Aprender com os chilenos?

"Não vamos desempenhar um papel hegemônico no governo de Boric

Dezembro/2021

 “Somos o maior partido da coalizão “Aprovo Dignidade”. Muito bem, mas a única coisa que isto nos faz ver é que temos uma grande responsabilidade”, enfatizou o presidente do Partido Comunista, Guillermo Teillier. A respeito do papel dos comunistas no futuro gabinete de Gabriel Boric, ele disse que cabe ao presidente eleito "se estamos no comitê político ou não". Ele argumentou que “concordamos com o que Boric disse, que seu governo estará com os dois pés nas ruas, intimamente relacionado com o movimento social”.

(Da entrevista de Guillermo Teillier para Hugo Guzman, jornalista. "El Siglo”, Santiago. 20/12/2021). Íntegra a seguir*.


Gabriel Boric, Presidente eleito do Chile, discursa após a vitória - Foto: Javier Torres (AFP)

A que você atribui o triunfo de Gabriel Boric, sobretudo com uma distância de 10 pontos sobre José Antonio Kast?

Existem vários elementos. Em primeiro lugar, que se conseguiu convocar setores que pertenciam a outras forças políticas para votar em Boric. As bases de muitos partidos que não são do “Aprovo Dignidade” votaram em Boric. Algo muito importante é que se apelou aos jovens que haviam votado a favor do Aprovo (nova Constituição), mas que não votaram no primeiro turno e mudaram, para votarem no segundo turno, manifestando que era preciso defender a democracia, uma nova Constituição e que era preciso avançar em resposta às demandas sociais levantadas desde outubro de 2019, na revolta popular. A recuperação do terreno perdido em lugares como Antofagasta, o que deixa às claras que o voto em (Franco) Parisi[1] se voltou para Boric, não para Kast, e a votação na Região Metropolitana, que foi muito grande e espetacular. Houve votos muito bons em comunas populares, por exemplo Lo Espejo, onde Boric teve 72%, outras como Pedro Aguirre Cerda com uma votação elevada, El Bosque, Puente Alto e Região de Valparaíso compareceram com uma votação elevada para Boric . O terreno foi recuperado em várias comunas onde Kast havia vencido no primeiro turno. Também foi influenciado pelo fato de Gabriel Boric ter especificado muito bem os pontos-chave do programa que vai levar adiante. Outro fator é que houve muita mudança de voto nos territórios. O projeto foi bem apresentado e difundido nos finais da campanha, inclusive nas redes sociais. Recorde-se que o comando foi reorganizado no segundo turno, que foi ampliado. Houve figuras que desempenharam um papel muito importante, de todos os partidos, independentes, com um fortalecimento de todo o trabalho que requer uma campanha eleitoral desta natureza.

Ademais tem a ver também com o fato de que Kast estava completamente errado com seu anticomunismo tão abusivo e repetitivo. E ele estava errado, acima de tudo, porque sua missão era vencer o comunismo, independentemente do fato de que o programa não é dos comunistas mas de um conjunto de forças, de muitos setores sociais e profissionais, que foi feito com o povo. Este foi um fator na derrota de Kast. As pessoas se deram conta de que aquele seu discurso fazia parte de um espantalho para justificar suas políticas e falácias.

Mas eles não querem deixar isso de lado. Porque agora falam que o Partido Comunista vai ser um fardo para o governo de Boric, que vai ser rígido, que é extremista. Eles repetem o mesmo discurso da campanha.

O anticomunismo foi derrotado pelo povo chileno. Quem ganhou foi o povo chileno. Somos participantes desta vitória, mas o povo é que defendeu a democracia e o processo constituinte.

Pois bem, nós comunistas, já o dissemos e deve ficar claro, não vamos desempenhar um papel hegemônico no governo de Boric. Somos o maior partido da coalizão “Aprovo Dignidade”. Muito bem, mas a única coisa que isto nos faz ver é que temos uma grande responsabilidade. O povo nos deu uma responsabilidade, nos deu mais votos, mais parlamentares, permitiu-nos quebrar a exclusão no Senado, ter mais vereadores regionais, mas isso não quer dizer que vamos ser a força hegemônica. Queremos agir em pé de igualdade com as outras forças. Se participarmos do gabinete (ministerial),queremos fazer o mesmo que todos, não queremos ter privilégios, mas não queremos ser desproporcionais. Em outras palavras, temos os mesmos direitos e queremos ter as mesmas oportunidades.

Nesse sentido, o que o senhor diria quanto a que o PC deveria vir a estar no comitê político do La Moneda?

Esta é uma decisão do presidente eleito. Ele disse que antes de 25 de janeiro terá o gabinete formado. Terá que ver-se. Ele terá que decidí-lo. Boric disse que será numa conversação com os partidos, sem que os partidos imponham a sua vontade ao presidente eleito. Ele fazendo um gesto de conversar, será a ocasião de apresentarmos as nossas propostas. Nós não temos discutido o que queremos no gabinete. O que nos interessa é estarmos em condições de poder dar resposta, nos postos onde melhor possamos contribuir para o cumprimento do programa e das demandas da cidadania. Então esta pergunta só pode ser respondida pelo presidente eleito, se estamos ou não no comitê político, ou em quais cargos de governo.

Bem, é a oportunidade de se perguntar. Na era pós-ditatorial, esta é a segunda vez que o Partido Comunista faz parte de uma coalizão que venceu as eleições presidenciais. Que significado e projeção isso tem para o PC?

Temos sido constantes na promoção de reformas profundas, na luta pela democracia, em deixar para trás a Constituição da ditadura, em promover os direitos dos trabalhadores e do povo. Por isso entramos no governo de Michelle Bachelet. Creio que somos reconhecidos por isso, por esses objetivos. Algumas reformas foram alcançadas, outras não. Antes do governo Bachelet não tínhamos maior experiência, pois aqueles que estiveram no governo de (Salvador) Allende já não mais estavam em condições de se integrar. Estávamos numa situação de menos capacidade do que agora em termos de quadros, de experiência. Tínhamos menos força, menos parlamentares, menos votos. Agora a situação mudou. A experiência do Governo de Michelle Bachelet, com todos os seus acertos e erros, foi muito fértil para nós. Hoje nos dá uma capacidade de contribuirmos mais neste governo de Boric.

Agora, sempre consideramos isso como parte de um processo onde se conjugam muitos fatores, muitos fenômenos que vão se concatenando ao longo do tempo. Houve lutas estudantis, longas lutas trabalhistas, processos eleitorais, levante social. E cada vez se avança mais no aperfeiçoamento da democracia e da participação. Esperemos que este Governo signifique um avanço maior em várias direções. É o que esperamos, sinceramente. As medidas que estão propostas como principais, esperamos que sejam cumpridas neste curto período de tempo, que é de quatro anos.

Precisamente quanto à participação, como vê o PC a forma como o movimento social terá de se expressar nesses quatro anos?

Concordamos bastante com o que Gabriel Boric disse em seu discurso na noite do triunfo, que seu governo estará com os dois pés nas ruas, ou seja, intimamente relacionado ao movimento social, conversando com o movimento social. Estamos absolutamente de acordo com isso e em ter a contribuição e o apoio do mundo social. Isto é vital.

Hoje é impossível falar da antiga “Concertación”. A Democracia Cristã parece que será oposição a Boric, o Partido Socialista quer colaborar. Como vê a possibilidade de integração destes partidos ao futuro Governo?

Veja, o presidente eleito nos convocou aos presidentes dos partidos políticos do “Aprovo Dignidade” e dos demais partidos que contribuíram para o triunfo de Boric e a derrota de Kast.

Conversaram no domingo ao entardecer?

Sim, domingo à tarde. Gabriel Boric agradeceu aos partidos do “Aprovo Dignidade”, a todos os outros partidos, pela contribuição a sua vitória, e foi muito claro em manifestar que apelaria à contribuição, opinião e colaboração de todos aqueles que desejassem trabalhar para cumprir o programa e as medidas propostas. Tendo em conta, disse, que a casa deste Governo é o “Aprovo Dignidade”. Porém, a partir daí, pode-se buscar ampliar esta base de sustentação ou acumulação de forças para levar adiante as mudanças.

Ele não falou em integrar outros partidos à coalizão. Disse sim, que estava disposto a trabalhar com os partidos institucionalmente. Disse, "sou militante de partido, respeito os partidos, quero que se desenvolvam", e dentro disso propôs também trabalhar com pessoas independentes. Acho todavia que ainda não está claro, da parte do presidente eleito, como ele nomeia o gabinete.

