram seu preço para baixo, enquanto mercantilizam todos os
aspectos do trabalho (e, na era do Facebook, até do lazer). Quanto maior a
capacidade do sistema para fazê-lo, menor o valor de troca de cada unidade de
produção que ele gera, menor a taxa média de lucro e, em última análise, mais
nos aproximamos de uma nova crise sistêmica.
Uma economia avançada pode
funcionar sem mercados de trabalho? Claro que sim! Considere o princípio de a
cada um funcionário, uma ação e um voto. Alterar a legislação societária de
modo a transformar cada funcionário em um sócio igual (ainda que não igualmente
remunerado), através da concessão de um voto não negociável de uma pessoa-uma
ação-um voto, é tão inimaginável e radical hoje quanto o sufrágio universal
parecia ser no século 19. Se, além dessa transformação fundamental da
propriedade da empresa, os bancos centrais proporcionassem a todos os adultos
uma conta bancária gratuita, passaríamos a ter uma economia de mercado pós-capitalista.
Com o fim dos mercados de
ações, a alavancagem da dívida associada a fusões e aquisições também se
tornaria uma coisa do passado. A Goldman Sachs e os mercados financeiros que
oprimem a humanidade, subitamente deixariam de existir — sem nem ser preciso
bani-los. Livres do poder corporativo, livres da indignidade imposta aos
necessitados pelo estado de bem-estar social, da tirania dos lucros e do cabo
de guerra entre lucros e salários, as pessoas e comunidades podem começar a
imaginar novas maneiras de empregar seus talentos e criatividade.
Chegamos a uma bifurcação. O
capitalismo está em crise profunda, embora sigamos a caminho da distopia.
Somente uma Internacional Progressista poderá ajudar a humanidade a alterar o
seu caminho.
LEIA TAMBÉM:
“A época histórica. Fim da história?”
“Bernie Sanders em Davos –propõe um novo movimento progressista mundial”
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(*) Originalmente publicado em 10/06/2020, blog de Varoufakis, https://www.yanisvaroufakis.eu/2020/10/06/how-progressives-could-still-win-the-21st-century-the-correspondent/ Aqui se republica conforme tradução de Simone Paz em Outras Palavras, 09/10/2020.
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