Os ladrões das multidões

Sergio Augusto de Moraes
Dezembro - 2019
Nos ensaios* “Robôs e Capitalismo” e "Capitalismo na era do computador" , Tessa M. Suzuki** demonstra e discute:
a) o deslocamento no capitalismo tardio, do local de produção da mais-valia, da linha de produção material de mercadorias, típicas do capitalismo industrial, para a produção imaterial de conhecimento incorporado às inovações;
b) que, nestes casos, a inovação tem que ser contínua e perpétua;
c) que assim o conhecimento é transformado em mercadoria;
d) que a mercadoria conhecimento torna-se um produto da sociedade como um todo;
e) que quem “captura” o conhecimento social e o transforma em mercadoria, dele extraindo mais-valia, são as grandes corporações;
f) que a sociedade como um todo, e não uma classe específica, passa a ser o objeto da exploração por aquelas corporações.

Por outro lado, Don Tapscott, canadense especialista em internet corporativa, em entrevista sobre Sociedade e Internet***, diz que “A idéia de que a concentração de informação é sinônimo de poder faz parte do velho modelo industrial. A dinâmica das revoluções se baseava num líder e numa vanguarda...foi assim com George Washington, Fidel Castro e Mao-Tsé-Tung. Agora, como a internet reduz o custo da colaboração, as pessoas podem se unir da noite para o dia com uma força tão extraordinária a ponto de, no Egito, derrubar Hosni Mubarak, na Tunísia...etc” .
Hoje poderíamos acrescentar: no Brasil em 2013, na França, na Bolívia, na Colômbia, no Chile.
Parece que a universalização e o acesso instantâneo à informação e ao conhecimento tem dois lados: por um serve de base às grandes corporações para continuar extraindo mais-valia; por outro é um instrumento indispensável às grandes manifestações populares de nossos dias.
Mas como vemos, nestes casos, isto não basta. Falta definir quem somos e para onde queremos ir.

__________________________________
*Aqui disponibilizados em sua íntegra, versões em português, através dos links:
Tessa Morris-Suzuki, “Robots and Capitalism”, New Left Review 147, setembro/outubro, 1984. A autora deu sequência ao debate suscitado por este artigo mediante a publicação de “Capitalism in the computer age”, New Left Review, I/160, Novembro-Dezembro 1986. Foram republicados pela editora Verso Books em “Cutting Edge – Technology, Information, Capitalism and Social Revolution”, London, New York, 1997.

*** Entrevista “A inteligência está na rede” Veja, edição 2212, em 2011.

Família Bolsonaro testa a resistência da democracia

A cada provocação a família Bolsonaro testa a resistência da democracia brasileira. O jogo entre pai e filhos pode parecer confuso, mas é combinado.
_________________________

Um jogo combinado*

Bernardo Mello Franco
Novembro - 2019
A família Bolsonaro tem método. Enquanto o pai insufla seguidores contra as instituições, os filhos fazem ameaças explícitas à democracia.
Ontem o deputado Eduardo Bolsonaro sugeriu a edição de um “novo AI-5”. Apontado como o futuro chefe do clã, ele já havia ameaçado enviar “um soldado e um cabo” para fechar o Supremo.
O AI-5 original foi editado pela ditadura militar em 1968. Suspendeu direitos individuais, instituiu a censura prévia e autorizou o presidente a fechar o Congresso. O ato deu sinal verde para a tortura e a morte de opositores. Significou o endurecimento do regime, cultuado até hoje pelo inquilino do Planalto.
Bernardo Mello Franco
Na época, os militares alegavam que era preciso combater “processos subversivos” e “fatores perturbadores da ordem”. A Guerra Fria acabou, mas Bolsonaro busca o mesmo pretexto ao estimular teorias conspiratórias e insinuar que “inimigos internos” não o deixam governar.
Na entrevista a Leda Nagle, que já apresentou um programa chamado “Sem Censura”, Eduardo alegou o risco de uma radicalização de esquerda. Mas quem radicaliza no país é a extrema direita, que chegou ao poder pelas urnas sob a liderança do capitão.
A nova polêmica segue um roteiro conhecido. Em setembro, o vereador Carlos Bolsonaro já havia escrito que a “transformação que o Brasil quer” não aconteceria por “vias democráticas”.
O comportamento da família mostra uma divisão de tarefas, em que os filhos se revezam no papel de incendiários. Quando a provocação repercute mal, o pai se fantasia de bombeiro e finge adverti-los.
A cada afronta, o clã testa a resistência da democracia e prepara o próximo avanço. É uma estratégia de aproximações sucessivas, como prescrevem os manuais militares.
Os Bolsonaro estão unidos no mesmo projeto autoritário, que busca remover limites ao poder do Executivo. O jogo pode parecer confuso, mas é combinado. Ontem o presidente disse lamentar as declarações do Zero Três a favor do AI-5. Quando o ato fez 40 anos, ele subiu à tribuna da Câmara para louvá-lo.
_________________________________
(*) Publicado originariamente em O Globo, 01 de novembro de 2019

Família Bolsonaro testa a resistência da democracia

A cada provocação a família Bolsonaro testa a resistência da democracia brasileira. O jogo entre pai e filhos pode parecer confuso, mas é combinado.
______________________

Um jogo combinado*

Bernardo Mello Franco
Novembro - 2019

A família Bolsonaro tem método. Enquanto o pai insufla seguidores contra as instituições, os filhos fazem ameaças explícitas à democracia.
Ontem o deputado Eduardo Bolsonaro sugeriu a edição de um “novo AI-5”. Apontado como o futuro chefe do clã, ele já havia ameaçado enviar “um soldado e um cabo” para fechar o Supremo.
O AI-5 original foi editado pela ditadura militar em 1968. Suspendeu direitos individuais, instituiu a censura prévia e autorizou o presidente a fechar o Congresso. O ato deu sinal verde para a tortura e a morte de opositores. Significou o endurecimento do regime, cultuado até hoje pelo inquilino do Planalto.
Bernardo Mello Franco
Na época, os militares alegavam que era preciso combater “processos subversivos” e “fatores perturbadores da ordem”. A Guerra Fria acabou, mas Bolsonaro busca o mesmo pretexto ao estimular teorias conspiratórias e insinuar que “inimigos internos” não o deixam governar.
Na entrevista a Leda Nagle, que já apresentou um programa chamado “Sem Censura”, Eduardo alegou o risco de uma radicalização de esquerda. Mas quem radicaliza no país é a extrema direita, que chegou ao poder pelas urnas sob a liderança do capitão.
A nova polêmica segue um roteiro conhecido. Em setembro, o vereador Carlos Bolsonaro já havia escrito que a “transformação que o Brasil quer” não aconteceria por “vias democráticas”.
O comportamento da família mostra uma divisão de tarefas, em que os filhos se revezam no papel de incendiários. Quando a provocação repercute mal, o pai se fantasia de bombeiro e finge adverti-los.
A cada afronta, o clã testa a resistência da democracia e prepara o próximo avanço. É uma estratégia de aproximações sucessivas, como prescrevem os manuais militares.
Os Bolsonaro estão unidos no mesmo projeto autoritário, que busca remover limites ao poder do Executivo. O jogo pode parecer confuso, mas é combinado. Ontem o presidente disse lamentar as declarações do Zero Três a favor do AI-5. Quando o ato fez 40 anos, ele subiu à tribuna da Câmara para louvá-lo.
______________________
(*) Originalmente publicado em O Globo, 01 de novembro de 2019


SEU EMPREGO ESTÁ AMEAÇADO?