No “Aprovo Dignidade”, antes da campanha, durante a campanha e talvez durante o governo, houve e haverão divergências entre os partidos. Como administrá-las?

Bem, administrando-as...

Porque elas vão surgir.

É que não temos outra possibilidade.

Olha, num sistema como este o Presidente da República sempre terá preponderância. Sem dúvida haverá divergências de opiniões sem que implique em atentar contra o Governo. Todos os partidos deverão ser cuidadosos e um diálogo permanente será necessário. Creio que vamos estar tão ocupados cumprindo o programa e o trabalho do Governo e do Parlamento que não deverão surgir tantas divergências, que também são normais.

Vai ser preciso muita habilidade e conversação no nível parlamentar.

Sem dúvida. Porque há um empate no Senado, embora tenhamos maioria com uma certa folga na Câmara dos Deputados. Poderíamos até chegar aos três quintos, mas há reformas constitucionais que podem não ser possíveis se não tivermos dois terços. Há leis de caráter ordinário como a da reforma tributária, que é muito importante e há possibilidades de aprová-la, se bem acordada. Aí seria necessário o apoio de organizações sociais, sindicais, de todos aqueles que querem levar as mudanças adiante.

Fala-se em chegar a acordos, construir pontes. Mas salta o fantasma da "política dos consensos" implementada durante a transição e que incluía a direita.

Depende de para quê serve o consenso. Pois se é para fazer as coisas "na medida do possível", acho que não. Mas se houver consenso para fazer uma reforma, sem que isso signifique fazer "na cozinha", tudo bem. A palavra consenso não é má em si mesma. É em relação a quê se dão os consensos. Posso ter um consenso no Partido Comunista e não é ruim. O consenso é para avançar. Mas se for para impedir as mudanças, isso não é positivo. Não são aqueles consensos com a direita, onde as coisas permaneciam mais ou menos na mesma.

Vocês vão ficar atentos, em alerta para o que as forças de direita e segmentos de extrema direita poderão fazer durante o governo Boric?

Você pode ver que já existem rachaduras à direita. Por exemplo, vejo haverem vários que não querem Kast fazendo parte do Chile. Admitamos que tampouco ele terá a liderança da direita. Há pessoas como o senador (Manuel José) Ossandón que disse estar disposto a participar de processos pré-legislativos para dar a possibilidade de aprovar alguns projetos de lei do futuro Governo. É possível que ante algumas leis se possa contar com o voto de uma direita menos extremista. Creio que o setor da extrema direita, devido às declarações iniciais de gente como Rojo Edwards, vá seguir com seu anticomunismo. Tratarão de seguir usando o anticomunismo da pior forma. No entanto, este nefasto anticomunismo será derrotado e as esperanças e expectativas do povo prevalecerão.

LEIA TAMBÉM:

Chile-Três depoimentos sobre o 11 de setembro de 1973

Democracia e Socialismo: A experiência chilena

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[1] Candidato populista de direita, Franco Parisi alcançou o 3º lugar no 1º turno, desbancando os dois candidatos das forças tradicionais - Sebástian Sichel, o sucessor do presidente Piñera, e Yasna Provoste, da ex-Concertación, dos ex-presidentes Ricardo Lagos, Eduardo Frei e Michelle Bachelet.

(*)Publicado originalmente em El Siglo, 20/12/2021. Tradução de Alfredo Maciel da Silveira, especial para “Democracia e Socialismo”.

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A mãe de todas as reformas

Em novo artigo, Sérgio Gonzaga de Oliveira analisa alguns aspectos da democracia brasileira que podem explicar a estagnação em que o país se encontra desde a década de 80 do século passado. Para tal faz uma comparação entre o presidencialismo norte americano e o brasileiro, concluindo que o Brasil, nas últimas décadas evoluiu para uma grave falha institucional. Esta, pode dificultar muito o próximo Governo, qualquer que seja o Presidente a ser eleito em 2022.

Além disso, é sempre bom lembrar que o caos político e econômico cria o ambiente favorável às aventuras totalitárias.

Segue-se o artigo

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A mãe de todas as reformas: presidencialismo ou semipresidencialismo?

Sérgio Gonzaga de Oliveira*

Novembro - 2021 

Os brasileiros estão perplexos e sem esperança. As instituições políticas têm baixo nível de aprovação. Não é para menos. Os indicadores sociais são assustadores. Pobreza, saúde precária, desemprego, uberização, informalidade e outras mazelas, atingem a maior parte da população. As camadas médias sofrem com a violência urbana e a insegurança em relação ao emprego e a renda. A elite econômica se refugia em guetos disfarçados de oásis, cercados de grades por todos os lados. A falta de perspectiva, de emprego e de renda acaba atingindo todas as classes e camadas sociais, embora, como sempre, penalize com mais rigor os mais pobres.

É verdade que não somos um país atrasado do ponto de vista econômico. Mas também estamos longe do pleno desenvolvimento. Paramos no meio do caminho. Nesses últimos 40 an0s o crescimento da renda per capita foi de 0,7% ao ano. Um quase nada. Já no período anterior, entre 1930 e 1980, o PIB cresceu, em média, 6,0% ao ano (1). Sem dúvida, uma taxa de crescimento chinesa. Não se pode dizer que não houveram progressos nas últimas quatro décadas. Entretanto, quando comparamos o Brasil com outros países que se desenvolveram recentemente, parece que ficamos parados. Mas afinal, quais são as razões para essa estagnação? Porque paramos?

Não existe uma resposta simples para essa pergunta. Este artigo pretende analisar algumas questões que, do ponto de vista institucional, podem ter sido decisivas para a formação do quadro desolador em que vivemos.

 
Já há algum tempo, a Ciência Econômica considera as Instituições de um país como uma peça chave no desempenho de sua economia. Nas últimas décadas, o estudo das relações entre as Instituições e a economia ganhou muito destaque e deu a Douglass North o Prêmio Nobel de 1993. Como escreveu North, em seu livro “Institutions, Institutional Change and Economic Performance”,“A História importa. Ela importa, não somente, porque podemos aprender com o passado, mas porque o presente e o futuro estão conectados ao passado pela continuidade das instituições sociais. As escolhas de hoje e de amanhã são moldadas pelo passado” (2).

Com base nos dados do último Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU (3), pode-se caracterizar como países desenvolvidos aqueles que têm um IDH muito alto (maior que 0,8) e uma renda per capita superior a US$ 30 mil (em paridade de poder de compra). Com esse critério, 45 países estão nessas condições. Desse total, 38 são democráticos e a maioria esmagadora é parlamentarista ou, em alguns casos, semipresidencialista. As duas únicas exceções são os Estados Unidos da América e a República de Chipre, este, um pequeno e belo país numa ilha do Mediterrâneo. Ambos são presidencialistas. Deve-se ressaltar que a classificação adotada para países desenvolvidos é um pouco arbitrária, mas se tomarmos outras classificações como as do Banco Mundial ou do FMI a conclusão não será muito diferente: o regime político dominante entre os desenvolvidos e democráticos é o parlamentarismo ou uma de suas variantes.

Por sua dimensão, longevidade e proximidade com o Brasil, o sistema americano merece nossa atenção.

O presidencialismo norte americano
 

Nos EUA existe uma sólida tradição bipartidária que divide o país ao meio do ponto de vista eleitoral. Quando um presidente é eleito ele carrega consigo, no mínimo, algo próximo a metade do Congresso. Sua base de sustentação já começa com um número expressivo de parlamentares. Mesmo quando o Presidente não conta com uma maioria no Congresso, a diferença em relação à oposição é muito pequena, o que facilita eventuais negociações.

Adicionalmente, a derrubada de um veto presidencial exige a expressiva maioria de 2/3 dos votos. A simples existência desse dispositivo lhe assegura um elevado poder de barganha nas negociações, já que os parlamentares sabem que o Presidente usará o poder de veto em caso de derrota. E esse veto dificilmente será anulado pelos opositores, tendo em vista o equilíbrio entre os dois partidos.

Outro instrumento igualmente poderoso são as Ordens Executivas. Podem ser emitidas pelo Presidente em uma vasta gama de assuntos. Kenneth Mayer em seu livro “With the Stroke of a Pen: Executive Orders and Presidential Power” (4) relaciona oito categorias para as cerca de 5.800 Ordens Executivas que foram emitidas no período de 1936 a 1999. Criação, extinção ou transferência de atribuições de órgãos da administração, declaração de estado de emergência, criação, alteração ou extinção das áreas ou reservas públicas e política interna, incluindo energia, meio ambiente, direitos civis, economia e educação são algumas delas. Muitas trataram de segurança nacional e relações externas, como a que recentemente determinou o retorno dos EUA ao Acordo de Paris. Além disso, as Ordens Executivas dão ao Presidente a capacidade de tomar a iniciativa quando algum assunto ainda não está regulado por lei. Quando o Congresso resolve legislar, os efeitos da Ordem Executiva já estão bem estabelecidos, limitando a ação parlamentar.

Essas características do sistema americano, notadamente o equilíbrio bipartidário, o alto poder de veto e as Ordens Executivas, criam condições para que o Presidente, junto com o seu partido, cumpra o programa de governo que o elegeu.

Muito provavelmente, por influência cultural dos EUA a América Latina adotou o presidencialismo desde o nascimento de suas Repúblicas.

O presidencialismo brasileiro

Uma das principais diferenças entre o presidencialismo brasileiro e o americano, tem sido a proliferação partidária. O crescimento do número de partidos desde o término da ditadura militar é bastante expressivo. Logo após o fim do bipartidarismo, nas eleições gerais de 1982, concorreram 5 partidos políticos. Em 1994 na eleição de FHC já haviam 15 partidos, subindo para 28 na eleição da Dilma em 2014. Hoje estão registrados no Tribunal Superior Eleitoral 33 partidos.

Além do aumento do número de partidos, o sistema tornou-se cada vez mais pulverizado. Como referência, vale destacar que em 1982 os dois maiores partidos detinham 84,9% da representação na Câmara, enquanto que com FHC esses mesmos maiores partidos foram reduzidos a 38,6%. Em 2014, com a Dilma, representavam 32,4% e hoje os dois maiores partidos detêm apenas 20,6%. Nessas quatro décadas o número de partidos aumentou muito enquanto a representatividade de cada um deles despencou. Nesse quadro, a construção de uma base parlamentar é bastante difícil, mesmo para presidentes com grande capacidade de articulação política. Para presidentes com baixa capacidade de articulação, essa tarefa é quase impossível. Não à toa, desde a democratização, dois deles sofreram impeachment e o atual, para evitar a queda, entregou a articulação política e a condução do governo aos líderes do Congresso. Formou-se uma espécie de presidencialismo-parlamentarista muito confuso e disfuncional.

Deve-se acrescentar que, no Brasil, os vetos presidenciais podem ser derrubados pela maioria dos Deputados e Senadores eleitos (maioria absoluta), em contraste com os 2/3 exigidos pelo sistema americano.

Mas isso não é tudo. Em termos de autonomia do Presidente, a deterioração ao longo do tempo também é evidente. A Constituição de 1988 criou as Medidas Provisórias (MP) com a finalidade de dotar o Presidente de uma certa liberdade, principalmente em situações de relevância e urgência. De 1988 a 2001 as Medidas Provisórias podiam ser emitidas praticamente sobre qualquer assunto, já que o texto constitucional era muito vago em relação ao significado de relevância e urgência. Eram válidas por 30 dias, mas para não perder a legalidade podiam ser renovadas indefinidamente. Esse período foi marcado por sete tentativas de conter a alta inflação herdada da ditadura militar. Por conta do combate à inflação ou pela facilidade de emissão e renovação das Medidas Provisórias, essa prática atingiu números absurdos. No auge, de janeiro de 2000 até setembro de 2001, foram editadas 134 Medidas Provisórias com mais de 1000 reedições.

Com a justificativa de conter a proliferação de Medidas Provisórias e suas reedições, o Congresso aprovou em 2001 uma Emenda Constitucional que restringiu os poderes do Presidente. Esta Emenda Constitucional relacionou assuntos que não poderiam ser tratados por MP, proibiu a reedição e estabeleceu que se o Congresso não tratasse do assunto em 45 dias a MP trancaria a pauta de votações. Em 2009, uma interpretação do Presidente da Câmara, referendada pelo STF, acabou com o trancamento da pauta, estabelecendo que em 120 dias a MP perderia a validade se não fosse apreciada. Na prática a autonomia presidencial representada pelas Medidas Provisórias perdeu muito de seu valor.

Com a pulverização dos partidos, o menor poder de veto e a incerteza em relação às Medidas Provisórias, o presidencialismo brasileiro se afastou cada vez mais do modelo americano. Com o passar do tempo, o Poder Executivo foi perdendo protagonismo. No entanto, para a opinião pública o Presidente continua a ser o principal responsável pelo sucesso ou fracasso das políticas públicas, embora o poder de fato tenha migrado progressivamente para o Congresso. Muitas vezes, o Presidente eleito começa seu mandato com uma base de apoio bastante reduzida. A partir de sua eleição inicia uma peregrinação em busca de apoio parlamentar com negociações pontuais nem sempre muito republicanas, conhecidas popularmente como “toma-lá-dá-cá”, “troca-troca”, “balcão de negócios” e “orçamento secreto”. O resultado dessa má alocação de poder e diluição de responsabilidade está à vista de todos. Já há algum tempo, o país parece uma nau sem rumo.

Enquanto o Brasil se debate em uma evidente crise de identidade política, não sabendo ao certo se é presidencialista ou parlamentarista, vale a pena examinar com mais detalhes como se estruturam politicamente a quase totalidade dos países desenvolvidos e democráticos.

O parlamentarismo e o semipresidencialismo

No parlamentarismo, o Chefe do Poder Executivo não é eleito diretamente pela população. Ele emerge da base de sustentação no Congresso. Forma-se uma maioria no parlamento com um ou vários partidos que se unem para governar. Essa maioria, estruturada após as eleições, escolhe o Primeiro Ministro e o Conselho de Ministros, encarregados da administração do país. A primeira consequência desse tipo de formação é que fica claro para a opinião pública qual o partido ou conjunto de partidos é responsável pelo sucesso ou fracasso das políticas públicas. Rapidamente a população percebe essa configuração e começa a dar muita atenção aos Partidos e às escolhas para Deputados e Senadores. De outro lado, os partidos políticos passam a entender que sua sobrevivência depende do sucesso do Primeiro Ministro e seus auxiliares diretos, escolhidos por eles.  Outra vantagem desse arranjo é a facilidade de substituição do Primeiro Ministro quando sua atuação não está atendendo às expectativas dos partidos ou da opinião pública. Em geral, neste caso, é necessário que a maioria dos Deputados aprove uma Moção de Censura para derrubar o Primeiro Ministro. Em alguns casos, para que não haja descontinuidade, o Primeiro Ministro só cai quando se estabelece uma nova maioria capaz de substituí-lo.

Essa formação é acompanhada pela escolha de um Chefe de Estado que é um Presidente eleito pela população ou pelo Senado. Nas monarquias parlamentares é um Rei ou uma Rainha. Em geral, o Chefe do Estado tem a função de dissolver a Câmara dos Deputados quando os parlamentares não conseguem estabelecer uma maioria para governar. Neste caso, o Presidente convoca uma nova eleição, na expectativa de que os eleitores irão escolher partidos capazes de constituir uma maioria estável.

Na última metade do século passado, surgiram algumas variantes para o sistema parlamentarista que mudam um pouco a sua essência. A principal delas é o chamado semipresidencialismo. Neste caso, o Presidente, além de poder dissolver a Câmara, tem outros poderes, como o comando das Forças Armadas e a administração das Relações Exteriores. Em alguns casos, divide a responsabilidade pela escolha do Primeiro Ministro com o Parlamento. França e Portugal são os melhores exemplos dessa configuração.

A mãe de todas as reformas

A Ciência Econômica e a experiência internacional, em grande medida, já dispõem de instrumentos para conduzir um país ao pleno desenvolvimento, com inclusão social e sustentabilidade ambiental.

Entretanto, esse caminho é necessariamente político, uma vez que exige um amplo acordo entre as forças representativas da sociedade em torno desse objetivo. E no quadro institucional em que o Brasil se encontra, esse acordo é muito difícil.

Na verdade, as Instituições americanas e de outros países desenvolvidos obrigam a composição política de partidos com proximidade ideológica e programática. Já o sistema brasileiro favorece a pulverização e o fisiologismo. O que o sociólogo Sergio Abranches chamou educadamente de “presidencialismo de coalisão” e FHC, com mais realismo, de “presidencialismo de cooptação”, nada mais é do que uma grave falha institucional.

Para aproximar o presidencialismo brasileiro do norte americano seria necessária uma reforma constitucional profunda e de difícil execução, dando poderes ao Presidente para realizar o programa que o levou ao cargo. Em contrapartida seria necessário que só se inscrevessem candidatos de partidos ou federações de partidos que aglutinassem uma parcela expressiva de Deputados e Senadores. Com essa restrição, haveriam no máximo dois ou três candidatos e o novo Presidente iniciaria o mandato com uma sólida base no Congresso. Esse impedimento evitaria a inscrição de candidatos avulsos, sem sustentação partidária, e faria com que os eleitores dessem mais atenção aos partidos políticos.

Alternativamente, a reforma política poderia instaurar o parlamentarismo ou o semipresidencialismo, como praticado na imensa maioria dos países desenvolvidos e democráticos. Este talvez seja o caminho de menor resistência, já que o enfraquecimento do Presidente e o empoderamento do Congresso parecem irreversíveis. Talvez, para não ser entendido como casuísmo, o novo sistema devesse ser programado para ter início após as eleições gerais de 2030, quando a cláusula de barreira atinge o seu valor máximo (3%). Naturalmente, um amplo acordo político e o reconhecimento de sua importância poderia antecipar essa reforma. A verdade é que não nos restam muitas escolhas. Nenhuma delas é simples, mas como se diz em voz corrente “não fazer nada, não é opção”.

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(1) Cardoso, Ricardo, Desenvolvimento em crise: a economia brasileira no último quarto do século XX, Editora UNESP, São Paulo, 2002.

(2) North, Douglass, Institutions, Institutional Changes and Economic Performance, Cambridge University Press, Cambridge, United Kingdom, 2002.

(3) United Nations, The 2020 Human Development Report, United Nations Development Programme, New York, NY, USA, 2020.

(4) Mayer, Kenneth, With the Stroke of a Pen: Executive Orders and Presidential Power, Princeton University Press, Princeton, New Jersey, USA, 2002.


LEIA TAMBÉM:


O nó que não desata


Urgente - A Retomada do Desenvolvimento Econômico (III)

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(*) Sérgio Gonzaga de Oliveira é engenheiro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e economista pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). É colaborador frequente deste Blog Democracia e Socialismo, onde tem destacado a importância e os desafios para a retomada do desenvolvimento de longo prazo no Brasil.

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A direita pode ganhar

Sergio Augusto de Moraes*

Alfredo Maciel da Silveira*

Novembro-2021

O crescimento do populismo de extrema direita ao redor do mundo, inclusive na América Latina foi analisado, dentre outros, por Jean Ziegler numa entrevista de 2019 (reproduzida neste blog, “Fadiga do Capitalismo”). Ziegler fundamenta-se na fase atual do movimento do capital, que solapou a regulação estatal do equilíbrio social, inculcou a ideologia da soberania do “mercado”, do individualismo atávico exacerbado, e a descrença nas conquistas históricas da democracia social e política.

Por conseqüência, grandes parcelas das populações, deserdadas e desalentadas, são levadas pelo discurso “anti-sistema” do populismo extremista com apelo a soluções simplistas e autoritárias para os complexos problemas gerados hoje pela sociedade capitalista.

Com a aproximação do ano eleitoral de 2022, a grande imprensa no Brasil dá sinais de preocupação com os indícios de reprodução da polarização havida em 2018. Seus articulistas, embasados em especialistas das áreas psico-social, política, e de comunicação, na nova sociedade em rede e no ambiente das novas tecnologias digitais, então debruçam-se sobre a instabilidade e incertezas de nosso futuro, sem ilusões quanto à miragem retratada nas pesquisas eleitorais do momento.

Da leitura destes analistas, dos quais destacamos alguns (ver ANEXO) podemos concluir:

  1. Os novos líderes populistas não querem promover qualquer convergência ao centro político nem negociarem pontos em comum dentre os interesses de seus eleitores, mas sim excitarem paixões no maior número possível de pequenos grupos; no caso brasileiro, até setembro último, visando um golpe de estado fascista; com o fracasso deste, apoiando-se agora no “Centrão”, buscando os mesmos objetivos por meio da corrupção e do “toma-lá-dá-cá’;
  2. Fazem ataques provocativos ao “establishment” das instituições, a seus políticos tradicionais, seus juízes, à grande imprensa, para justamente despertar nestes grupos a cólera, e assim validarem sua própria imagem de “anti-sistema”;
  3. A neurociência tem confirmado que os eleitores votam mais pela emoção do que pela razão;
  4. Do arsenal de falsidades inculcadas ao estilo fascistóide na massa popular desalentada, propaga-se que as instituições democráticas, principalmente o Judiciário, “não permitem que o líder governe”. Assim se joga para aquelas a responsabilidade pelos crimes, erros e desacertos do governo federal e se manobra visando a gradual implantação do autoritarismo, mesmo que seja pela via da reeleição do Presidente da República; Bolsonaro é o mais óbvio seguidor desta cartilha, já implementada em vários outros países;
  5. Plataformas de mídias digitais, de vídeos, troca de mensagens, etc, tem suporte em algoritmos de Inteligência Artificial-IA, que exibem ao interessado em conteúdo político resultados comprovadamente com viés ideológico de direita;
  6. Já está em franco andamento a articulação internacional do extremismo de direita, embasado no uso político de novos meios digitais, nas sombras da atuação de Steve Bannon, sua referência mais notória;
  7. A liberdade de expressão, que sob as novas tecnologias deveria fazer fluir e fertilizar o debate político, na verdade o travou, pela segmentação de grupos radicais, assim ameaçando a própria democracia.

Quais conclusões para o nosso contexto imediato, ainda que provisórias, poderíamos adiantar diante desse quadro resumido?

Se compararmos com nossa publicação “Tática e manobra” de 2019, apresentam-se duas:

  1. Nenhuma surpresa quanto às manobras de Bolsonaro e seu grupo: seus ataques às instituições, sua troca de favores com o “Centrão”, e as migalhas a um povo desempregado e faminto em ano de eleição;
  2. Ao mesmo tempo, ressalvados os acordos eleitorais de sempre, ainda não estão a vista aqueles passos da esquerda em direção a uma aliança estratégica, programática, transparente, com o centro político, que o país reclama desde a Constituição de 1988.

Seus líderes não se dão conta de que nos EEUU a derrota de Trump só foi possível com a aliança centro-esquerda, sob hegemonia do centro democrático.

Bom lembrar que a direita ganhou vida própria, “saiu do armário” no Brasil, muito além das “motociatas” e “Zé Trovões”. Em meio a nossa crise social e de valores e a persistir a atitude da esquerda, esta direita poderá ganhar.

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(*) Editores deste Blog "Democracia e Socialismo"

A seguir

ANEXO:

“Vísceras expostas” - Dorrit Harazim

“O algoritmo é de direita e dá para provar” - Pedro Doria

“Cólera e algoritmos” - Merval Pereira.

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Supervalorização e demonização da "inteligência artificial"

Em anos recentes, a aceleração da velocidade e capacidade dos microprocessadores viabilizou o relançamento de técnicas de modelagem de sistemas de há muito conhecidas, tais como as de análise estatística e de redes neurais artificiais, agora podendo manejarem grandes bases de dados sob o novo ambiente de conectividade da internet.

Dentro da revolução informacional digital em curso, iniciada no último quarto do século XX, parece estar-se abrindo agora um ciclo de inovações mediante novas combinações de tecnologias. E a grande “estrela” do momento chegou ao senso comum das pessoas sob a denominação geral de “Inteligência Artificial - IA” , algoritmos que “aprendem” mediante a interação com uma variedade de ambientes, sejam eles, físicos, de outras máquinas, ou humanos.

O feliz artigo da Profa. Dora Kaufman, a seguir, apresenta-nos com casos ilustrativos bem esclarecedores, uma visão crítica de como se tem difundido as informações sobre “Inteligência Artificial - IA”. A complexidade e a opacidade dos sistemas favorecem a especulação sobre o alcance e consequências sociais dessas inovações. Nas palavras da autora: “Evitando supervalorizar ou demonizar a IA, o desafio é conhecer o funcionamento e a lógica da tecnologia para aproveitar os benefícios e mitigar os riscos”.

Serão tais desenvolvimentos portadores de virtualidades emancipatórias para a humanidade? 

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Supervalorização e demonização da inteligência artificial - desviam a atenção dos danos reais e comprometem os benefícios*.

