Os ovos e o ninho da serpente

Sergio Gonzaga de Oliveira*

Junho/2022


A expressão “ovo da serpente” não é nova. Pelo que se sabe, apareceu pela primeira vez em “Júlio César” de Shakespeare. A peça, provavelmente escrita em 1599, relata o momento em que a incipiente e restrita democracia de Roma estava prestes a sucumbir ao poder imperial de Júlio Cesar. Um grupo de senadores, inconformados com a crescente concentração de poder nas mãos de um ambicioso comandante militar, planejou sua morte em um atentado. Em uma passagem do texto de Shakespeare, Brutus, um dos principais conspiradores, compara Júlio Cesar a “um ovo de serpente que, por sua natureza, uma vez chocado se tornará nocivo; razão pela qual deve ser morto ainda na casca”. Brutus se refere ao mal que causaria à democracia romana a consolidação do poder absoluto de César. Em Shakespeare a referência ao ovo da serpente se dá em um contexto de relações de poder dentro da elite dominante de Roma.

Quase quatro séculos depois, em 1977, Ingmar Bergman usa a expressão de Shakespeare como título de um denso e expressivo filme sobre as fases iniciais da expansão do nazismo na Alemanha, nos anos vinte do século passado. Diferentemente de Shakespeare, em Bergman o contexto econômico e social vivido pelos personagens desempenha um papel relevante. Nos primeiros minutos da película um locutor em off diz: “Um maço de cigarros custa 4 bilhões de marcos e quase todos perderam a fé no futuro e no presente”.  

Com o armistício de 1918, que encerrou as hostilidades da Primeira Guerra Mundial, as principais potências vencedoras impuseram à Alemanha o Tratado de Versalhes assinado em junho de 1919. As reparações de guerra estabelecidas eram tão leoninas que muitos economistas e políticos da época consideraram que seria impossível o seu cumprimento.

No final da guerra a instabilidade em Berlim era tanta que os partidos políticos não puderam se reunir na capital para organizar a vida alemã do pós guerra. Por conta disso, a Assembléia Constituinte se instalou na pequena cidade de Weimar a cerca de 300 km de Berlim e a Constituição foi promulgada em agosto de 1919. Na década seguinte, os elevados pagamentos impostos pelo Tratado de Versalhes, as disputas políticas e as sequelas da guerra tornaram a vida do povo alemão um inferno. Hiperinflação, instabilidade política, fome, miséria e desesperança faziam parte da vida cotidiana.

Bergman retrata bem essa calamidade quando no meio da trama um inspetor de polícia diz:“O câmbio por um dólar é de 5 bilhões de marcos; os franceses ocuparam Ruhr; já pagamos um bilhão em ouro aos britânicos... em Munique Herr Hitler está preparando um golpe de estado com soldados famintos e loucos de uniforme; temos um governo que não sabe para que lado ir; todo mundo tem medo e eu também”.

Como se não bastasse, a crise econômica de 1929, com origem nos EUA, atinge de chofre a Alemanha. A chamada República de Weimar, assolada por dificuldades crescentes, não tem condições mínimas de governabilidade. Nesse contexto um nacionalismo radical conduzido pelo partido nazista de Adolf Hitler, um obscuro ex-sargento do exército, é visto pelo desesperançado povo alemão como a única saída para sua agonia.

Incêndio no Parlamento Alemão em 1933

Até 1928, os nazistas ainda eram minoria no Parlamento alemão. Ocupavam apenas 12 cadeiras. Com a Grande Depressão, em 1930, eles se tornaram o segundo maior partido do país, com 107 cadeiras. Em 1932, já eram a formação política mais popular da Alemanha, com 230 assentos no Parlamento. No rastro dessa ascensão o Presidente Hindenburg, em janeiro de 1933, nomeou Hitler Primeiro Ministro. Nos anos seguintes Hitler desenvolve uma escalada macabra para assumir o poder absoluto e conduzir a Alemanha a um dos maiores desastres da história recente da humanidade. A ascensão do nazismo na Alemanha não é um fenômeno histórico simples, mas os fatos parecem indicar que a degradação econômica e social, bem caracterizada por Bergman, deve ter tido uma contribuição importante para essa tragédia.