Seu emprego pode estar ameaçado pelos robôs. Como preparar-se para transitar para outro? Ou para outro trabalho?
Difícil é passar de um trabalho material para outro imaterial. Isto está posto com urgência para a sua geração, a de seus filhos e a de seus netos. O artigo a seguir tenta levantar a ponta do véu que encobre as questões de fundo envolvidas neste assunto. Indispensável.
____________________

Capitalismo da Informação

Alfredo Maciel da Silveira
Setembro/ 2019
Desde a reestruturação industrial iniciada nos anos 70, com introdução da microeletrônica nos processos industriais e o avanço para a robotização e automação que prosseguem até hoje, abrira-se o debate sobre o futuro do capitalismo, tendo em vista que sua dependência da exploração da força de trabalho humano (trabalho vivo) aplicada diretamente nas linhas de produção estaria agora posta em xeque pela progressiva extinção daquela forma de trabalho. Até mesmo em interpretações neoconservadoras deste fenômeno contemporâneo, o capitalismo estaria em transição “suave” para o que denominaram uma “sociedade pós-industrial” e não mais “capitalista”.
Nos anos 80, debruçando-se sobre o campo de observação das regiões do mundo que estiveram na vanguarda daquelas transformações, percebíveis já na ocasião quanto a seus desdobramentos e tendências futuras, as pesquisas de Tessa Morris-Suzuki (doravante TMS) resultaram nos dois premonitórios e seminais artigos(1), objetos de apresentação neste presente texto cuja intenção é lhes servir como um guia de leitura.
Embasada no quadro conceitual da teoria do valor-trabalho e na abordagem marxista da dinâmica do capitalismo (fazendo-nos inclusive lembrar um paralelo com Marx, que se inspirara na observação do nascente capitalismo industrial da Inglaterra, vanguarda de seu tempo), a autora interpreta os novos fenômenos, não como tendentes aos “limites absolutos” do sistema capitalista, mas sim como manifestação da metamorfose do próprio capitalismo no rumo do que denominou “capitalismo da informação”. Isto lhe permitirá levantar o véu das relações de trabalho e das relações de dominação de classe nas novas condições de funcionamento do sistema. E, finalmente, trazer-nos sua contribuição para o esclarecimento do novo contexto social que deve embasar a ação política transformadora da sociedade.
Aqui não se pretende retomar a discussão - ensejada pelo seu primeiro artigo de 1984 - da teoria do valor-trabalho e de seu lugar na análise da autora, o que de resto ela já o fez no artigo de 1986 (ver Nota 1 ao final). Mas dado o lugar central do processo inovativo na análise da autora, ajuda-nos a compreensão dos dois artigos se começarmos pela crítica mais recente, focada na arguída dificuldade da relação entre valor-trabalho e inovação.
A crítica à teoria do valor-trabalho no ambiente de inovação concentra-se no caráter não repetitivo desta para justificar a "impossibilidade" de se lhe atribuir valor. Mesmo nos marcos tradicionais do capitalismo industrial - que TMS demonstrará estar superado pelo atual "capitalismo da informação" ou informacional - aquela crítica parece não considerar que em grande medida e desde o início do capitalismo, foram institucionalizados mecanismos defensivos dos detentores da inovação, mediante registro de marcas, patentes, copyright, licenças, de modo a lhes conferir o caráter de mercadoria, ou seja, de modo que se lhe pudesse  atribuir valor de troca, ou dela extrair lucros de monopólio. 
Posteriormente, ainda nos marcos do capitalismo industrial, o processo inovativo se rotinizou e se institucionalizou nas estruturas das grandes corporações, de modo a se converter num fluxo contínuo de inovação, na busca incessante dessas organizações em preservar posições monopolistas e assim auferir lucros de monopólio. Portanto já havia passado a época de um Edison-gênio da lâmpada incandescente, ou de um Tesla-gênio do motor de indução, e de tantos outros que personificavam a autoria e propriedade da inovação.
Desde há aproximadamente um século, a principal forma de concorrência intercapitalista não é em preço, qualidade, etc. É justamente a concorrência em inovações, ponto central da linha de pesquisa neo-schumpeteriana(2) na ciência econômica contemporânea.
Portanto, bem antes das tendências à automação e do recuo do trabalho material, já havia intensa apropriação privada do trabalho vivo (material e imaterial) incorporado ao processo inovativo.
Assim pois se chega ao que parece a dificuldade maior da crítica dantes mencionada. Ao apontar a dificuldade de valoração do "trabalho de inovação" pela ausência de "trocas repetidas" ela nega o que é flagrante: a incorporação crescente e rotineira do trabalho vivo ao fluxo inovativo, reconhecidamente o lugar central da concorrência intercapitalista.
Mas TMS subordina esse conceito de inovação a um outro muito mais amplo que é o da produção de conhecimento.
Na verdade, desde fins do século passado assiste-se à confluência de dois processos. Ao processo inovativo, da concorrência schumpeteriana, característico do secular capitalismo industrial e plenamente institucionalizado em sua fase monopolista, superpõe-se a onda devastadora do novo “capitalismo da informação” (TMS), a deslocar o foco da produção de bens para a da produção de conhecimento.
A partir do último quarto do século XX deflagrou-se a larga onda de revolução científico-tecnológica que prossegue em nossos dias, a refazer toda a base produtiva, os meios e formas de vida humanas, a estrutura social e o ambiente cultural. Na produção e nos serviços ao nosso redor, inclusive na vida doméstica, assiste-se à introdução da robótica e da chamada “inteligência” artificial, a apontarem tendência à automação radical e com esta a eliminação do trabalho vivo material nas linhas de produção tal como historicamente vicejou sob o clássico paradigma do capitalismo industrial.
Prossegue e exacerba-se o processo inovativo, inclusive aquele inerente à própria onda de destruição criativa da revolução científico-tecnológica, centrado em atividades nas quais a energia humana vertida em trabalho desloca-se intensamente do campo material para o imaterial. Mais importante do que a tendência à automação, a novidade é trazida pela revolução informacional contemporânea. A escala e abrangência generalizada, amplamente difundida em todos os setores da produção e da vida, adquirida pelo conhecimento como insumo da produção, e as diversas peculiaridades econômicas e morfológicas deste insumo, seja como bem livre, seja como mercadoria, traz a debate as mutações do sistema produtivo e das relações de produção, reiterando antigas questões sobre as formas de apropriação do valor criado, e da distribuição da renda e da riqueza social.
Note-se que em sua evolução, as categorias do conhecimento e da informação tornam-se “irmãs siamesas” porquanto em regra geral, a circulação da primeira é necessariamente mediada pela segunda. Daí que no discurso analítico sobre o novo ambiente socioeconômico em evolução se observe o trânsito contínuo entre as duas categorias. Isto é bem presente nos referidos trabalhos de TMS.
Veja-se ilustrativamente esta passagem, onde a autora realça que a verdadeira essência das transformações então em curso nos anos 80 não estava simplesmente na tendência à automação, mas sim na passagem da produção de bens para a de conhecimento-informação como mercadoria(3):
 “(...) Um mundo de ficção científica, de uma economia inteiramente automatizada, só tem importância enquanto nos ajuda a entender os processos reais do desenvolvimento contemporâneo. No meu artigo antecedente eu sugeri que uma característica essencial daquele desenvolvimento é não simplesmente a automação da produção, mas um deslocamento no foco da atividade econômica da fabricação de bens materiais para a produção de conhecimento. Isto acontece de três maneiras. Primeiramente as companhias introduzem na produção equipamentos controlados por processadores eletrônicos, e assim a força de trabalho vem a ser concentrada mais e mais nas áreas de planejamento, pesquisa e desenho: continuamente modificando e desenvolvendo o conhecimento a ser aplicado na fabricação de bens materiais. Neste caso a empresa não vende imediata e diretamente informação como mercadoria mas a utiliza para aumentar o valor de seus produtos finais. Em segundo lugar, um número crescente de empresas começam a se especializar na produção e venda da mercadoria “informação para a produção”, isto é, a comercialização de desenho, software, bases de dados, etc, que será utilizada por outras firmas em seus processos de produção. Em terceiro lugar, há também uma expansão da produção e venda da “informação bem de consumo”, na forma de livros e periódicos, programas de TV, vídeos, softwares de uso doméstico, e assim por diante.”
A autora analisa em profundidade a existência de amplo estoque de conhecimento social livre, portanto sem um preço, cuja apropriação desigual pelo poder assimétrico das grandes empresas permite-lhes a produção de novos conhecimentos, estes sim de caráter privado e destinados a venda no mercado, portanto mediante um preço.
Citando:
 “(…)Uma vez mais nos defrontamos com o fato de que na produção de informação o conhecimento social livre é apropriado e convertido em fonte de lucro privado. Fomos movidos para fora da imagem do capitalismo clássico descrita por Marx, onde os insumos da produção são comprados no mercado a preços competitivos e onde as fontes de exploração podem consequentemente situar-se somente no próprio processo de trabalho. Agora é teoricamente possível para as corporações extraírem lucros sem a exploração direta de sua força de trabalho, mediante o uso de um bem livre, para criar um produto que então temporariamente se torna monopólio privado da corporação”.
Ao longo especialmente de seu segundo artigo, de 1986, a autora problematiza os limites da teoria marxista tradicional do valor-trabalho para dar conta dessas condições contemporâneas em que parte significativa dos lucros provém da produção e venda da mercadoria conhecimento, tendo por insumos outros conhecimentos socialmente gerados desde fora do trabalho direto na linha de produção. Remete-se inclusive ao Marx dos “Grundrisse”, que antevia um mundo da exploração da força de trabalho social, generalizada, e não mais a dos trabalhadores diretamente envolvidos no processo produtivo.
Por essa linha de argumentação a autora chega ao ponto central de sua tese das mutações que conduziram a um “capitalismo da informação”, onde há esferas de exploração de valor criado pelo trabalho para alem do circuito de produção. E questiona:
 “(…) Se aceitarmos que a exploração direta do trabalho está se tornando menos importante como fonte de lucro, e que a exploração privada do conhecimento social está se tornando mais importante, podemos continuar a descrever o sistema econômico como “capitalista”? A resposta a esta questão inevitavelmente dependerá de nossa interpretação do termo “capitalista”. Como temos já indicado, uma sociedade na qual a produção comercial de informação é uma importante fonte de lucro privado não constitui um sistema generalizado de produção de mercadorias. Mas ela retem a característica fundamental do capitalismo: aquela de que a concentração privada da propriedade nas mãos de uma pequena fração da sociedade habilita-lhe apropriar-se de uma fração desproporcional do produto social(…)”
Para mais adiante sumarizar:
 “(…)Capitalismo, em outras palavras, é um sistema dinâmico, capaz de assumir formas muito diferentes em distintos contextos históricos. O capitalismo industrial, baseado na exploração direta da força de trabalho manufatureira é transmutado pelo processo de automação em um novo sistema onde a exploração crescentemente engloba todos aqueles envolvidos na criação do conhecimento social e na sua transmissão de geração a geração. Contra a idéia de uma sociedade “pós-industrial” ou “pós-capitalista”, contrapomos a idéia do “capitalismo da informação”, onde os altos níveis de automação e a “informatização[softening] da economia” coexistem com novas e ampliadas esferas de exploração de muitos por poucos”.
Na parte final da exposição a autora analisa em mais detalhe:
1) o conhecimento social como fonte de lucro privado;
2) as relações de trabalho que asseguram o controle da informação pelas grandes corporações privadas e, finalmente;
3) o novo contexto social que deve embasar a ação política transformadora.