Dora Kaufman**

Outubro - 2021

Caetano Veloso canta os algoritmos de inteligência artificial (IA). Após nove anos de seu último álbum inédito, Abraçaço (2012), Caetano lança o álbum autoral Meu Coco (2021), com destaque para a canção 'Anjos Tronchos': "Agora a minha história é um denso algoritmo, que vende venda a vendedores reais / Neurônios meus ganharam novo outro ritmo / E mais e mais e mais e mais e mais [...]”. Inspirar um dos maiores expoentes da música brasileira reflete a relevância atual da IA. Conhecer seus fundamentos, contudo, é importante para evitar supervalorizar e demonizar uma tecnologia, ainda em seus primórdios, e com tantos benefícios à sociedade.

Kai-Fu Lee, em novo livro, coautoria com o escritor de ficção científica Chen Qiufan (AI 2041: Ten Visions for Our Future, 2021), observa que as pessoas confiam em três fontes para aprender sobre IA: ficção científica, notícias na mídia e pessoas influentes. Todas fontes que, em geral, carecem de rigor científico. Num formato original, o livro projeta cenários fictícios a partir de um “mapa de tecnologia” montado com base em pesquisas científicas e possíveis externalidades (desafios, regulamentações, conflitos e dilemas). Para Lee, após uma evolução lenta por décadas, nos últimos cinco anos a IA se tornou a tecnologia mais avançada do mundo. Contudo, a complexidade e a opacidade dos sistemas favorecem a especulação. O carro autônomo ilustra bem a lacuna entre expectativa e realidade.

Cinco anos atrás, praticamente, todos os principais fabricantes de veículos motorizados e empresas de alta tecnologia previram a implantação generalizada de sistemas de direção automatizada até 2020, previsão replicada pela mídia mundo afora. Steven Shladover, engenheiro especializado e um dos fundadores do Partners for Advanced Transportation Technology (PATH) - programa líder em pesquisa de Sistemas Inteligentes de Transporte da Universidade da Califórnia, Berkeley -, em artigo recente, vaticina: "As operações automatizadas só serão viáveis durante os próximos anos dentro de condições estreitamente definidas. Devemos esperar algumas implementações limitadas de caminhões automatizados de longa distância em rodovias rurais de baixa densidade e entrega local automatizada de pequenos pacotes em ambientes urbanos e suburbanos durante a década atual. Serviços automatizados de caronas urbanas e suburbanas também podem se tornar disponíveis de forma limitada, mas os desafios específicos do local para sua implantação são suficientes para que seja improvável que atinja uma escala nacional em breve”.

O protagonismo da IA em processos eleitorais é outro mito. Yochai Benkler, professor da escola de direito na Universidade de Harvard, Robert Faris e Hal Roberts realizaram um dos mais completos estudos sobre as eleições americanas de 2016, publicado, em 2018, no livro “Network Propaganda: manipulation, disinformation, and Radicalization in American Politics”. Os autores concluíram que a eleição de Donald Trump decorreu mais da dinâmica do ecossistema de mídia dos EUA e da polarização política assimétrica do que por sistemas comerciais de publicidade. Segundo os autores, “a publicidade psicograficamente microdirecionada da Cambridge Analytica é altamente improvável de ter feito diferença na campanha de 2016”, e alertam para a tendência dos analistas em atribuir à responsabilidade de problemas históricos da sociedade, por ser o elemento novo mais visível, às tecnologias digitais.

É inestimável a contribuição de Shoshana Zuboff no entendimento do modelo de negócio baseado em dados (“data-driven models”) e algumas de suas consequências. Militante contra o poder das big techs, seu livro “The Age of Surveillance Capitalism: The fight for a human future at the new frontier of power” (2019) é permeado de afirmações contundentes - “exploração dos dados comportamentais para ler as mentes dos usuários tornando possível saber o que um determinado indivíduo em um determinado momento e lugar estava pensando, sentindo e fazendo” - , contudo, em sua maioria, não explicita as evidências (fundamento de qualquer pesquisa empírica crível) e/ ou não explicita as amostras base das pesquisas (parte significativa das amostras são de perfis “Weird” - Western, Educated, Industrialized, Rich, Democratic - ou seja, enviesada). Conhecer o “consumidor target” para influenciar suas escolhas é a essência da propaganda, que há décadas migrou o foco da funcionalidade do produto (“valor de uso”) para o desejo e a emoção do consumidor; o que precisa ser investigado, com metodologias científicas, é a mudança de natureza derivada da coleta e mineração de dados em larga escala, ou seja, a natureza da disrupção (partindo do pressuposto que ela existe).

O historiador Yuval Harari (“Homo Deus: Uma breve história do amanhã”, 2016) afirma que no século XXI, a partir de bases de dados gigantescas e poder computacional inédito, os algoritmos “sabem não apenas como você se sente, como sabem 1 milhões de outras coisas a seu respeito das quais você mal suspeita”. Harari, igualmente, não revela a fonte dessas afirmações. Pode ser que sejam verdadeiras, pode ser que não, o ponto é que essas afirmações, ditas por autores de referência, são replicadas sem o devido questionamento: alguém conhece uma pesquisa empírica qualificada (método científico, extensa base de dados) que confirme tamanho poder e influência dos algoritmos de IA sobre a decisão dos indivíduos e, particularmente, sobre a formação da subjetividade humana?

Ao condenar o uso da IA com foco nas externalidades negativas, eliminamos, simultaneamente, as externalidades positivas. A arquitetura de redes neurais GAN (Generative Adversarial Network), por exemplo, é combatida por gerar as chamadas “Deep Fakes”, mas elas têm potencial de contribuir positivamente em outras áreas, como na saúde. Diferente da CNN (Convolutional Neural Network) - arquitetura de rede neurais aplicada em visão computacional para identificar e classificar objetos -, a GAN cria imagens bi ou tridimensionais (imagem, voz, vídeo) possibilitando, por exemplo, criar dados sintéticos de qualidade, suprindo a carência de dados para pesquisas médicas, e melhorar uma imagem de tomografia computadorizada e/ou ressonância magnética em baixa resolução (menos tempo de exposição, protege o paciente de altas doses de radiação).

A técnica que permeia quase todas as implementações de IA hoje, chamada de redes neurais profundas ou deep learning, é “apenas” um modelo estatístico de probabilidade com aplicação restrita ao desempenho de tarefas específicas (previamente determinadas). Como todos os modelos estatísticos de probabilidade, existe uma variável de incerteza intrínseca, produzem conhecimento provável, mas inevitavelmente incerto. A personalização é com base em "clusters", não é individual, agrupa conjunto de usuários com perfis similares. A capacidade preditiva desses modelos decorre de variáveis pré-estabelecidas pelos desenvolvedores, logo incorpora a subjetividade humana; seus algoritmos são treinados em bases de dados, em geral, tendenciosas; e a visualização dos resultados nem sempre é trivial de ser assimilada pelos usuários. Ou seja, são modelos limitados sem essa suposta objetividade e precisão.

Evitando supervalorizar ou demonizar a IA, o desafio é conhecer o funcionamento e a lógica da tecnologia para aproveitar os benefícios e mitigar os riscos.

LEIA TAMBÉM:

Homo Deus Não

SAPIENS – Harari,Marx e Engels

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 (*) Originalmente publicado em Época Negócios, 01 de outubro – 2021

(**) Dora Kaufman professora do TIDD PUC - SP, pós-doutora COPPE-UFRJ e TIDD PUC-SP, doutora ECA-USP com período na Université Paris – Sorbonne IV. Autora dos livros “O Despertar de Gulliver: os desafios das empresas nas redes digitais”, e “A inteligência artificial irá suplantar a inteligência humana?”. Professora convidada da Fundação Dom Cabral.

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Desventuras e promessas do liberalismo brasileiro

No rescaldo da tentativa de golpe deste "7 de setembro", Werneck volta uma vez mais às raízes históricas da formação da sociedade brasileira, desta vez tomando como fio condutor as “desventuras e promessas” do liberalismo político, desde as lutas pela independência e o estabelecimento do império. Mostra como o capitalismo no Brasil seguiu um curso iliberal desde os anos 30 com o Estado Novo, “(...)em clara ruptura com suas tradições em que o liberalismo mal ou bem ocupava um papel de fermento nas lutas democráticas.”

Por fim, aponta a Constituição de 1988 como a referência maior da ampla aliança política necessária a consolidação das mudanças democráticas:

"O Brasil que aí está é fruto desse processo de modernização autoritária, contra o qual, na esteira de massivas manifestações populares em articulação com amplas alianças políticas, soube triunfar com a promulgação da Carta democrática de 1988. Tal como se constata, esse triunfo não foi pleno, na medida em que uma má política criou condições para uma inesperada vitória eleitoral dos refratários às mudanças democráticas que nosso texto constitucional ampara e viabiliza".

Segue a íntegra do artigo de Werneck.

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Desventuras e promessas do liberalismo brasileiro*

Luiz Werneck Vianna**

Setembro - 2021

Não foi a primeira vez e nem será a última em que se tentou nos infaustos acontecimentos deste 7 de setembro fazer a roda da história retroagir a fim de repor o país nos trilhos do malsinado regime do AI-5, obsessão manifesta do governo que aí está. A intentona, preparada como um plano de estado-maior a que não faltaram recursos oficiais e de setores reacionários das elites econômicas, em particular do agronegócio, tinha em mira jogar por terra a Carta de 88 cujas instituições obstam os arreganhos absolutistas no exercício do poder presidencial. O sistema de controle do poder contemplado no texto constitucional, orientado para a defesa dos direitos políticos e sociais consagrados por ele, demonizado pela clique no poder como entraves às suas ações liberticidas, deveria ser derrogado. Ferindo de morte o constitucionalismo democrático, ao Judiciário caberia apenas agir nos litígios privados na contramão dos processos civilizatórios emergentes desde a derrota do nazi-fascismo na segunda guerra mundial.

Luiz Werneck Vianna
Foi por pouco. E ainda são obscuras as razões por que apenas em um dia a formidável arma de propaganda golpista que se abateu sobre o país fosse recolhida aos coldres, com o país estupefato tomando ciência de uma declaração presidencial reverente às instituições. Para tal resultado, os   pronunciamentos fortes e tempestivos de presidentes das altas cortes do Poder Judiciário, a que se seguiram manifestações dos dirigentes do Senado e da Câmara dos Deputados em defesa das instituições democráticas, decerto importaram, mas pode ter havido nos céus mais do que o movimento dos aviões de carreira embora ainda não registrados no radar. Enfim, por fas ou nefas, as trevosas nuvens que pairavam sobre a sociedade se dissiparam como num passe de mágica, ficando o dito pelo não dito enquanto se sussurra na sociedade até quando?

A envergadura do golpe que se tramava não pode ser subestimada, que não deve ser tratado como um pesadelo fortuito de uma noite mal dormida. Foi real a parada militar em Brasília – os militares sabiam o que se seguiria? –, como reais as concentrações de massas da avenida Paulista e na praia de Copacabana e noutras capitais, como também reais as vociferações do presidente Bolsonaro em todas elas, cruzando o país a bordo de aviões oficiais, dardejando ofensas a autoridades judiciárias com o ímpeto de Donald Trump no frustrado golpe ao Capitólio de 6 de janeiro do ano passado. Real igualmente o suporte financeiro com que setores das elites econômicas deram à mobilização de milhares de pessoas que acorreram às ruas em apoio a Bolsonaro naquela jornada equívoca de 7 de setembro.

Só não vê quem não quer, o governo que aí está não caiu sobre nós como um raio num dia de céu azul, suas raízes têm causas remotas a começar da nossa formação como sociedade e estado-nação. Padecemos dos males da herança maldita do latifúndio e da escravidão, livramo-nos tardiamente da segunda e ainda coexistimos com a primeira, a essa altura reciclada em agronegócio com seus personagens elevados a posições destacadas na economia e na política. O desenlace do nosso processo de independência política se operou na forma clássica de uma revolução passiva – seu condutor era o príncipe herdeiro da dinastia reinante na metrópole – abortando a revolução nacional-libertadora que tomava forma em movimentos como a Inconfidência Mineira, no de 1817 em Pernambuco e se disseminava pelo Nordeste, especialmente na Bahia, sob a inspiração de ideais liberais influentes na revolução americana.

Os efeitos dessa solução política “por cima” comprometeram no Império a sorte dos liberais com a recusa do imperador do texto da constituição elaborada pela assembleia constituinte, de caráter liberal em política, vindo a promulgar de modo autocrático a Carta de 1824, que outorgava a ele um poder moderador com o qual limitava o papel da representação e se punha à margem da soberania popular.

Wanderley Guilherme dos Santos, em um ensaio de 1974 “A práxis liberal no Brasil: propostas para reflexão e pesquisa”, procede a um inventário crítico do destino desse conceito entre nós. Descontado o que há de datado nesse estudo, ele captou com precisão as razões do malogro do nosso liberalismo político a partir de dois momentos de importância capital na formação do Brasil moderno, o da Abolição e o da República.

Ambos movimentos são analisados a partir dos manifestos com que elites políticas da época desencadearam suas campanhas, o Radical Liberal, de 1869, e o Republicano do ano seguinte. Persuasivamente, Wanderley sugere que os rumos futuros da sociedade teriam sido demarcados pelo tipo de orientação neles predominante, enquanto os liberais radicais, defensores de uma monarquia constitucional postulavam em favor de reformas de clara adesão ao liberalismo político, inclusive com a abolição do trabalho escravo, os republicanos, que desejavam o apoio das classes proprietárias a fim de atingir seus objetivos, se fixaram no tema da mudança de regime. Tais divergências entre as elites modernizadoras de então teriam comprometido em boa parte o destino dos ideais liberais debilitando o impulso original que o animava.

A revolução de 1930 abre um novo ciclo na política brasileira dominado pela paixão da modernização econômica e de um Estado dotado de meios eficientes na sua aceleração. É o tempo da fórmula corporativa e do predomínio da ação estatal como reguladora de todas as instâncias da vida social, culminando com a criação do Estado Novo e da Constituição outorgada de 1937. O capitalismo brasileiro deveria seguir um curso iliberal em clara ruptura com suas tradições em que o liberalismo mal ou bem ocupava um papel de fermento nas lutas democráticas. O empreendimento bem-sucedido tanto em economia como no controle social do mundo do trabalho e da sociedade em geral concedeu permanência, afora os ajustes que se fizeram necessários ao longo do tempo, às instituições e ao estilo de mando autocrático do Estado Novo, exemplar no caso do regime militar de 1964 a 1985, especialmente sob o AI-5, redigido pelo mesmo Francisco Campos, autor do texto da Carta de 1937.

O Brasil que aí está é fruto desse processo de modernização autoritária, contra o qual, na esteira de massivas manifestações populares em articulação com amplas alianças políticas, soube triunfar com a promulgação da Carta democrática de 1988. Tal como se constata, esse triunfo não foi pleno, na medida em que uma má política criou condições para uma inesperada vitória eleitoral dos refratários às mudanças democráticas que nosso texto constitucional ampara e viabiliza.

A modelagem do governo Bolsonaro é com todas as letras a do capitalismo iliberal. Nesse sentido, há um fio vermelho entre ele e a história do nosso autoritarismo político, remota ou contemporânea, como o Estado Novo e o AI-5, que se opuseram à passagem do liberalismo político. Derrotá-lo, mais do que abrir caminho para as forças vivas da sociedade atual, significa passar a limpo as trevas do nosso passado.

LEIA TAMBÉM: Três escudos - analisando o liberalismo econômico no Brasil

                                        Revelando segredos

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(*) Originalmente publicado no blog Democracia Política e Novo Reformismo, em 19/09/2021

(**)Luiz Werneck Vianna é sociólogo, PUC-Rio 

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Giocondo Dias e a democracia

"É corrente encontrar alguém que tendo passado por tantas dificuldades e dores, desde o isolamento dos amigos e a permanente ameaça da polícia até a distância dos familiares, tornar-se amargo e taciturno. Dias não está neste rol. Ele manteve a cordialidade, o bom humor, o carinho com sua família e a delicadeza com os amigos. Talvez a mesma delicadeza com que tratava a política".(Sergio Moraes)

Acaba de ser lançado o filme “Giocondo Dias – ilustre clandestino”, que resgata a memória deste herói do povo brasileiro. Juntamo-nos neste resgate, em hora tão difícil da vida brasileira. O historiador e escritor Ivan Alves Filho, traz-nos um perfil resumido de Giocondo Dias, extraído de seu livro "Os nove de 22 - O PCB na vida brasileira"(*), também lançado recentemente. Segue o texto de Ivan.