Na mesma década, na Itália, um processo semelhante instaura um regime autoritário onde os partidos políticos e sindicatos são postos fora da lei. Em um rastro de instabilidade, destruição pela guerra e ressentimento em relação ao Tratado de Versalhes, os fascistas de Mussolini tomam o poder.

Quase 100 anos depois, os ovos da serpente estão sendo chocados novamente em ambientes cada vez mais favoráveis à sua eclosão. Nas últimas décadas alguns fenômenos políticos, sociais e econômicos vêm jogando lenha nessa fogueira. A globalização, a desastrada resposta neoliberal, a precarização das relações trabalhistas e a perda de poder dos sindicatos vêm promovendo, a partir dos anos 80 do século passado, um aumento expressivo da concentração de renda nos principais países desenvolvidos (1) (2).

No Brasil não é diferente. Nos últimos 40 anos o crescimento da renda per capita não passou de 0,7% ao ano. Um quase nada. Tomando como referência o rendimento domiciliar per capita publicado em 2020 pelo IBGE na Síntese dos Indicadores Sociais (3), verifica-se que metade da população vive com um valor inferior ao de um salário mínimo. Pode-se afirmar que a maioria vive na pobreza ou em seu entorno. É difícil acreditar que os 400 reais do Auxílio Emergencial ou, mesmo, os 1.212 reais de um salário mínimo sejam suficientes para garantir condições adequadas de cidadania para uma pessoa e sua família. Para se ter uma idéia desse disparate basta lembrar que o salário mínimo necessário para o sustento de uma família, calculado pelo DIEESE em março de 2022, é de R$ 6.394,16.

A Ciência Econômica, em grande medida já conhece os caminhos para retirar da miséria e indigência a maior parte da população. Esse roteiro passa por um projeto de reconstrução nacional com desenvolvimento inclusivo e sustentável. O conceito de desenvolvimento estabelece que o crescimento econômico deve ser acompanhado por uma efetiva distribuição de renda, preservação do meio ambiente e desenvolvimento de vários outros aspectos sociais, culturais e políticos que valorizem a vida e o bem estar das comunidades humanas. Em geral o conceito de desenvolvimento está associado à melhoria da qualidade de vida em qualquer desses aspectos. Entretanto é difícil imaginar que se possa retirar da pobreza grande parte da população sem promover o crescimento econômico. Assim, o crescimento econômico constitui um substrato, uma parcela que viabiliza muitos aspectos do desenvolvimento, principalmente daqueles que exigem um nível mínimo de renda e riqueza para que sejam efetivamente realizados. Muitas áreas da atividade humana, como educação e saúde, exigem vultosos gastos para garantir um nível mínimo de cidadania para os indivíduos de uma comunidade.

De forma bem simplificada pode-se dizer que o crescimento econômico se dá quando certas variáveis interagem e evoluem positivamente ao longo do tempo: (i) o investimento (entendido como a criação ou ampliação de unidades de produção), (ii) a educação (no sentido de qualificação e treinamento dos trabalhadores), (iii) a ciência e a tecnologia (como pesquisa e desenvolvimento aplicados à produção) e (iv) a produtividade (medida pelo aumento da produção por unidade de trabalho).

A experiência internacional mostra que as quatro variáveis acima podem ser induzidas ao crescimento pela ação institucional do Estado. As possibilidades de participação do Estado no crescimento econômico induzido são muito amplas e diversificadas. O Estado pode interferir na atividade econômica para acelerar a acumulação de fatores ou para incentivar a ciência e tecnologia em setores estratégicos. Pode aumentar a produtividade ou, ainda, reduzir os efeitos colaterais negativos resultantes da própria lógica do sistema, como a concentração de renda e a concentração do mercado.

Na educação a presença do Estado vai além do aumento da eficiência do sistema. A educação tem uma dupla inserção no processo de desenvolvimento. A educação é a principal responsável pela formação da cidadania. É principalmente através da educação para a cidadania que os indivíduos tomam consciência de seu papel na sociedade. Que adquirem noções claras de seus direitos e deveres perante a lei. Mais do que isso, tornam-se participantes ativos na elaboração das leis, seja por ações diretas, seja na escolha de seus representantes. Já do ponto de vista econômico, a educação aumenta a eficiência e a produtividade da economia; os processos de produção atuais exigem cada vez mais qualificação e treinamento.