_____________________________

Notas

[1] Tessa Morris-Suzuki, “Robots and Capitalism”, New Left Review 147, setembro/outubro, 1984. A autora deu sequência ao debate suscitado por este artigo mediante a publicação de “Capitalism in the computer age”, New Left Review, I/160, Novembro-Dezembro 1986.
Ambos os artigos, em português, podem ser acessados respectivamente em:
[2] Joseph Schumpeter, através de suas obras durante o século XX, teorizou o desenvolvimento econômico como impulsionado por ondas de inovação e correspondente difusão, numa sucessão de desequilíbrios indutores de investimento e de renovação das estruturas produtivas (“destruição criativa”). No que importa mais de perto ao referido neste artigo como sendo a linha de pesquisa “neo-schumpeteriana”, trata-se do aspecto da mencionada institucionalização do processo inovativo, como um fluxo contínuo ancorado em estruturas especializadas das grandes corporações, tais como as já tradicionais atividades de “Pesquisa e Desenvolvimento – P&D”, e que hoje se estendem por redes de pesquisa cada vez mais e mais complexas, integradas e internacionalizadas inclusive através de mercados.
[3] As citações, traduzidas pelo autor, pertencem ao artigo de 1986, “Capitalism in the computer age”, referido na Nota 1 acima.

A ameaça

Sérgio Abranches: ‘Bolsonaro nasceu no extremo, sempre foi o que é hoje’
Para cientista político, presidente não tem sido capaz de buscar a conciliação em um ambiente de crise política iniciada em 2014.
Entrevista com Sérgio Abranches, cientista político e sociólogo*
Em um cenário de crise política, que não acabou com a eleição, o presidente Jair Bolsonaro não tem sido capaz de buscar uma “conciliação” e dialogar com demais setores da sociedade. A análise é do sociólogo e cientista político Sérgio Abranches autor de, entre outros livros, Presidencialismo de Coalizão – Raízes e Evolução do Modelo Político Brasileiro.
 “Ele nasceu no extremo. Sempre foi o que é. Está na direita, bem lá na ponta”, disse em entrevista ao Estado. Segundo Abranches, a perda de popularidade de Bolsonaro é “preocupante”. “Qualquer fagulha pode pegar fogo.” O sociólogo afirmou ainda que a polarização minou a centro-esquerda e empurrou o PT, principal partido de oposição, para uma esquerda de “posições que já deveria ter abandonado”, enquanto PSDB e DEM foram puxados para a direita.
_________________
Nota dos Editores: Desde a derrota nas eleições a centro-esquerda tem tido dificuldade em se articular. Entendemos que esta dificuldade, tendo  como origem principal o deslocamento de seu eleitorado para o voto anti-petista, está desaparecendo, como vem mostrando as pesquisas de opinião. Daqui que seus diferentes setores representados, dentre outros, por Ciro Gomes, Geraldo Alkmin, FHC, Flavio Dino, Rodrigo Maia, bem como por organizações da mídia e da sociedade civil, de que são exemplos a Rede Globo, CNBB, OAB, etc - terão condições de impor derrotas a Bolsonaro e até batê-lo já nas eleições de 2020.
___________________
Abaixo, a entrevista completa. 
Sérgio Abranches. Foto: Wilton Junior/Estadão
Por que, com apenas oito meses de um novo governo, já se fala em cenários para 2022?
O Brasil está em uma crise política desde o início do segundo mandato de Dilma Rousseff. A crise não foi superada. O impeachment agravou a crise e aguçou a polarização. Michel Temer também não conseguiu superar a crise, que, depois, virou paralisia de governo no momento em que ele precisou obter o veto para impedir que fosse processado no Supremo. A polarização que continuou no governo Temer desaguou nas eleições de 2018, que foram disruptivas, mas pouco construtivas. 
Pesquisa divulgada na segunda-feira mostrou que a desaprovação pessoal do presidente Bolsonaro subiu de 28% para 53%. Isso é motivo de preocupação?
Há razões para ficar preocupado. A crise não acabou com o fim da eleição. Continua sendo um governo no contexto de uma crise política, que se agravou porque o presidente tem uma atitude de confrontação. Ele não é capaz de um movimento de conciliação, de uma abertura para setores da sociedade e do mundo. É muito fechado. Em geral, quando o presidente perde rapidamente popularidade, temos um quadro de instabilidade da própria governança. Isso pode produzir um tipo de conflito que não seria positivo para o momento atual.
Temos a continuação da crise econômica, uma situação social que não é boa, um contexto como o Cerrado na seca. Qualquer fagulha pode pegar fogo. É um quadro preocupante. 
E o que, na sua avaliação, tem mitigado a crise?
É o desempenho do Congresso que tem conseguido manter um ritmo de produção legislativa relevante. Isso cria um espaço de normalidade política que ajuda. Imagine se estivéssemos em um processo de paralisia do Legislativo, sem a aprovação da reforma da Previdência, se nada passasse? Aí sim estaríamos em um quadro mais grave. 
Mas se olharmos no detalhe, há claramente uma tensão entre Executivo e Legislativo. O governo tem perdido muitas decisões, toda hora há atritos. É uma relação ciclotímica por causa dessa atitude mais acintosa do presidente, que decidiu ser um presidente minoritário e não formar coalizão. 
Há uma discussão em torno da fusão de partidos, notadamente entre DEM, hoje representado pela figura do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e pelo PSDB, liderado pelo governador João Doria. Como avalia essa possibilidade? 
É muito provável que haja esse processo de fusão de partidos à medida que vamos nos aproximando de 2020, a não ser que o Congresso revogue a proibição de coligações proporcionais, o que seria muito ruim. O movimento natural é que aqueles com certa afinidade de valores e comportamentos se fundem. O PSDB se moveu para a direita, é natural que se funda com o DEM. São partidos de centro-direita. João Doria, Alexandre Frota (expulso do PSL), as novas relações foram movendo o partido mais para a direita, ainda que haja uma facção mais à esquerda, claramente minoritária, e candidata a buscar outra legenda. 
O sr. entende que Bolsonaro foi empurrado para o extremo?
Não, ele nasceu no extremo. Sempre foi o que é. Ele até andou tentando maquiar a posição dele, dizendo que é de centro-direita, mas ele é de direita mesmo, lá na ponta.
E quem vai ocupar o espaço do centro na política nacional?
O espaço que está ficando vazio na política hoje é a centro-esquerda. O PT está na sua própria crise e não consegue formular uma nova posição, mais contemporânea e alinhada com os desafios do século 21. Há uma parte importante da centro-esquerda sem representação. Com a polarização, o PT foi empurrado para uma esquerda de posições que já deveria ter abandonado, retrógradas. Já outros partidos foram sendo puxados para a direita.
Está vazia uma centro-esquerda e até um centro mais moderado, com uma visão mais social, um posicionamento contemporâneo, reformista, que tenha consciência da crise do emprego, dessa nova economia, que entenda que a globalização é inevitável e que o mundo hoje é mais cosmopolita. 
Há uma demanda para lideranças progressistas que pensem saídas para a frente, e não saídas para trás. 
O apresentador de TV Luciano Huck e o ex-governador do Espírito Santo Paulo Hartung têm mostrado disposição de entrar no jogo político. Eles poderiam ocupar esse espaço?
Conheço a trajetória do Paulo Hartung. É um candidato claro a ser um protagonista na formação de um pensamento social-democrata. Começou na prefeitura de Vitória com uma aliança PSDB-PT pouco provável. Ele tem uma visão que permite isso. O Luciano Huck não sei como pensa. Mas, claramente, Paulo Hartung é um político que tenta gravitar e construir uma alternativa nesse perímetro entre a centro-esquerda e o centro. 
Onde vê o ministro Sérgio Moro em um cenário eleitoral?
Politicamente, hoje não consigo ver. Ele tomou uma decisão muito custosa, abandonou uma carreira de juiz segura, estável, previsível, por um cargo muito incerto, sujeito a chuvas e trovoadas. O Ministério da Justiça sempre foi um espaço de muito conflito. Todo ministro é demissível a qualquer momento. É um cargo muito precário. Foi uma escolha de muito risco e, para tomar esse risco, ele deve ter algum mecanismo de proteção, um acordo para voltar para a magistratura em um cargo de nomeação, ou mesmo uma perspectiva de entrar na vida política. O que vejo é que foi uma troca do certo pelo incerto.
Como as disputas locais de 2020 ajudarão a definir as nacionais?
As lógicas são muito diferentes, são sistemas partidários distintos. Partidos importantes no Rio não necessariamente têm força em capitais do Nordeste ou do Sul. A qualidade de vida das cidades é muito próxima do cidadão, os temas locais predominam. Mas, ciclicamente, tem havido momentos em que as eleições municipais coincidem com o debate nacional.
O discurso se repete quando o quadro está muito polarizado, em uma crise como a de agora. Se o discurso não mudar, teremos um debate, sobretudo nas capitais, muito mais nacionalizado. Mas entendo que a escolha do eleitor continuará sendo baseada em questões locais. 
Como vê o Supremo Tribunal Federal no cenário político, cujo presidente, ministro Dias Toffoli, chegou a participar em maio de um “pacto” proposto pelos chefes dos Três Poderes
A ideia de que o presidente do STF participe de reuniões políticas e se envolva numa espécie de pacto entre Poderes é um desvirtuamento da função jurisdicional, sobretudo num momento de muita judicialização da política. A Corte deveria se manter razoavelmente impermeável a pressões políticas. Claro que não existe despolitização completa, mas há um limite a partir do qual a politização se torna danosa para a isenção do processo jurisdicional.  
O STF é a última palavra, a última instância. Houve um avanço excessivo de decisões autocráticas que minam o espírito do colegiado, que é um mecanismo de freio e contrapeso significativo. Ter a participação de juízes de gerações diferentes, nomeados por fontes políticas diferentes e com visões doutrinárias diferentes dá um certo equilíbrio ao processo. Quanto menos colegiado e quanto mais autocracia houver, pior o papel do Supremo como um ponto de equilíbrio. 
Como avalia que a interferência do presidente da República na autonomia de instituições como a Polícia Federal, a Receita Federal e o Coaf afeta a qualidade da democracia brasileira? 
É um risco importante. O que a sustenta a democracia é um equilíbrio entre os Poderes. Esse desmonte das instituições de fiscalização e controle coloca em xeque boa parte da estrutura dos mecanismos de freios e contrapesos. A investida mais danosa é contra o Ministério Público Federal.
O Executivo e o Legislativo são muito permeáveis a pressões, então é preciso uma regulação independente para coibir abusos. No momento em que vivemos, de sociedade e economia digitalizadas mas política ainda analógica, é preciso começar a pensar em freios e contrapesos para fazer a passagem do analógico para o digital. A lavagem de dinheiro, hoje, é claramente digital. 
Nas últimas semanas o Brasil se viu em uma crise diplomática e no centro das atenções com o aumento dos incêndios da Amazônia. Paralelamente, o presidente deseja nomear o filho, deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), para a embaixada em Washington. Um levantamento do ‘Estado’ mostra que o Senado resiste. Há risco de ele ser barrado?
Quando a votação é secreta, sempre há risco. Para o bem e para o mal. O mais importante é o fato de que essa polêmica ambiental incendiou as relações diplomáticas do Brasil com a França e com a União Europeia. Já a questão da nomeação de um filho para uma embaixada tão importante representa o desmonte da diplomacia brasileira. A diplomacia funciona como um amortecedor das paixões pessoais, colocando as razões de Estado em primeiro plano, que são permanentes. O Brasil tem tradição de uma diplomacia profissional muito significativa, que fez com que o País, sem grandes poderes econômicos e militares, sempre tivesse protagonismo. Toda essa qualidade é colocada em xeque (com essa escolha).
____________________________
(*) Entrevista concedida a Paulo Beraldo, publicada em “O Estado de São Paulo”, 01 de setembro de 2019.

Papa Francisco convoca a juventude

Numa contundente crítica às estruturas da economia mundial, o Papa Francisco faz decidido chamamento à sua transformação, com ênfase nas energias e nos anseios da juventude.
De 26 a 28 de março de 2020, um evento intitulado "Economia de Francisco" terá lugar em Assis, uma iniciativa aberta a jovens economistas, empreendedores e empresários de todo o mundo. Encontros regionais preparatórios já se iniciam.
“(...)Na Carta Encíclica “Laudato si” sublinhei que hoje mais do que nunca tudo está intimamente ligado, e que a salvaguarda do ambiente não pode ser separada da justiça para com os pobres e da solução dos problemas estruturais da economia mundial. É necessário, portanto, corrigir os modelos de crescimento que são incapazes de garantir o respeito ao meio ambiente, acolhendo as pessoas, cuidando da família, a equidade social, a dignidade dos trabalhadores, os direitos das gerações futuras. Infelizmente, permanece ainda ignorado o apelo para se tomar consciência da gravidade dos problemas e, acima de tudo, para por em prática um novo modelo econômico, fruto de uma cultura de comunhão, baseada na fraternidade e na eqüidade(Papa Francisco).
Segue a convocação do Papa.
O Papa convida jovens para um encontro em Assis, no espírito de São Francisco, com vistas a fazer a economia de hoje e de amanhã saudável, sustentável e inclusiva.

Aos jovens economistas, empreendedores e empresários  de todo o mundo

Queridos amigos
Estou escrevendo para convidá-los a uma iniciativa que tanto desejei: um evento que me permita conhecer aqueles que hoje estão se formando e começando a estudar e praticar uma economia diferente, que faz viver e não matar, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a depreda. Um evento que nos ajuda a ficar juntos e nos conhecer, e nos levar a fazer um "pacto" para mudar a economia atual e dar uma alma à economia de amanhã.
Sim, precisamos "animar novamente" a economia! E qual cidade é mais adequada para isso do que Assis, que por séculos tem sido o símbolo e a mensagem de um humanismo de fraternidade? Se São João Paulo II a escolheu como ícone de uma cultura de paz, também me parece um lugar que inspira uma nova economia. Aqui, na verdade, Francisco se despojou de todo o mundanismo para escolher Deus como a estrela guia de sua vida, tornando-se pobre com o irmão pobre e universal. Sua escolha da pobreza também deu origem a uma visão da economia que permanece muito atual. Pode dar esperança ao nosso amanhã, para o benefício não só dos mais pobres, mas de toda a humanidade. É necessário, de fato, para o destino de todo o planeta, nossa casa comum, "a nossa irmã a mãe Terra", como Francisco chamou em seu Cântico das Criaturas.
Na Carta Encíclica “Laudato si” sublinhei que hoje mais do que nunca tudo está intimamente ligado e que a salvaguarda do ambiente não pode ser separada da justiça para com os pobres e da solução dos problemas estruturais da economia mundial. É necessário, portanto, corrigir os modelos de crescimento que são incapazes de garantir o respeito ao meio ambiente, acolhendo as pessoas, cuidando da família, a equidade social, a dignidade dos trabalhadores, os direitos das gerações futuras. Infelizmente, permanece ainda ignorado o apelo para tomar consciência da gravidade dos problemas e, acima de tudo, para por em prática um novo modelo econômico, fruto de uma cultura de comunhão, baseada na fraternidade e na eqüidade.
Francisco de Assis é o exemplo por excelência de cuidar dos fracos e de uma ecologia integral. Lembro-me das palavras dirigidas a ele pelo Crucifixo na pequena igreja de São Damião: "Vá, Francisco, conserte a minha casa que, como você pode ver, está toda em ruínas". Aquela casa a ser consertada afeta a todos nós. Diz respeito à Igreja, à sociedade, ao coração de cada um de nós. Também diz respeito cada vez mais ao ambiente que necessita urgentemente de uma economia saudável e de um desenvolvimento sustentável que cure suas feridas e garanta um futuro digno.
Diante dessa urgência, todos nós somos chamados a rever nossos esquemas mentais e morais, para que possam estar mais em conformidade com os mandamentos de Deus e com as exigências do bem comum. Mas eu pensei em convidar vocês jovens de uma maneira especial porque, com seu desejo de um futuro bonito e alegre, vocês já são uma profecia de uma economia que se preocupa com a pessoa e o meio ambiente.
Queridos jovens, sei que são capazes de ouvir com o coração os gritos da terra cada vez mais angustiantes e os pobres em busca de ajuda e responsabilidade, isto é, alguém que "responde" e não se afasta. Se você ouvir o seu coração, você se sentirá portador de uma cultura corajosa e você não terá medo de se arriscar e comprometer-se a construir uma nova sociedade. Jesus ressuscitado é a nossa força! Como vos disse no Panamá e escrito na Exortação Apostólica pós-sinodal Christus vivit: "Por favor, não deixe que os outros sejam os protagonistas da mudança! Você é quem tem o futuro! Através de você o futuro entra no mundo. Também peço que sejam protagonistas dessa mudança. [...] Peço que sejam construtores do mundo, para trabalhar por um mundo melhor "(nº 174).
Suas universidades, suas empresas, suas organizações são locais de esperança para construir outras formas de entender a economia e o progresso, para combater a cultura do desperdício, para dar voz àqueles que não têm, para propor novos estilos de vida. Enquanto o nosso sistema econômico e social ainda produzir uma vítima e houver apenas uma pessoa descartada, não haverá a festa da fraternidade universal.
Por isso desejo conhecê-lo em Assis: promover juntos, através de um "pacto" comum, um processo de mudança global que veja na comunhão de intenções não somente daqueles que têm o dom da fé, mas de todos os homens de boa vontade, além das diferenças de crença e nacionalidade, unidas por um ideal de fraternidade atento sobretudo aos pobres e excluídos. Convido cada um de vocês a ser o protagonista deste pacto, assumindo um compromisso individual e coletivo para cultivar juntos o sonho de um novo humanismo que responda às expectativas do homem e ao plano de Deus.
O nome deste evento - "Economia de Francisco" - refere-se claramente ao Santo de Assis e ao Evangelho que ele viveu em total coerência também no nível econômico e social. Ele nos oferece um ideal e, de alguma forma, um programa. Para mim, que levou seu nome, é uma fonte contínua de inspiração.
Juntamente com você e por você, vou apelar para alguns dos melhores estudiosos e especialistas da ciência econômica, bem como para empreendedores e empresários que hoje já estão comprometidos em todo o mundo com uma economia consistente com essa estrutura ideal. Eu confio que eles vão responder. E eu confio acima de tudo em vocês jovens, capazes de sonhar e prontos para construir, com a ajuda de Deus, um mundo mais justo e mais belo.
Nosso encontro está previsto para os dias de 26 a 28 de março de 2020 . Juntamente com o Bispo de Assis, cujo antecessor Guido há oito séculos acolheu o jovem Francisco em sua casa, em seu gesto profético de despojar-se, conto recebê-lo pessoalmente. Espero por você e desde agora eu lhe saúdo e lhe abençoo. E por favor, não esqueça de orar por mim.
Vaticano, 1 de maio de 2019
Memória de São José Operário
Francisco

Revelando segredos

Werneck distingue-se dentre os analistas da política brasileira ao buscar sempre a ligação dos movimentos da conjuntura com a estrutura profunda e histórica da formação social brasileira. No artigo que se segue, ele reitera a denúncia do ataque à Constituição de 1988, o que já prenunciara em artigo anterior, "A hora dos intelectuais", de novembro de 2018, também republicado aqui neste Blog.
Do presente artigo:
Nesse sentido, a Constituição fixou princípios e valores constantes da tradição da nossa formação não homólogos aos desejados pelas forças do mercado, infensas à política e ao social como presenças estranhas à lógica que lhes é própria. Tais forças, dominantes no governo atual, embora camufladas pelo alarido que ele produz em torno de questões comportamentais, atuam no sentido de uma drástica remoção dos obstáculos institucionais que imponham limites à sua ação, o principal deles a Constituição. Esse objetivo não é de fácil realização, como o próprio governo admite, daí sua estratégia de sitiá-la, minando aos poucos sua autoridade, como em sua política de agir por decretos claramente inconstitucionais, como na questão indígena, entre outras, movimento que procura se reforçar pelos ataques pessoais a integrantes do STF. Delenda Constituição, essa a palavra-chave que preside o governo Bolsonaro.
E conclui exortando-nos a reconhecer os erros e a trazer de volta as lições da luta pela democracia:
Resistir a essa mutação que se quer nos impor a partir de cima consiste na aplicação das lições que aprendemos à época do regime militar, como, aliás, já vem ocorrendo com a reanimação das entidades da sociedade civil, sobretudo fazendo do processo eleitoral e da ativação de partidos políticos e sindicatos o foco principal de atuação das oposições ao que aí está. Esse pesadelo que nos aflige, que de certa forma merecemos pela enormidade dos erros cometidos, pode ter um fim se soubermos aprender com a experiência acumulada dos poucos momentos em que fomos vitoriosos. 
Segue a íntegra do artigo.
_________________________________________________

O método desta loucura*

Luiz Werneck Vianna**
Agosto 2019
Há método nesta loucura. Por trás dessas intempestivas iniciativas presidenciais que aturdem o observador da cena pública brasileira com a marca da gratuidade e da irrelevância, tais como a cadeira para o transporte de crianças nos automóveis, entre tantas outras sobre temas comezinhos, longe de serem manifestações de insanidade se comportam como peças estratégicas nas artes da manipulação da opinião pública no sentido de ocultar a intenção real do governo. Os truques de prestigitação a que assistimos bestificados visam chamar a atenção para os faits divers, concedendo ao governo tempo e liberdade para operar no campo da sua política de estado-maior, qual seja no de intervir no DNA da nossa sociedade, desprendendo-a da sua história, valores e tradições. Trata-se de um plano de larga envergadura em que a ação presidencial não se encontra desamparada, pois está ancorada nas elites econômicas do país desavindas com o tipo de cultura e de instituições que o país foi sedimentando ao longo do seu processo de modernização, refratário desde sempre a um capitalismo vitoriano avesso à regulamentação.
Luiz Werneck Vianna
Concisamente, em nossa formação capitalista as concepções do ultraliberal Spencer não foram recepcionadas, pois foi mais sob a inspiração de Durkheim, um opositor ferrenho da obra desse autor, que a modernização capitalista brasileira encontrou régua e compasso para abrir caminho à sua trajetória afirmativa. A fórmula corporativa, com as claras ressonâncias de Durkheim na obra e na ação de um Oliveira Vianna, ideólogo largamente influente na revolução de 1930, especialmente no Estado Novo, quando presidiu a comissão que elaborou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que foi, como se sabe, a opção institucional implementada para reger as relações capitalistas num momento de emergência da industrialização no país. O corporativismo que veio a tutelar a vida associativa dos trabalhadores legitimou-se entre eles por meio de sua política social. O moderno capitalismo brasileiro nasce, assim, sob o signo da regulamentação.
A presença do Estado sob a ação modernizadora das novas elites políticas não se vai limitar ao controle do mundo do trabalho, incidindo com força no domínio econômico a fim de acelerar o processo da expansão capitalista por meio de empresas estatais nas frentes estratégicas da siderurgia, de início, e depois na do petróleo, da energia e outras atividades essenciais ao suporte do ambicioso projeto de internalizar no país as bases para a edificação de um capitalismo moderno.

Brasil sem Planejamento e um futuro já presente

O artigo do Alfredo contém um conjunto de conceitos e idéias que me parecem muito pertinentes. As principais são:
  • Resgatar o ineditismo da Constituição de 1988 na introdução do planejamento estatal como base para o desenvolvimento nacional.
  • Mostrar como essa orientação constitucional foi solenemente ignorada desde então, reduzindo o planejamento à mera elaboração orçamentária anual ou, quando muito, a uma relação de obras quinquenal.
  • Indicar que a chegada do ultra liberalismo ao poder, nos dias atuais, radicalizou essa tendência, concedendo ao mercado toda a responsabilidade pela dinâmica do desenvolvimento, em franca discordância com as experiências históricas dos países que se desenvolveram.
  • Lembrar que a divisão internacional do trabalho, gerada após a Revolução Industrial e ascensão dos países centrais, permanece mantendo em inferioridade tecnológica e produtiva aquelas periferias que não se movimentam politicamente.
  • Questionar sobre a possibilidade de, no quadro político atual, derivar uma reversão em direção ao ordenamento constitucional de 1988.
  • Insistir na necessidade dessa reversão para que o Estado assuma essa incumbência como base para o desenvolvimento.
  • E, por fim, detalhar a articulação orgânica entre os Órgãos de Estatísticas, o Escritório de Planejamento, o Legislativo, os Agentes Econômicos e a Sociedade para que o processo de planejamento seja eficiente, transparente e democrático.
Sérgio Gonzaga de Oliveira*
Segue o artigo de Alfredo.
_________________________________

Brasil sem Planejamento e um futuro já presente

Alfredo Maciel da Silveira**
Julho 2019

Neste artigo sustento que a retomada do Planejamento no Brasil poderá ser um imperativo, a depender das decisões cruciais que os brasileiros tem diante de si.
Entendo estarmos atravessando um período de reformismo liberal, que não se resume ao tempo do atual governo, e que agrega as esperanças liberais - hegemônicas na ideologia e na política - em um Brasil "desenvolvido" ao modo do liberalismo. 
Mas diante do Brasil real, tal liberalismo poderia dar conta do que promete? E diante da crise social que se agrava, quais a chances de ruptura com esse projeto estratégico liberal? Um novo caminho econômico-social e democrático, mas em qual direção?
Ambientação Organizacional do Planejamento
Fonte: elaboração do autor

Antecedentes. O Artigo 174 da Constituição: o que se pensava em 1988 sobre o planejamento? O que restou?


O planejamento abrangente e integrado das atividades econômicas dos setores público e privado no Brasil foi alçado a princípio constitucional desde 1988, primeira vez na história em que foi mencionado nas constituições brasileiras. Através do artigo 174 e seu parágrafo 1º, está organicamente inserido no "Capítulo I, Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica", que por sua vez abre o "Título VII, Da Ordem Econômica e Financeira".
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.§1º a lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento. 

Tal dispositivo ainda permanece na Constituição sem jamais ter sido regulamentado.
Mas o artigo 174 e seu parágrafo 1º não entraram na Constituição por acaso. À época ainda havia a expectativa de retomada do planejamento sob relações Estado - Sociedade de inspiração socialdemocrata. Uma primeira redação desse dispositivo já constava do anteprojeto constitucional da "Comissão Afonso Arinos", de 1987, com idêntico conteúdo. Já então se fazia também a conexão com as atribuições do Poder Legislativo, quanto a dispor, "com a sanção do Presidente da República", sobre "planos e programas nacionais e regionais de desenvolvimento". É flagrante que a Comissão de Sistematização da Assembléia Constituinte considerou e aprimorou aquela proposta inicial. Sua organicidade e consistência ficaram evidenciadas pelas conexões estabelecidas com as atribuições do Congresso Nacional e do trabalho de suas comissões (respectivamente os artigos 48 e 58 da Constituição), onde se destaca a participação do Poder Legislativo no processo decisório do planejamento.
Ora, sabe-se o que veio depois, com a radical liquidação do Estado desenvolvimentista e a mudança de rumos das relações Estado - Sociedade e Estado-Mercado desde o governo Collor, relações que não seguem à letra o contemplado originalmente na Constituição de 1988, já de resto sucessivamente emendada.
O pouco que se fez no Brasil desde então, sob a denominação de "Plano",esteve regido pelo artigo 165, alusivo aos orçamentos, onde consta o “Plano Plurianual” que apesar do nome nada mais é que um orçamento para cinco anos,  de  âmbito muito mais restrito portanto, integrante de outro Título, de número VI, "Da Tributação e do Orçamento", em seu "Capítulo II, Das Finanças Públicas". Assim, conceitual e metodologicamente nada tinha a ver com o desenvolvimento institucional da concertação entre governo e setor privado, com a interação estratégica entre players relevantes, ou ainda com a produção de informações socioeconômicas consistentes entre si como base da negociação política, elementos essenciais de um planejamento indicativo contemporâneo.

Fadiga do capitalismo

O avanço da ultra-direita que ameaça o mundo não é uma consequência da “fadiga da democracia” como dizem alguns, e sim da fadiga do capitalismo, que não consegue sair da crise iniciada em 2008 sem golpear a democracia, os direitos políticos e sociais conquistados pela luta dos povos. Carecemos de uma alternativa consistente ao capitalismo, uma proposta elaborada democraticamente que desenhe uma outra sociedade, que garanta a preservação do planeta, a extinção da miséria e a redução das desigualdades.
Na entrevista abaixo* o professor suíço Jean Ziegler ilumina elementos para tal proposta e aponta nesta direção.
Ziegler: “as sociedades multinacionais privadas são as verdadeiras donas do mundo”. Foto: Henning Kaiser / Picture Alliance / Getty Images

A Esperança está na Sociedade Civil Planetária, segundo Jean Ziegler.

Descrentes da democracia representativa, os cidadãos vivem hoje um “desespero silencioso e secreto”, num mundo controlado pelas corporações globais. Para o sociólogo suíço Jean Ziegler a esperança está na “sociedade civil planetária.”

1. Vemos em diferentes partes do mundo uma reação popular contra partidos tradicionais e contra a política. Também vemos a vitória de políticos como Orbán, Trump, Salvini e Bolsonaro. Por qual motivo o senhor acredita que estamos vendo essa onda?

O mundo se tornou incompreensível para o cidadão, que não mais consegue lê-lo. As 500 maiores empresas multinacionais privadas — reunindo todos os setores, como bancos, indústria e serviços — têm 52% do PIB do mundo. Elas monopolizam um poder econômico-financeiro, ideológico e político que um imperador ou papa jamais teve na história da humanidade. Elas escapam de todos os controles do Estado, parlamentares, sindicais ou qualquer outro controle social. Têm apenas uma estratégia: maximização dos lucros no tempo mais curto e não importa a qual preço humano — ainda que sejam responsáveis, sem dúvida, por um processo de invenção científica, eletrônica e tecnológica sem precedentes e de fato extraordinário. Até o fim da União Soviética, um terço dos habitantes do mundo vivia sob algum tipo de regime comunista. O capitalismo estava regionalmente limitado. A partir de 1991, o capitalismo se espalhou por todo o planeta e instaurou uma só instância reguladora: a mão invisível do mercado. Isso produziu uma ideologia que alienou totalmente a consciência política dos homens e que dá legitimidade a uma só instância de regulação: o neoliberalismo. Esse sistema sustenta que não são os homens que fazem a história, mas os mercados, e que as forças do mercado obedecem às leis da natureza.

2. E qual é a implicação disso para o cidadão?

É dito ao homem que, por não ser mais o sujeito da história, cabe a ele se adaptar ao mundo. De fato, entre o fim da URSS, no começo dos anos 90, e os anos 2000, o PIB mundial dobrou. O volume do comércio se multiplicou por três e o consumo de energia dobrou em quatro anos. É um dinamismo formidável, mas isso tudo ocorreu de uma forma concentrada e nas mãos de um número reduzido de pessoas. Se considerarmos a fortuna pessoal dos 36 indivíduos mais ricos do mundo, segundo a Oxfam ( organização mundial contra a pobreza ), ela é igual à renda dos 4,7 bilhões de pessoas mais pobres da humanidade. Segundo um relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura sobre a insegurança alimentar, a cada cinco segundos uma criança com menos de 10 anos morre de fome ou de suas consequências imediatas no mundo. O mesmo relatório diz que, em seu atual estado de desenvolvimento, a agricultura poderia alimentar normalmente 12 bilhões de seres humanos. Ou seja, quase o dobro da humanidade. Não há fatalidade. A fome é feita pelas mãos do homem e pode ser eliminada pelos homens. Uma criança que morre de fome é assassinada.