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 Giocondo, o Cabo Dias

Ivan Alves Filho

Setembro - 2021

Nascido na Bahia, em 1913, Giocondo Gerbasi Alves Dias era filho de uma italiana e de um brasileiro. Órfão, aos sete anos de idade, começou, por essa mesma época, a trabalhar no cais do porto de Salvador, socando pimenta no pilão. Com 13 para 14 anos, já distribuía o jornal do Partido Comunista pelas ruas da cidade. Não parou mais: no início de 1935, ingressaria formalmente no Partido, do qual se tornaria secretário-geral, décadas depois. Em novembro desse mesmo ano, com apenas 22 anos, lideraria a tomada do poder pela Aliança Nacional Libertadora (ANL) em Natal, capital do Rio Grande do Norte. Durante quatro dias, os aliancistas controlariam a cidade. Giocondo foi ferido com três tiros, no decorrer da luta. Começava, então, a legenda do Cabo Dias. 

Giocondo Dias
Dele pode-se dizer que teve, de fato, uma vida de romance, como alguns dirigentes comunistas tiveram. Preso em 1936, foi libertado um ano e meio depois. E passou a conduzir, desde a clandestinidade, o Partido Comunista na Bahia, até à redemocratização, em 1945. Dirigiu homens da bravura de Carlos Marighella, Jorge Amado e João Falcão. Eleito deputado estadual pelo PCB, em 1946, teve seu mandato cassado e mergulhou novamente na clandestinidade, por doze longos anos. Durante boa parte dos anos 50, Giocondo cuidou da segurança de Luiz Carlos Prestes, então o dirigente máximo do PCB. Ficou na clandestinidade de 1947 a 1958. 

Ao emergir dela, assumiu a condição de Secretário de Organização do PCB – na época o segundo posto na hierarquia partidária. Nesse período, ele era o principal responsável pela articulação política que resultou na elaboração da Declaração de Março de 1958. Esse documento propõe a Democracia como via de superação do capitalismo e é um verdadeiro marco na história do comunismo brasileiro. Com o advento do Golpe de 64, manteve a cabeça fria. Ao lado de Alberto Passos Guimarães, formulou a necessidade de derrotar a ditadura no plano político, rechaçando a luta armada contra o regime. É de se destacar, por exemplo, que o Partido Comunista Brasileiro não enviou representante à Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS) em Havana, em 1967, quando muitos movimentos latino-americanos debatiam a questão do recurso à luta armada na região, por influência da revolução cubana. Mesmo partidos como o uruguaio e o chileno, críticos em relação à experiência cubana, enviaram representantes à OLAS, ainda que em caráter de observadores. 

Para Giocondo e a maioria da direção do PCB, somente o movimento de massas derrotaria o governo ditatorial, não fazendo sentido levar a luta para onde o regime era forte – o terreno militar, justamente. Segundo ainda o velho revolucionário, tinha havido uma mudança na facção dominante e a batalha contra o novo regime seria longa e árdua. A História lhe daria razão: a ditadura durou 21 anos. 

Em 1971-72, ele propôs a formação de uma Frente Antifascista para isolar a ditadura e retomar o processo democrático. Após passar outros 12 anos, clandestino no Brasil, foi obrigado a se exilar na União Soviética e na França, a partir de 1976. De retorno ao país, no bojo da Lei da Anistia, foi o primeiro dirigente político a formular a necessidade de eleições diretas para a Presidência da República. Isso ocorreu em 1980 – ou seja, quatro anos antes de o movimento popular Diretas-Já empolgar o país. Nesse mesmo ano, assumiu a secretaria geral do PCB. 

Este extraordinário estrategista político passou 41 anos de sua vida na clandestinidade, no exílio ou na cadeia. Sacrificou tudo pela liberdade. E, durante todo o período de sua longa militância, nunca trocou de partido. Sabia ler na conjuntura como ninguém e se antecipava sempre. Essa a marca dos grandes estrategistas. Daí eu compará-lo ao búlgaro Geórgi Dimitrov e ao italiano Enrico Berlinguer. Não são muitos os partidos políticos no mundo que alinham em seus quadros um homem da sua grandeza, coerência e retidão. Mais: entendia como ninguém os limites da luta popular. “Só uns poucos se sacrificam realmente”, disse-me ele, uma vez. E acrescentou, em seguida: “A grande maioria da população tem medo, permanece alheia. É preciso evitar que aumente o fosso entre o partido e as massas”. 

Eu conheci Giocondo rapidamente em nossa casa, em 1971. Foi no período conturbado em que Prestes deixava o país em direção à União Soviética. Anos depois, eu tive o prazer de trabalhar com ele no período da legalidade do PCB e, posteriormente, fazer a sua biografia. Pude acompanhar a cautela e a sabedoria com que conduziu o Partido nessa delicada transição para a Democracia. Para ele, a política organizava a vida brasileira e todas as demais questões dependiam dela. 

Giocondo Dias morreu a 7 de setembro de 1987, no Dia da Pátria.

LEIA TAMBÉM: Comunistas e Católicos

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(*) Capa, citado livro de Ivan Alves Filho:


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O nó que não desata

Em novo artigo, Sérgio Gonzaga de Oliveira* revisita a lenda do nó górdio para analisar o “nó” das heranças socioeconômicas perversas que a sociedade brasileira não consegue desatar.

O artigo enseja as seguintes idéias, a destacar.

1) O grande crescimento econômico alcançado nos 50 anos decorridos entre 1930 e 1980, foi sucedido por décadas recentes de estagnação, onde as desigualdades herdadas daquele período foram mantidas ou até agravadas; o artigo expõe em números uma análise minuciosa e devastadora da atual situação socioeconômica brasileira.

2) Os avanços, em âmbito mundial, da pesquisa e da teoria no campo do desenvolvimento socioeconômico evidenciam as conexões entre as desigualdades de renda, raça e gênero com o crescimento econômico, sugerindo a interdependência dessas variáveis.

3)   Para os brasileiros romperem o “nó górdio” que trava o surgimento de um novo ciclo de desenvolvimento, impõe-se um grande esforço econômico das gerações presentes, conjugando elevação dos investimentos e redução de desigualdades, em prol das gerações futuras.

4)   Tal esforço pressupõe uma negociação social e política, tendo por referência um Projeto Nacional de Desenvolvimento.

Infelizmente, na contramão da Ciência Econômica e da experiência internacional, o Governo Brasileiro atual ignora o combate às desigualdades, como se essas pautas nada tivessem a ver com o desenvolvimento econômico.

Alfredo Maciel da Silveira**

                                               

Segue o artigo de Sérgio Gonzaga

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O nó górdio do desenvolvimento de longo prazo no Brasil

Sérgio Gonzaga de Oliveira

Agosto - 2021

Reza a lenda que Alexandre, o Grande, rei da Macedônia, de passagem pela Frígia, atual Anatólia na Turquia, visitando o Templo de Zeus se deparou com um simplório carro de boi fortemente amarrado a uma de suas majestosas colunas. O insólito visual teve sua origem quando um antigo rei da Frígia, que não tinha herdeiros, resolveu consultar o Oráculo sobre sua sucessão. Este lhe disse que o herdeiro do trono, em breve, chegaria à cidade em um carro de boi. Não se passou muito tempo para que um camponês de nome Górdio, conhecido por sua habilidade de amarrar objetos por meio de nós difíceis de serem desfeitos, cumpriu a profecia do Oráculo. Górdio sucedeu ao monarca e, em deferência ao episódio que o levou ao trono, amarrou seu carro de boi no Templo de Zeus. Górdio reinou por muitos anos. Midas, seu filho, foi seu sucessor. Midas, entretanto, não teve herdeiros e, por conta disso, consultou novamente o Oráculo. Este lhe disse que o futuro rei seria aquele que desfizesse o nó de Górdio, liberando o carro de boi da coluna do templo. Durante vários séculos, muitos tentaram em vão. Enquanto a profecia do Oráculo não se realizava, o reino da Frígia passou por muitas turbulências. Quando Alexandre chegou ao local e soube da profecia, desembainhou a espada e cortou o nó. Não se sabe ao certo se por conta da profecia ou por obra do acaso, Alexandre, o Grande, poucos anos depois, expandiu seu império por toda a região, tornando-se o soberano da Frígia.

Ruinas de um templo possivelmente dedicado ao culto de Zeus na Anatólia

Assim como na lenda, o Brasil de hoje parece um “carro de boi” amarrado por um “nó górdio” na triste coluna do subdesenvolvimento.  O Brasil está praticamente parado há 40 anos. O crescimento da renda per capita nesse período foi de 0,7% ao ano. Um quase nada. É verdade que em pequenos períodos dessa trajetória tivemos algum crescimento, como em meados dos anos 1990 e na primeira década deste século. Mas infelizmente foram apenas espasmos de crescimento em um longo período de paralisia e recessão. Os economistas chamam esses períodos de “voos de galinha”, curtos e desajeitados. E não se pode dizer que falta ao Brasil experiência em crescimento econômico. No período de 1930 a 1980 crescemos a taxas chinesas de 6,3% ao ano. Se tivéssemos mantido esse ritmo estaríamos hoje entre as nações mais desenvolvidas do planeta.

