Há duzentos anos nascia Karl Marx

“A chave para a inovação não deve ser buscada na química eletrônica, no maquinário automático, na aeronáutica, física atômica ou em quaisquer dos produtos dessas tecnologias científicas, mas sim na transformação da própria ciência em capital”

(Harry Braverman, “Trabalho e Capital Monopolista”, 1974, citado por Tessa Morris-Suzuki, “Robots and Capitalism”, New Left Review- NLR 147, set/out 1984).

Neste dia 5 de maio completaram-se duzentos anos do nascimento de Karl Marx. “Democracia e Socialismo” junta-se ao encontro universal das homenagens a este grande humanista, pensador e militante da marcha histórica da humanidade. A citação acima, de Braverman, que nos vem através de Tessa-Morris Suzuki, ilustra a fertilidade da herança de Marx para a análise do mundo contemporâneo. Como aliás previra F. Engels, por ocasião da morte de Marx, no discurso que se segue. 



Marx jovem 

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Discurso diante da sepultura de Marx

Friedrich Engels
18 de março de 1883

No dia 14 de março (1883), às quinze para as três da tarde, deixou de pensar o maior pensador de nossos dias. Mal o deixamos dois minutos sozinho, e quando voltamos foi para encontrá-lo dormindo suavemente em sua poltrona, mas para sempre.

É totalmente impossível calcular o que o proletariado militante da Europa e da América e a ciência histórica perderam com este homem. Logo se fará sentir o claro que se abriu com a morte desta figura gigantesca.

Assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da natureza orgânica, Marx descobriu a lei do desenvolvimento da história humana: o fato tão simples, mas que até ele se mantinha oculto pelo cipoal ideológico, de que o homem precisa, em primeiro lugar comer, beber, ter um teto e vestir-se antes de poder fazer política, ciência, arte, religião, etc; que, portanto, a produção dos meios de subsistência imediatos, materiais, e, por conseguinte, a correspondente fase econômica de desenvolvimento de um povo ou de uma época é a base a partir da qual se desenvolveram as instituições políticas, as concepções jurídicas, as ideias artísticas e inclusive as ideias religiosas dos homens e de acordo com a qual devem, portanto, explicar-se; e não o contrário, como se vinha fazendo até então.

Mas não é isso só. Marx descobriu também a lei específica que move o atual modo de produção capitalista e a sociedade burguesa criada por ele. A descoberta da mais valia iluminou de súbito esses problemas, enquanto que todas as pesquisas anteriores, tanto as dos economistas burgueses como as dos críticos socialistas, haviam vagado nas trevas.

Duas descobertas como essas deviam bastar para uma vida. Quem tenha a sorte de fazer apenas uma descoberta dessas já se pode considerar feliz. Mas não houve um campo sequer que Marx deixasse de submeter à pesquisa - e esses campos foram muitos, e não se limitou a tocar de passagem em qualquer deles - incluindo a matemática, em que não fizesse descobertas originais.

Tal era o homem de ciência. Mas não constituía, por muito que fosse, a metade do homem. Para Marx a ciência era uma força histórica motriz, uma força revolucionária. Por mais puro que fosse o prazer que oferecesse uma nova descoberta feita em qualquer ciência teórica e cuja aplicação prática talvez não pudesse ser ainda prevista de modo algum, era outro o prazer que experimentava quando se tratava de uma descoberta capaz de exercer imediatamente uma influência revolucionadora na indústria e no desenvolvimento histórico em geral. Por isso acompanhava detalhadamente a marcha das descobertas realizadas no campo da eletricidade, até as de Marcel Deprez nos últimos tempos.

Pois Marx era, antes de tudo, um revolucionário. Cooperar, de um modo ou de outro, para a derrubada da sociedade capitalista e das instituições políticas por ela criadas, contribuir para a emancipação do proletariado moderno, a quem ele havia infundido pela primeira vez a consciência de sua própria situação e de suas necessidades, a consciência das condições de sua emancipação: tal era a verdadeira missão de sua vida. A luta era o seu elemento. E lutou com uma paixão, uma tenacidade e um êxito como poucos.

Primeira Gazeta Renana, 1842; Vorwärts de Paris, 1844; Gazeta Alemã de Bruxelas, 1847; Nova Gazeta Renana, 1848/1849; New York Times, 1852 a 1861 - a tudo isso é necessário acrescentar um montão de folhetos de luta e o trabalho nas organizações de Paris, Bruxelas e Londres, até que nasceu, por último, como coroamento de tudo, a grande Associação Internacional dos Trabalhadores, que era, na verdade, uma obra da qual o seu autor podia estar orgulhoso ainda que não houvesse criado outra coisa.

Marx, por isso, era o homem mais odiado e mais caluniado de seu tempo. Os governos, tanto os absolutistas como os republicanos, o expulsavam.