3. Isso é sustentável?

De forma alguma. A desigualdade não é só moralmente vergonhosa. Também faz com que o estado social seja esvaziado. Os mais ricos não pagam impostos como deveriam. Os paraísos fiscais, o segredo bancário suíço — que continua —, isso tudo permite uma enorme opacidade. Empresas são contratadas para criar estruturas que impedem que os reais donos do dinheiro sejam encontrados em sociedades offshore. Os documentos revelados pelo Panama Papers mostram muito bem isso. Portanto, podemos dizer que as maiores fortunas do mundo e as maiores multinacionais pagam os impostos que querem.

4. E qual a consequência disso?

O fato de que os mais ricos pilham o país e não pagam impostos gera duas situações: esvazia a capacidade social de resposta dos governos e impede a contribuição obrigatória dos países mais ricos às organizações especializadas da ONU que lutam contra a miséria no mundo. Portanto, esse sistema mata. No fundo, essa ditadura do mercado faz com que os cidadãos entendam que não é o governo no qual eles votaram que tem o poder de definir o destino. Isso cria uma insegurança completa e a desigualdade não é controlável. Se não bastasse, o cidadão é informado que seu emprego passa por um período profundo de flexibilização. Na França, há 9 milhões de desempregados, e três quartos dos empregos no setor privado são contratos de duração limitada. Outros milhões vivem de forma precária, como a maioria dos aposentados.

5. Quem são, portanto, os atores que influenciam o destino econômico de um país?

Vou dar um exemplo. As sociedades multinacionais privadas são as verdadeiras donas do mundo. Nos Estados Unidos, sob a administração Obama, foi criada uma lei que proibia o acesso, ao mercado americano, de minerais que tivessem sido extraídos por crianças, principalmente de minas no Congo. O cobalto, por exemplo, foi um deles. Essa lei gerou a mobilização de empresas como Glencore, Rio Tinto e tantas outras. Elas denunciaram que isso era inaceitável, por ser contra a liberdade dos mercados. Uma das primeiras medidas que Donald Trump tomou ao assumir o governo, em janeiro de 2017, foi a de acabar com essa lei. Como esse, existem muitos outros exemplos em meu livro.

6. Em quais setores?

A agricultura é outro. Em 2011, três semanas antes da reunião do G7 em Cannes, o então presidente da França, Nicolas Sarkozy, foi à televisão e declarou que proporia que a especulação nas bolsas e no mercado financeiro fosse proibida, principalmente sobre arroz, milho, trigo e outros produtos agrícolas de base. Seria uma forma de lutar contra o aumento de preços dos alimentos básicos, especialmente nos países mais pobres. Faltando poucos dias para o G7, a França retirou sua proposta, depois de ter sido pressionada pelas grandes empresas do setor, como Unilever, Nestlé e outras.

7. O que isso significa para uma democracia?

É um sistema que priva o cidadão, mesmo numa democracia, de todo tipo de resposta efetiva à precariedade, à desigualdade, que destrói o estado social. É nesse contexto que se cria um desespero silencioso e secreto entre os cidadãos. E, como sempre ocorreu na história e como ocorreu nos anos 30 na Alemanha, é nesse momento que vêm os grupos de extrema-direita com sua estratégia de criar um bode expiatório.

8. De que forma?

O discurso é simples. Eles chegam e declaram ao cidadão: “Sim, sua situação é insuportável. Você tem razão”. Não falam como outros, que tentam dar esperanças ou dizer que as coisas vão melhorar. Mas, num segundo momento, o que fazem? Apresentam um bode expiatório para essa crise. Na Europa, são os imigrantes e os refugiados. A estratégia do bode expiatório tem funcionado. Basta ver os resultados do partido Alternativa para a Alemanha. Hoje, ele tem o mesmo número de representantes no parlamento que o tradicional SPD, o partido social-democrata alemão, de políticos como Willy Brandt. O mesmo ocorreu na Itália, com Matteo Salvini; na Hungria, com Viktor Orbán; na Holanda; na Áustria. Além disso, a consciência coletiva está sendo cimentada por uma ideologia neoliberal de que o homem não é mais o sujeito da história e que apenas pode se adaptar à situação e às forças do mercado, que obedecem às leis naturais.

9. Tal cenário ameaça minar a própria democracia?

Jean-Jacques Rousseau publicou O contrato social , em 1762, que foi a Bíblia para a Revolução Francesa. Ele descreveu a soberania popular e o fato de darmos voz a alguém para nos representar. A delegação é um pilar do contrato social. Mas esse contrato social, que é a fundação da República, está esgotado. A democracia representativa está esgotada. O povo não acredita mais nela. O povo vê que, ao votar em um deputado, não é ele que toma decisões, mas a ditadura mundial das oligarquias do capital financeiro globalizado. Ao mesmo tempo, esse povo não está disposto a abrir mão de seu poder nem de sua capacidade de intervenção. No caso dos coletes amarelos, na França, um dos pontos principais é o apelo por referendos populares como mecanismo. O que eles estão dizendo é: o parlamento faz o que quer. Queremos ter o direito de propor leis, de votar nelas.

10. E quais são as respostas possíveis?

Retirar das consciências essa placa de cimento que foi imposta. Liberar a consciência dos homens, que é, por natureza, uma consciência de identidade. Se um homem, de qualquer classe social ou de qualquer religião, vir diante dele uma criança martirizada, algo de si se afunda. Ele se reconhece imediatamente nela. Somos a única criatura na Terra com essa consciência da identidade. E é por isso que milhões de jovens na Europa e na América do Norte se mobilizam em imensos cortejos, todas as semanas, pela sobrevivência do planeta e contra o capitalismo. O que eles estão dizendo a seus governos? Assim não podemos continuar. Façam algo contra essa ordem canibal do mundo.

11. A questão climática pode ser decisiva nesse contexto para modificar a forma de pensamento?

Pelo Acordo de Paris, cada um dos 190 Estados que o assinaram assumiu obrigações precisas para limitar as emissões de CO2 na atmosfera. Do total de CO2 emitido, 85% vem de energias fósseis. O acordo pede que as cinco maiores empresas de petróleo reduzam 50% de sua emissão até 2030 e deem parte dos lucros ao desenvolvimento de energia alternativas, como solar, eólica e outras. Mas o que é que ocorreu desde 2015? As cinco grandes empresas de petróleo do mundo aumentaram sua produção, em média, em 18%. E financiaram energias alternativas somente em 5%. Os jovens dizem: isso não funcionará.

12. Onde está a esperança?

Na sociedade civil planetária. Na miríade de movimentos sociais — Greenpeace, Anistia Internacional, movimento antirracista, de luta pela terra — que lutam contra a ordem canibal do mundo. São entidades que não obedecem a um comitê central ou a uma linha de partido e que funcionam por um só princípio: o imperativo categórico. Kant dizia: “A desumanidade infligida a um outro humano destrói a humanidade em mim”. Eu sou o outro e o outro sou eu. Essa consciência, em termos políticos, cria uma prática de solidariedade entre os indivíduos e de reciprocidade entre os povos. Mas essa sociedade é invisível. Não tem uma sede. Ela é visível cinco dias por ano, no Fórum Social Mundial, organizado pelos brasileiros em Porto Alegre. O escritor francês George Bernanos escreveu: “Deus não tem mãos que não sejam as nossas”. Ou somos nós que mudaremos essa ordem canibal do mundo, ou ninguém o fará.

LEIA TAMBÉM: Piketty: "Que venha o socialismo!"

______________________

(*) Por Jamil Chade, originalmente para a Revista Época, 31-05-2019