Mas o “nó górdio” brasileiro não é obra do acaso. Para ser desfeito é necessário mais do que uma espada mítica de um comandante militar. É preciso, antes de mais nada, tentar compreender a lógica que o sustenta. E essa compreensão remonta necessariamente ao passado. Tudo indica que a sociedade brasileira de hoje não está nada satisfeita com o longo período de crescimento alcançado naqueles 50 anos, entre 1930 e 1980. Não é para menos. Nesses anos, o crescimento econômico foi acompanhado por uma forte desigualdade social que, ao final, só beneficiou uma pequena parcela da população.

O crescimento econômico implica em sacrifício das gerações atuais em prol das gerações futuras. É preciso abrir mão de benefícios presentes para investir em novas unidades de produção, mas, também, em educação, saúde, infraestrutura física e social, ciência, tecnologia, eficiência do Estado e preservação do meio ambiente. A implantação de um novo Projeto Nacional de Desenvolvimento precisa mudar radicalmente a abordagem em relação às questões sociais, de forma a obter a aprovação da maioria da sociedade; é preciso que as pessoas acreditem que seu sacrifício vai trazer benefícios para seus filhos e netos.

Levando em conta a experiência passada, é compreensível que a sociedade veja com desconfiança a edição de mais um projeto de desenvolvimento. Quando se observa os números, salta aos olhos que a percepção negativa da maioria da população brasileira está correta. As desigualdades atuais de renda, raça e gênero, herdadas do passado desenvolvimentista, se interligam formando um panorama desolador.

A distribuição de renda é pornográfica, para dizer o mínimo. Segundo a Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE, publicada em 2020 e baseado em dados da PNAD-C de 2019 (1), o Brasil é o 9º país mais desigual do mundo em um universo de 164 nações. Numa inversão macabra dos números, os 10% mais ricos detém 42,9% da renda nacional, enquanto os 40% mais pobres ficam com somente 10,2% do total. Tomando como referência o rendimento domiciliar per capita apurado pelo IBGE nessa mesma pesquisa, verifica-se que metade da população vive com um valor inferior ao de um salário mínimo. Pode-se dizer que a maioria vive na pobreza ou em seu entorno. As políticas públicas compensatórias, tipo Bolsa Família ou Auxílio Emergencial, embora muito importantes, mal conseguem conter a pobreza extrema. Ou alguém em sã consciência pode acreditar que os 192 reais médios do Bolsa Família, os 300 reais do Auxílio Emergencial ou, mesmo, os 1.100 reais de um salário mínimo são suficientes para garantir, além da sobrevivência, as condições mínimas de cidadania de uma pessoa e sua família?

Na questão racial o panorama não é diferente. Embora os brancos sejam minoria na população brasileira (42,7% em 2019), entre os 10% mais ricos eles formam uma larga maioria (70,6%). No outro extremo, entre os 10% mais pobres, prevalecem os negros (pretos e pardos) com 77% deste grupo. Esses números mostram que a distribuição de renda é fortemente segregadora, reservando aos negros as faixas inferiores da renda nacional, embora sejam maioria na população (56,3%). Mas não é só isso. O IBGE, no mesmo relatório citado anteriormente, ao examinar as condições de moradia da população, verificou a ocorrência de cinco principais problemas: ausência de banheiro de uso exclusivo da moradia, paredes construídas com material não durável, adensamento excessivo, ausência de documento que comprove a propriedade e ônus excessivo com aluguel. Constatou que a incidência das quatro primeiras inadequações entre pessoas negras foi mais que o dobro da verificada entre a população branca. Apenas no último ponto existe uma certa paridade entre negros e brancos. A lista de indicadores sociais, registrados pelo IBGE, expõe de maneira dramática essa desigualdade. Na educação, saúde, mercado de trabalho e tudo o mais o quadro é o mesmo.

Na questão de gênero o cenário não muda. A desigualdade de gênero se apresenta de forma inequívoca no mercado de trabalho quando se verifica que o rendimento médio do trabalho feminino é 22,8% menor que o equivalente masculino. Quando se cruzam as informações de raça, gênero e pobreza os dados são chocantes. As mulheres negras se destacam entre os mais pobres. Embora sejam 28,7% da população total, são 39,8% entre os muito pobres e 38,1% entre os pobres. As mulheres negras, sem cônjuges, com filhos menores de 14 anos para criar, são os arranjos familiares que mais sofrem com a desigualdade. Segundo o IBGE, esses grupos familiares concentram a maior incidência de pobreza, sendo 86,4% pobres ou extremamente pobres.

Como se viu, as três maiores desigualdades, quando superpostas, atingem a grande maioria da população, que se mostra relutante em aderir a um novo projeto de desenvolvimento, já que no passado o crescimento econômico não foi capaz de reduzir essas desigualdades.

Mas além dessa percepção negativa, existem questões econômicas que tornam a desigualdade um obstáculo ao desenvolvimento. O crescimento da produção depende do comportamento conjunto e interligado do consumo e do investimento. Essas variáveis indicam o destino dos bens e serviços produzidos: o consumo atende às necessidades humanas e o investimento repõe ou aumenta a capacidade de produção. O desequilíbrio entre consumo e investimento retarda o crescimento. Assim, o subconsumo estrutural das camadas mais pobres da população impede que o crescimento econômico de longo prazo atinja todo seu potencial. Estudos comparativos entre países de desenvolvimento recente mostram que uma melhor distribuição de renda no início do processo favoreceu os emergentes de melhor desempenho (2).

Outro aspecto importante foi analisado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Trata-se da relação entre o desenvolvimento e a participação das famílias de menor renda na educação das crianças e jovens (3). A educação, na verdade, tem uma dupla inserção num projeto de desenvolvimento. Em primeiro lugar e em boa medida, é pela educação que as pessoas adquirem a condição de cidadãos. Já do ponto de vista econômico, a educação é um dos principais fatores de aumento da eficiência do sistema produtivo.

Entretanto, como diz a OCDE, a educação das crianças e jovens é fortemente influenciada pelo nível de renda de suas famílias, seja pela disponibilidade de recursos financeiros, seja pelo suporte cultural familiar durante o período de aprendizado. Forma-se, na verdade, um círculo vicioso, no qual uma criança nascida em uma família pobre tende a ter menores níveis educacionais e, em decorrência, menor nível de renda quando adulta. Quanto maior a desigualdade mais esse círculo vicioso trava o desenvolvimento econômico.

A Ciência Econômica e a experiência internacional já desvendaram, em grande medida, os caminhos que devem ser percorridos para levar um país ao pleno desenvolvimento. Certamente, cada país tem características próprias e percorre caminhos diferentes, mas as bases teóricas do desenvolvimento já são bastante conhecidas. Recentemente alguns chegaram lá, como a Austrália, Nova Zelândia, Coréia do Sul, Taiwan e Singapura. Outros, estão a caminho como a China, o Vietnã e a Índia. O Brasil, para nosso desgosto, continua parado, imobilizado e amarrado a uma imaginária coluna de um templo dedicado ao culto do atraso e do subdesenvolvimento. Mas nada será politicamente viável se a maioria da população continuar convicta de que o sacrifício não vale a pena. Por tudo isso, um Projeto Nacional de Desenvolvimento deve, preliminarmente, ser orientado para a redução drástica dessas desigualdades. Caso contrário o nó de Górdio, que nos prende ao passado, jamais será desfeito.

LEIA TAMBÉM: Urgente - A retomada do desenvolvimento econômico (III)

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(1) Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira, Coordenação de População e Indicadores Sociais, IBGE, Rio de Janeiro, 2020.

(2) Amsden, Alice H., A Ascenção do “Resto”: Os desafios ao Ocidente de economias com industrialização recente, Editora Universidade do Estado de São Paulo, São Paulo, 2009.

(3) Organization for Economic Co-operation and Development, In It Together: Why Less Inequality Benefits All, OECD Publishing, Paris, 2015.

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(*) Sergio Gonzaga de Oliveira é engenheiro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e economista pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL).

(**) Alfredo Maciel da Silveira é engenheiro (UFRJ), MSc Eng. de Produção (COPPE-UFRJ), Doutor em Economia (IE-UFRJ) e um dos editores deste Blog "Democracia e Socialismo".

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