Os burgueses, tanto os conservadores como os ultra-democratas, competiam em lançar difamações contra ele. Marx punha de lado tudo isso como se fossem teias de aranha, não fazia caso; só respondia quando isso era exigido por uma necessidade imperiosa. E morreu venerado, querido, pranteado por milhões de operários da causa revolucionária, como ele, espalhados por toda a Europa e a América, desde as minas da Sibéria até a Califórnia. E posso atrever-me a dizer que se pode ter muitos adversários, teve somente um inimigo pessoal.

Seu nome viverá através dos séculos, e com ele a sua obra.


Populismos e democracia bloqueada

Luiz Sérgio Henriques nos traz uma análise da crise do sistema político no Brasil em suas semelhanças com os casos da Itália e da América Latina. Corrupção integrada a um “sistema de poder”, a atuação do Judiciário, populismos e o bloqueio da democracia. As duríssimas lições da tragédia chilena dos anos 70, muito presentes para os comunistas italianos desde então, levaram-nos à compreensão da democracia como vital para a formação de consensos impulsionadores das mudanças sociais.






Populismos e democracia bloqueada

Luiz Sergio Henriques*
Abril 2018**

Nos anos 70 do século passado Enrico Berlinguer, talvez o último grande dirigente do comunismo histórico, extraía para seu país, a conturbada Itália, uma lição advinda da tragédia de Salvador Allende na então distante América Latina. Impossível traçar, dizia Berlinguer, uma estratégia de superação das contradições mais agudas de uma sociedade – qualquer que fosse ela, mas especialmente as sociedades mais desenvolvidas – se a nação estivesse partida, digladiando-se ferozmente em metades inconciliáveis. Não bastaria à esquerda ter 50% mais um dos votos do eleitorado para levar adiante suas propostas: o apoio teria de ser mais amplo, as motivações, mais argumentadas e, particularmente, nenhuma dúvida poderia pairar sobre a obediência estrita das principais forças mudancistas às exigências da democracia política.

Não importa que a História se tenha mostrado bem mais imprevisível do que um político sofisticado como Berlinguer podia admitir com sua generosa estratégia de compromisso entre todos os democratas, muito além dos muros da cidadela da própria esquerda. O dado essencial a ser aqui considerado é que a partir de então, se dúvida havia, nenhuma esquerda podia mais pôr em questão o fato de que, para se credenciar a um papel dirigente, de nada lhe valeria colocar-se fora da dialética democrática em seu sentido mais estrito – a validação dos resultados eleitorais, a legitimação conferida aos adversários, a admissão da alternância no poder. Estratégias ou palavras de ordem inutilmente divisivas seriam pagas com o fracasso dos reformistas ou, pior ainda, com a perda da noção de um terreno comum a todos os cidadãos e definidor dos patamares mínimos de convivência.

O PCI de Berlinguer, a propósito, pisava em campo minado, que não podia ser transposto segundo a perspectiva da época. O sistema estava bloqueado nos termos da guerra fria. Havia o que se convencionou chamar de “sistema de poder” em torno dos democratas-cristãos e tal sistema se reproduziria aparentemente de modo indefinido, produzindo, entre outras coisas, o que os comunistas italianos não hesitavam em chamar de autêntica “questão moral” – e seus críticos viam como moralismo sem alcance estratégico. A ocupação do Estado pelos mesmos partidos, ainda que longe da patologia dos partidos-Estado do Leste Europeu, era causa de degradação dos costumes políticos e administrativos. E não podia prenunciar boa coisa. O bloqueio seria rompido menos pela política partidária do que pela irrupção clamorosa de uma operação judicial inédita até então, a qual, surpreendentemente, reverberaria no Brasil de nossos dias.

A ideia de que nos anos dourados do petismo se estava a gerar algo como um extraordinariamente resistente “sistema de poder” é uma boa pista a explorar. Episódios como o mensalão e o petrolão, entre outros, pareceram obedecer a uma lógica de ocupação numa escala desconhecida em nosso sistema político-partidário, que, diga-se de passagem, nunca se notabilizara pela transparência nos custos de campanha e no financiamento de suas atividades em geral. Havia aqui, como os autos indicam, “tenebrosas transações” entre empresas públicas, dirigentes partidários e grandes companhias privadas, capazes de gerar recursos para campanhas eleitorais com custos fora de qualquer controle – e os inevitáveis desvios colaterais para bolsos privados.

O sistema, assim, passou a funcionar simultaneamente sem transparência, limite ou controle da parte dos cidadãos. Alguém poderá argumentar, e terá razão, que se trata de práticas herdadas do passado, em geral tacitamente admitidas, e que o maior partido oposicionista, entrincheirado em dois dos principais Estados da Federação, teria sido responsável por criar e manter azeitados mecanismos de poder. No entanto, sem negar essa pesada responsabilidade, pode-se retrucar que o esquema petista exacerbou as irregularidades em termos tanto quantitativos quanto qualitativos. Não estávamos aqui diante de empreendimentos locais ou regionais, mas de um fenômeno que, pela primeira vez, chegava a ultrapassar as fronteiras do País.

Este último ponto merece atenção. Recursos financeiros e estratégias políticas se misturaram de modo explosivo por toda a América Latina, num tempo em que se passou a afirmar a hipótese problemática – para ser cauteloso – de certo “socialismo do século 21”. Bem pesadas as coisas, tratava-se menos de socialismo que de um ataque populista de esquerda à democracia representativa, de conteúdo diverso, mas formalmente não muito diferente dos ataques populistas de direita que assolam a Europa e a América do Norte e, infelizmente, também já não nos poupam.

Longe da melhor tradição comunista, evocada na figura de Berlinguer, o recurso expressivo típico desses populismos, na variedade de suas manifestações, é a retórica e a prática divisiva e confrontacional. Pretenderam cancelar o passado e refundar as nações, mas os resultados, uma vez no poder, foram medíocres ou catastróficos, como no caso venezuelano – veia aberta no continente. A técnica de construção de blocos de poder supostamente inamovíveis, exportada para os parceiros latino-americanos do petismo, tornou-se, contra a intenção de seus promotores, um verdadeiro teste de solidez das instituições democráticas, desafiadas a enfrentar subornos, escândalos e até crises de impeachment numa dezena de países.

Uma esquerda forte e plural é condição necessária, ainda que não suficiente, para a efetivação de uma agenda social digna do nome, bem como de um regime de liberdades que garanta essa agenda e seja por ela nutrido. Uma coisa nunca vai sem a outra: não há progresso social sem voto e democracia “formal”. Entre nós e esse caminho virtuoso ainda se interpõem os populismos de esquerda e de direita, que deveriam ser, mas não são, fato marginal ou lembrança do passado.

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* Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci
**Reproduzido de O Estado de S.Paulo, 15-04-2018

Lula e a Travessia

 Sergio  Augusto de Moraes
 Abril de 2018
                                                                                                                                          
Na turbulência dos dias de hoje a principal questão que se coloca para as forças democráticas é chegar às eleições de outubro mantendo vivas as instituições criadas pela Constituição de 1988. É neste contexto que deve ser analisado o episódio da condenação e prisão de Lula.

Neste sentido o trabalho dos juízes e desembargadores da operação Lava- Jato nas primeira e segunda instâncias é uma preciosa contribuição. Em nenhum momento deixaram de se ater aos preceitos jurídicos, sem deixar-se influenciar pelas pressões políticas, viessem donde viessem. O STJ ateve-se também aos limites da área jurídica. O mesmo não se pode dizer do STF  quando, no julgamento do habeas –corpus impetrado pelos advogados de Lula, alguns juízes tomaram posições com vieses claramente políticos.

Cumpre destacar que tal comportamento pouco republicano não atendia somente aos interesses do ex-presidente. Embutido no caso do habeas-corpus de Lula estava, e continua a estar, a questão da condenação e prisão em segunda instância; por um lado, peça indispensável à redução das desigualdades no Brasil, por outro, fantasma que ronda e amedronta inúmeros políticos importantes tanto do executivo quanto do legislativo. Aqui reside a fragilidade da medida tomada pelo STF.

Assim se torna necessário olhar com cuidado para o discurso de Lula feito ontem no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Nenhuma palavra sobre a importância da manutenção e ampliação da democracia, ao contrário, o que se viu foram auto elogios, propaganda eleitoral e diatribes contra várias instituições da República, mormente contra a Justiça e a imprensa, pilares indispensáveis à consolidação daquela. Sem contar os apelos à resistência da militância que poderiam  gerar, caso não fosse a atitude serena e responsável de Sergio Moro e da Polícia Federal, um enfrentamento de consequências imprevisíveis.

Os erros cometidos por Lula e o PT têm raízes que remontam aos anos de sua formação. Mas se nos ativermos ao período mais recente salta aos olhos a corrupção, fruto também da aliança com o que há de mais atrasado no Brasil, que grassou nos governos Lula e Dilma, cujas entranhas foram abertas ao público nos episódios do mensalão e da operação Lava-Jato. E a incapacidade do PT de, pelo menos uma vez, reconhecer seus erros e revelar ao povo os entraves que o compadrio, o clientelismo, o autoritarismo, o patrimonialismo e a corrupção colocam a um governo verdadeiramente democrático e republicano, atitude que com certeza  contribuiria para a remoção dos mesmos. Entraves estes que tendem a persistir  caso permaneçam ocultos para a maior parte  dos eleitores.   

Nossa democracia ainda é jovem e suas decisões ainda são frágeis. Só a ação conjunta das forças democráticas poderá impedir a marcha-à-ré que interesses obscuros tramam para o futuro próximo. Na quarta-feira que vem ela será submetida a outro teste. Cumpre agir rapidamente.