Desde há muito se discute a participação dos capitais privados no saneamento básico. Seja na construção das estações e linhas seja na operação das mesmas. A experiência no Brasil é que a construção das estações tem sido feita quase totalmente pelos estados. O capital privado prefere operar as estações e linhas e nisto tem sido, dentro de certos limites, eficiente. Tanto o abastecimento d’água quanto o tratamento de esgotos é muito custoso para a imensidão das populações pobres. Terão condições de pagar? O remuneração dos investimentos e da operação seria atrativa ao capital privado?
Abaixo Roberto Freire abre uma discussão sobre a participação dos capitais privados no saneamento*.
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1. Como avalia a aprovação do Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico? Não é um conflito ser de esquerda e aprovar a entrada da iniciativa privada no setor?
De forma alguma. E isso está na
história do PCB. Sempre fomos reformistas. Se as circunstâncias mudam, nós
mudamos. Não faz sentido no mundo de hoje, descentralizado e interconectado,
defender um modelo centralizado no papel do Estado. Não fazia sentido já na
década de 1980, faz ainda menos agora. Não podemos ser dogmáticos e não somos.
Somos um partido historicamente reformista. Éramos gorbachovianos como PCB,
evoluímos como PPS e isso não mudou como Cidadania. Esse modelo está aí há
décadas e deixou 100 milhões sem tratamento de esgoto e 35 milhões sem água
potável. Há abertura agora para que investimentos privados ajudem a mudar esse
quadro. Nada disso vai acontecer da noite para o dia, mas foi dado um passo
nessa direção. A alternativa é deixar esses milhões de pessoas sem acesso a
esses direitos básicos e à mercê de uma série de doenças que atingem
principalmente os mais pobres.
2. A água foi privatizada como querem alguns críticos?
A nova lei não privatiza nem
estatiza. Ela estabelece metas e faz cobrança pelos resultados. Cria
concorrência. Se a empresa é privada ou estatal, deverá ser cobrada pelo seu
serviço. O fato de uma empresa ser estatal não garante que ela serve ao
interesse da sociedade. Essa é uma discussão atrasada, ideológica, que vem
impedindo o Brasil de avançar. Uma âncora do pensamento. Não importa a cor do
gato, desde que cace o rato.
3. Muitos alegam que o momento econômico é ruim e que haveria dificuldades para a realização de investimentos numa área que sempre foi bastante complicada em razão do grande volume de aporte necessário.
Estamos em meio a uma pandemia,
com uma crise social e econômica gigantesca, agravada pelo negacionismo e pela
irresponsabilidade do presidente Jair Bolsonaro. No momento, difícil realmente
ver cenário de investimento produtivo no Brasil. Mas apesar de Bolsonaro, isso
vai passar. Sem dúvida, com grande trauma, mas vai passar. E precisaremos estar
preparados para o momento seguinte. O projeto é importante por isso, mas é
evidente que por si só não resolve nada. Há uma série de condições para atração
de investimentos e tudo o que Bolsonaro faz é torná-las mais distantes. Mas,
passado esse momento, estados e municípios poderão atuar na contramão do
presidente, se lá ele ainda estiver. Terão uma carta na manga numa área tão
sensível, mas com grande potencial de mudar a realidade dos brasileiros mais
vulneráveis. No Nordeste, por exemplo, somente 28% da população tem esgoto
tratado.
4. O senhor vê algum paralelo com a privatização da telefonia no governo FHC? Água não é mercadoria diz quem critica…
É um comentário bastante
esdrúxulo, mas aceito a provocação. Poderíamos não ter privatizado a telefonia
porque a comunicação é um direito constitucional e pertence ao Estado.
Estaríamos hoje com redes obsoletas, internet discada e aparelhos telefônicos
como bens de alguns poucos. Essa era a realidade então. E o Estado não tinha os
recursos necessários para fazer frente à revolução tecnológica que se impunha.
Podemos ficar com a “água estatizada”, um ativo na mão, se querem assim, e
continuar alijando de condições mínimas de sobrevivência digna mais de 100
milhões de brasileiros. Muitos desses críticos têm água potável, parte do
esgoto tratado – porque o Brasil trata muito pouco –, celular e internet de
alta velocidade. Por quê? Porque o Estado pelo Estado funciona para alguns, mas
não para quem mais precisa. O Estado brasileiro foi privatizado para o
interesse de uns poucos. E não estamos falando, nesse caso do saneamento, de
todo poder à iniciativa privada ou todo poder ao Estado, mas de uma parceria no
melhor interesse público. Se for preciso ajustar o modelo, que isso seja feito.
Do jeito que está é que não pode continuar.
5. O senhor se considera um privatista?
Veja, essa visão é simplista.
Certamente não sou mais um estatista, mas é impossível reproduzir a lógica do
setor privado no setor público, como querem Paulo Guedes e alguns de sua
equipe. Nem o Estado é mais ou menos corrupto do que a iniciativa privada.
Muitas vezes, a iniciativa privada, desobrigada de certas limitações
corretamente impostas pela legislação ao setor público, poderá ser mais
eficiente. Nesse caso, o modelo que está aí não deu conta do recado. E veja que
já há empresas públicas, com participação privada e ações na bolsa, como Copasa
e Sabesp, então não estamos falando de um modelo puramente estatista. Essas
empresas são estatais e têm lucro. Devo muito da mudança de concepção que tenho
sobre o papel do Estado ao economista Ignácio Rangel. Ele já fala em concessões
à iniciativa privada como meio de financiar a expansão da infraestrutura na
década de 1970.
6. O senhor inclusive conduziu alguns processos como Deputados Federal e líder do governo na Câmara…
Já em 1989, como candidato a
presidente, defendi as privatizações. Não havia porque falar em setores
estratégicos, em inovação, e continuar produzindo aço. Fui líder do governo
Itamar Franco na Câmara dos Deputados e vivi essa discussão de perto quando da
privatização da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda (RJ), e da
Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), em Cubatão. Hoje, os países mais
avançados discutem robótica e inteligência artificial. É nessas áreas que o
Estado tem de focar sua agenda econômica. Até para ter condições de cuidar do
social. Enquanto ficamos nesse debate sobre Estado x Privado, uns poucos seguem
privatizando lucro e socializando o prejuízo, ficamos parados, perpetuando a
desigualdade, e vendo outros países deixarem o Brasil para trás. Falar em
privatização da água é desonestidade intelectual. Precisamos superar a queda do
muro de Berlim. O modelo de uma economia totalmente planificada foi derrotado,
mas uma parte da esquerda está ainda atrás de um muro de Berlim imaginário.
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(*) Entrevista originariamente concedida ao site Cidadania23, publicada em 25 de junho de 2020: