A resenha abaixo tem como foco
o livro “Capitalismo e População Mundial”. Pode não parecer mas trata-se de questão
central do debate político, pois está na base de qualquer discussão sobre o
atual modelo institucional da Previdência Social, inclusive sobre o atual
projeto de reforma proposto pelo governo Bolsonaro.
O livro aborda a questão da
população mundial sob o capitalismo, inclusive aquela dos países em
desenvolvimento - caso do Brasil - (Capítulo 4, seção 4.2) onde o capitalismo
altera radicalmente as condições de reprodução da população reduzindo as taxas
de fertilidade e de mortalidade, aumentando a esperança de vida e a proporção
de idosos.
Segue a resenha.
Capitalismo e População Mundial - Resenha
Alfredo Maciel da Silveira*
Abril – 2019**
Moraes, Sergio Augusto
de. Capitalismo e população mundial***. Brasília: Fundação Astrojildo
Pereira; Rio de Janeiro: Contraponto, 2016.
Diante de uma das questões que mais preocupam os estudiosos do futuro da humanidade, qual seja o crescimento da população mundial, cujas tendências, somadas aos padrões de consumo difundidos pelo capitalismo, pressionam os recursos naturais, a produção de alimentos e o equilíbrio ecológico, Sergio A. Moraes no presente ensaio abre a perspectiva do tratamento analítico daquela problemática mediante a tese de K. Marx da subordinação no longo prazo do crescimento populacional às leis de reprodução do capital.
Diante de uma das questões que mais preocupam os estudiosos do futuro da humanidade, qual seja o crescimento da população mundial, cujas tendências, somadas aos padrões de consumo difundidos pelo capitalismo, pressionam os recursos naturais, a produção de alimentos e o equilíbrio ecológico, Sergio A. Moraes no presente ensaio abre a perspectiva do tratamento analítico daquela problemática mediante a tese de K. Marx da subordinação no longo prazo do crescimento populacional às leis de reprodução do capital.
Inicialmente o autor apresenta
a evolução histórica da população até os dias atuais em consonância à gênese e
evolução do capitalismo desde seu núcleo inicial europeu e sua fronteira de
expansão norte-americana, de modo a constituírem tais regiões, ainda que não
exclusivamente, o campo de observação primordial das interações do capitalismo
e população até os dias atuais do capitalismo avançado e globalizado.
Apoiando-se em minuciosa base de estudos populacionais, o autor faz a critica
do caráter exclusivamente quantitativo dos mesmos no panorama atual das
pesquisas.
Então, seguindo o método
esboçado por K. Marx em O capital, tomado como referência ao longo de todo
o ensaio, é construída passo a passo a conexão da dinâmica populacional com o
processo de acumulação do capital até a escala planetária atual desses dois
polos da relação. Ou seja, a problemática da tendência populacional, que ameaça
a vida humana no planeta, deveria ser pensada nas contradições engendradas pelo
desenvolvimento capitalista, seja pela necessidade da expansão da força de
trabalho e do mercado de consumo para a valorização do capital, seja pelas
condições e oportunidades que historicamente o próprio capitalismo tem induzido
para a contenção do crescimento da população em benefício da humanidade.
Conforme o autor, a variação da
população mundial no capitalismo apresentaria um fato intrigante: ao mesmo
tempo que ela cresce em termos absolutos sua taxa de crescimento, vai
declinando na medida em que esse modo de produção se intensifica e se amplia.
No segundo pós-guerra, em 1963, também em função do fenômeno chamado
de “baby boom”, tal taxa chega a 2,2% ao ano. Depois ela entra em queda,
conduzindo a uma taxa anual de 2,04% para a década; daí para diante ela cai
continuamente para 1,31% ao ano, entre 1995 e 2000, e atualmente está em 1,15%
ao ano. De imediato tal fato levaria a uma contradição: se ao capital interessa
o aumento da população, pois numa ponta teria à sua disposição mais braços e
mentes para explorar e na outra mais consumidores, como e por que acontece, nos
quadros do capitalismo, a desaceleração do crescimento populacional, apontada
primeiro nos países desenvolvidos e, a partir da década de 1970, em todo o
mundo?
A questão é tratada pela
análise da composição orgânica do capital, baseada na relação entre capital
constante e capital variável, em que o primeiro — valor dos prédios, instalações,
máquinas, insumos de produção — cresceria mais rápido historicamente que o
segundo, o valor da força de trabalho necessária para movimentar aquele, assim
caracterizando a substituição do trabalho vivo, desde a simples força muscular
até funções cerebrais de certa complexidade, pelas máquinas, computadores,
enfim, pelo capital constante. Em resultado elevar-se-ia a composição orgânica,
o que por sua vez implicaria na queda tendencial da taxa de lucro média do
sistema, conforme os dados e demonstrações expostos no trabalho.