A descrição acima, embora limitada, nos mostra quanto o Estado tem papel importante no crescimento econômico induzido, sendo inevitável que o desenvolvimento econômico e social dependa fortemente de sua atuação. Para tal, aumentar a eficiência do próprio Estado pode ser uma medida essencial; trata-se de introduzir reformas nas instituições existentes de forma que elas cumpram suas finalidades com menores prazos, maior qualidade e menores custos. Alguns dos grandes problemas derivados da relação umbilical entre o crescimento econômico e o Estado é que nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento as instituições públicas são precárias. Devido à insuficiente qualificação da força de trabalho e à baixa intensidade tecnológica dos métodos e processos utilizados, essas instituições, em geral, ficam muito aquém da necessidade. Romper esse círculo vicioso, onde instituições estruturalmente ineficientes devem planejar e dirigir o aumento de sua própria eficiência e, além disso, planejar e dirigir o processo de desenvolvimento econômico de todo o país, não é uma tarefa simples. Entretanto não é impossível, já que muitos países, outrora periféricos, conseguiram nas últimas décadas alcançar o nível de desenvolvimento dos países precursores. Outros estão a caminho, como a China, Índia e Vietnã.

O desenvolvimento induzido e acelerado pelo Estado exige planejamento, coordenação e execução de políticas públicas de longo prazo. No Brasil, a pulverização e baixa representatividade dos partidos políticos, associada à perda de poder do Presidente da República perante o Congresso Nacional, parece ser a principal fonte da crescente instabilidade política verificada nos últimos tempos. É preciso lembrar que a economia, principalmente a economia do desenvolvimento, depende fortemente do contexto político e das instituições que o cercam. Por conta disso é desejável construir alianças políticas baseadas em estruturas de governança mais estáveis, com partidos mais bem estruturados, que possibilitem acordos pró-desenvolvimento com maior permanência ao longo do tempo. Se isso é verdade, a reforma política deveria estar entre os primeiros passos dessa longa caminhada (4).

Como disse Tarso Genro em recente artigo:“(...)matar a fome, dar segurança e educação ao povo, para reavivar as dimensões civilizatórias(...)será o seguro histórico da política antifascista bem-sucedida e da revalorização da democracia verdadeira pelo povo exasperado” (5).

Em nosso país, o embate eleitoral que se aproxima é certamente mais uma etapa de uma longa jornada para derrotar os grupos fascistas que estão sempre à espreita. O fascismo como movimento político de massa não é um fenômeno abstrato. Não surge do nada. Os grupos fascistas sempre existiram. Expandem-se quando encontram condições econômicas e sociais deterioradas. Os fascistas sempre souberam tirar proveito da propaganda. Os da atualidade têm utilizado com competência as redes sociais para difundir suas obscuras teorias, suas falsas promessas e sua política de ódio. Mas não nos iludamos. Não é a propaganda em si que os leva ao poder. Bergman em seu filme relembra a lição da História: as más condições de vida da população formam um substrato onde, não poucas vezes, a serpente cria e recria os seus ovos.

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(1) Piketty, Thomas, O Capital no Século XXI, 1ª edição, Editora Intrínseca, Rio de Janeiro, 2011

(2) Jordà, Òscar et al., The Rate of Return on Everything, 1870-2015, The Quarterly Journal of Economics, Universidade de Oxford, agosto de 2019.

(3) Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira, Coordenação de População e Indicadores Sociais, IBGE, Rio de Janeiro, 2020.

(4) Oliveira, Sergio Gonzaga, A Mãe de Todas as Reformas, Rio de Janeiro, novembro de 2021

(5) Genro, Tarso, A Democracia como Forma e Conteúdo,  Rio de Janeiro, abril de 2022

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(*) Sergio Gonzaga de Oliveira é engenheiro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e economista pela Universidade do Sul de Santa Catarina(UNISUL). É colaborador frequente do blog Democracia e Socialismo, onde tem destacado a importância dos desafios para a retomada do desenvolvimento de longo prazo no Brasil.


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