Uma complexa conjugação de
fatores — tais como, entre outros, a concorrência intercapitalista, os
ganhos de produtividade e as inovações na produção, as lutas de classe, as
técnicas poupadoras de força de trabalho, a revolução científico-técnica
contemporânea e, ainda, como destacado no trabalho, o peso crescente do
trabalho imaterial, incorporado num primeiro momento ao capital variável
através das atividades criativas de engenharia de projetos, design, pesquisa,
desenvolvimento — determinaria finalmente aquele quadro tendencial do
capitalismo expresso na taxa de lucro decrescente. Daí que, em movimento para
contraditar aquela tendência, o capital precisa de um exército de reserva, de
milhões fazendo fila às portas das fábricas, dos bancos, etc. De nativos ou de
emigrantes que arriscam a vida na travessia do Mediterrâneo ou na fuga das
guerras. Como assinalava K. Marx:
[...] se a existência de uma superpopulação operária é produto necessário da acumulação ou do incremento da riqueza dentro do regime capitalista, esta superpopulação se converte por sua vez em alavanca da acumulação do capital, mais ainda em uma das condições de vida do regime capitalista de produção. (O capital, Havana, Ciencias Sociales,1973, t. I, cap. XXIII, p. 576).
Contemporaneamente tal se
aplicaria não apenas a operários em sentido estrito, mas a uma ampla gama de
trabalhadores. E quando tal superpopulação escasseia num país o capital vai
buscá-la em outros ou, na contramão, leva suas fábricas para os países onde o
preço da mão de obra é muito mais barato, como se pode observar no caso do
Brasil e, mais recentemente, na China e no Vietnã. É bem expressivo o fato de a
queda da taxa de lucro entre 1960 e 2002 (de 7,15% para 1,32%, mostrada no
trabalho) corresponder à amostra das 500 maiores corporações, portanto aquelas
certamente representativas do grande capital de maior mobilidade mundial.
Com tais medidas o capital
tenta compensar a escassez relativa ou o envelhecimento das populações nos
países de capitalismo avançado, visando aumentar sua taxa de lucro ou mesmo
frear sua queda. A curto prazo tais metas são realizadas mas aos poucos as
dificuldades aumentam. Conforme ilustrado pelo caso francês, segundo o Insee
(Instituto Nacional de Estatística e de Estudos Econômicos, da França), a
partir da segunda geração os imigrantes tendem a ter um comportamento
semelhante aos franceses. Desta ou de maneira semelhante isto se repete em
todos os países que precisam da imigração.
O trabalho prossegue mostrando
as pressões do avanço do capitalismo e do crescimento populacional sobre o meio
natural e a produção de alimentos. O crescimento absoluto da população deverá
levar a uma população de 10 bilhões em 2050. Ora, observada a produção de
alimentos de hoje, algo excepcional precisaria acontecer até lá para evitar a
barbárie. Isto porque as áreas atuais potencialmente produtivas no mundo,
regeneráveis, chegam a 13,4 bilhões de gha (giga hectares globais). O trabalho
apresenta cálculos dos estudiosos do assunto, apontando em 2007 um consumo de
2,7 gha por habitante, para uma população de 6,7 bilhões de pessoas. Isto
significa já ter sido ultrapassada a capacidade de regeneração do planeta. A
observar que tais números médios anuais levam em conta os povos dos EUA e da
África, estes últimos muitas vezes com um consumo inferior àquele mínimo para
sobrevivência.
Em escala planetária, com as
fronteiras abertas à integração dos mercados e ao acesso do capital aos imensos
reservatórios de trabalhadores de baixo custo de reprodução, não estaria à
vista nenhum interesse do capital em fazer valer as conquistas culturais e de
conhecimentos das sociedades, engendradas sob este mesmo capitalismo, em prol
de uma evolução mais equilibrada da população mundial.
Mas no caso dos países em
desenvolvimento – caso do Brasil em particular - um capitalismo tardio e
dependente deflagrou intensos movimentos migratórios internos e alterou
radicalmente as condições de reprodução da população, reduzindo as taxas de
fertilidade e de mortalidade, aumentando a esperança de vida e a proporção de
idosos.
A propósito - indo além do livro mas consoante a uma problemática que lhe é subjacente - aquela reprodução da população nos dias atuais está pondo em xeque o modelo institucional da Previdência Social, cujo regime de repartição simples pressupõe que os trabalhadores de agora financiam os benefícios dos aposentados e pensionistas atuais, enquanto as gerações de futuros trabalhadores financiariam as aposentadorias da geração trabalhadora de agora. Ora, isto fora concebido num contexto de alto crescimento econômico e de criação de empregos, conjugado a uma outra dinâmica demográfica, então compatível àquele regime de repartição.
A propósito - indo além do livro mas consoante a uma problemática que lhe é subjacente - aquela reprodução da população nos dias atuais está pondo em xeque o modelo institucional da Previdência Social, cujo regime de repartição simples pressupõe que os trabalhadores de agora financiam os benefícios dos aposentados e pensionistas atuais, enquanto as gerações de futuros trabalhadores financiariam as aposentadorias da geração trabalhadora de agora. Ora, isto fora concebido num contexto de alto crescimento econômico e de criação de empregos, conjugado a uma outra dinâmica demográfica, então compatível àquele regime de repartição.
Aqui no Brasil portanto reproduz-se o desafio que
vem ocorrendo nas regiões mais avançadas do capitalismo. Como universalizar a
proteção e a justiça sociais nos limites do capitalismo?
É sintomático por toda parte o
abandono do desafio, apelando-se a construções ideológicas as mais
reacionárias, do “salve-se quem puder”, da “sobrevivência dos mais aptos”, da "formiga previdente e da cigarra imprevidente". Assim está-se de volta ao
liberalismo do século XIX e seu debate sobre a virtude pessoal da
“prévoyance”, de onde posteriormente se originou o conceito e a institucionalização
da previdência social.
O livro tem sequência
caminhando para a sumarização e as conclusões.
Apesar de as guerras, as
epidemias ou as catástrofes naturais atuarem incidentalmente e influírem sobre
a reprodução da população, são fatores que não a regulam no longo prazo. O
avanço da ciência, da técnica, da consciência e dos meios dos seres humanos
para decidirem do tamanho de suas famílias também vem ganhando força no sentido
de permitir uma reprodução consciente da população. Isto permitiria, nos dias
de hoje, um controle consciente e democrático da população mundial. Sob o
capitalismo, isto poderia abrir alguns espaços de oportunidade durante algum
tempo, mas estes acabariam, no longo prazo, subordinando-se às leis de
reprodução do capital, o que vem conduzindo a humanidade a ameaças
insuspeitadas, só evitáveis pela ação política de todos os povos.
Num balanço sumário, um dos
méritos a destacar neste ensaio está em desbravar fronteira ainda pouco
explorada da pesquisa, em meio a estruturas da economia mundial e de relações
internacionais reconhecidamente em mutação. A destacar também sua contribuição
para o método, porquanto busca evidenciar, nas pegadas de K. Marx, o nexo entre
as dinâmicas atuais da população e da acumulação do capital. O autor deixa
transparecer a tensão de um pensamento militante que olha o futuro. Neste
sentido faz lembrar Antonio, o sardo, para o qual “[...] só quem deseja
fortemente é capaz de identificar na realidade os elementos necessários à
realização da sua vontade [...]”.
Para finalizar, uma sugestão do
que poderia ser um desdobramento da pesquisa, portanto avançando além dos
propósitos do ensaio, mas inspirando-se na visão global e sistêmica ali
presente. Seria o caso, por exemplo, de uma possível reinterpretação dos
efeitos da expansão dos circuitos mundiais de valorização do capital nos países
de desenvolvimento capitalista tardio e dependente (PDCTD na denominação dada
por Sergio Moraes), como explicação de fenômenos de heterogeneidade estrutural
já há muito identificados em clássica literatura sobre regiões
periféricas.
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(*)Alfredo Maciel da Silveira é
MSc. Eng. de Produção e Doutor em Economia.
(**) Versão atualizada da originalmente publicada no site Gramsci e o Brasil, setembro, 2016.
(***)Este livro pode ser encontrado, entre outros lugares, na Livraria Blooks, Praia de Botafogo, 316 (Espaço Itaú de Cinema), na Fundação Astrojildo Pereira e na Editora Contraponto. Agora também disponível como ebook em https://view.joomag.com/capitalismo-e-popula%C3%A7%C3%A3o-mundial/0193598001467054463
(**) Versão atualizada da originalmente publicada no site Gramsci e o Brasil, setembro, 2016.
(***)Este livro pode ser encontrado, entre outros lugares, na Livraria Blooks, Praia de Botafogo, 316 (Espaço Itaú de Cinema), na Fundação Astrojildo Pereira e na Editora Contraponto. Agora também disponível como ebook em https://view.joomag.com/capitalismo-e-popula%C3%A7%C3%A3o-mundial/0193598001467054463
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