Três Visões do Super-Homem

Sérgio de Azevedo Morais*
Maio-2019

A publicação, neste blog, em julho de 2018, do ótimo artigo de Sergio Augusto de Moraes cotejando reflexões do escritor Yuval N. Harari sobre a evolução da espécie humana, expostas em seu livro “SAPIENS - Uma breve história da humanidade”, com o pensamento de Marx e Engels sobre o mesmo tema, convida a uma indagação sobre o futuro dessa evolução e, em especial, sobre a provável influência desse processo sobre a espécie humana nos séculos e milênios à nossa frente.
Imagem - Cirque du Soleil
Como é normalmente admitido, as mutações genéticas que determinaram o aparecimento do Homo Sapiens, assim como o de todas as classes de seres vivos que nos precederam na escala evolutiva –  desde os organismos unicelulares – deveram-se, essencialmente, ao acaso. O bioquímico francês Jacques Monod (1910-1976), Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1965, escreveu, em seu livro “O Acaso e a Necessidade” (1971), que se tornou um clássico:
“Dizemos que essas alterações são acidentais, que ocorrem ao acaso. E, porque elas constituem a única fonte possível de modificações do texto genético, segue-se necessariamente que apenas o acaso está na fonte de toda novidade, de toda criação na biosfera. O acaso puro, o só acaso, liberdade absoluta, mas cega, na raiz mesma do prodigioso edifício da evolução: hoje essa noção central da biologia moderna não é mais uma hipótese entre outras possíveis, mais ou menos concebíveis. É a única hipótese concebível, como também a única compatível com os fatos da observação e da experiência.”
É sabido que a certeza acima expressa não é compartilhada por todos. O que não nos impede de prosseguir. Mas não sem antes informar – o que pode interessar aos amigos deste blog – que Jacques Monod foi um herói da resistência francesa à ocupação alemã durante a segunda guerra mundial, tendo militado no Partido Comunista Francês nos últimos anos da guerra.
Prossigamos. A evolução, naturalmente, não se resume às mutações genéticas. Sabemos que determinadas mutações tornaram os indivíduos em que elas ocorreram mais – ou, eventualmente, menos – competitivos na luta pela vida, e este fator foi decisivo para a sobrevivência ou a extinção de todas as espécies que existem ou existiram em nosso planeta. Além disto, a sobrevivência e o predomínio de determinadas espécies foram favorecidos ou prejudicados pelo ambiente em que os seres mutantes estavam inseridos, por fenômenos naturais etc. No caso do Homo Sapiens e de seus ancestrais hominídeos, é evidente que as formas de organização social existentes à época em que as mutações se deram também influenciaram o sucesso ou a derrocada dos indivíduos mutantes.
Admite-se, de forma mais ou menos consensual, que no período abrangido pela História a configuração genética dos seres humanos tem-se mantido essencialmente estável. E parece razoável supor que, com as enormes populações distribuídas atualmente por todo o planeta, e com os conhecimentos e recursos à disposição das sociedades humanas, mutações genéticas que possam eventualmente ocorrer agora em alguns indivíduos não serão seguidas pela extinção dos indivíduos não mutantes – que em qualquer caso, formarão a imensa maioria.
Se for verdadeira a assertiva acima, a evolução humana possível ficará restrita à esfera dos fatos da consciência, da psique, da cultura, da organização social.
Jean-Jacques Elisée Reclus (1830-1905), um geógrafo e pensador anarquista que participou da Comuna de Paris e da primeira Internacional dos Trabalhadores, foi um pioneiro das preocupações com a Terra e a proteção do meio ambiente. É dele a seguinte sentença, notável tanto pela profundidade do “insight” quanto pela concisão de sua formulação: “O homem é a natureza tomando consciência dela mesma” (L’homme est la nature prenant conscience d’elle-même). Sentença relevante para a discussão da evolução, repetida, com pequenas variações (como: “no homem a natureza toma consciência de si mesma”), por pensadores de diversas orientações, como Nietschee Allan Watts.
A sentença de Reclus parece sugerir a existência de um “propósito” na natureza, que assim ficaria, de certa forma, “humanizada”. Muitos pensadores e especialistas nos advertem contra esta idéia. O próprio Jacques Monod afirmava:
“O primeiro postulado científico é a objetividade da natureza: a natureza não tem nenhuma intenção ou meta”.
“A ciência moderna ignora toda imanência. O destino se inscreve na medida em se que cumpre, não antes. O universo não estava grávido da vida, nem a biosfera, do homem. Nosso número saiu no jogo de Monte Carlo.”
Seja como for, se admitirmos que, como acima dito, a evolução humana atualmente possível ficou restrita à esfera dos fatos da consciência, da psique, da cultura, da organização social, podemos aceitar como desenvolvimentos evolutivos possíveis certos cenários vislumbrados – com maior ou menor clareza – por alguns pensadores. Embora muitos dos cenários anunciados possam ser considerados utópicos, não é absurdo admitir que as aspirações, os sonhos e as utopias de quem quer que seja são também, em certa medida, aspirações, sonhos e utopias da própria espécie humana. E a evolução possível de nossa espécie só poderá ocorrer no sentido da realização de pelo menos algumas delas.
Para ilustrar o que dissemos, apresentamos em seguida três textos inspirados e inspiradores de autores de épocas, origens e formação diversas: Rudyard Kipling(1865-1936), Francisco de Assis (1182-1226) e Lev Trotsky (1879-1940). Eles nos propõem ou nos anunciam modos mais perfeitos de sermos humanos, refletindo idéias de algumas das escolas de pensamento que têm influenciado nossa caminhada no mundo: o Cristianismo, o Estoicismo e o Marxismo. Embora só um dos mencionados textos mencione explicitamente o “super-homem”, o homem melhor, o homem novo, é dele que todos falam.
Ouçamos essas vozes. Elas tocam a sensibilidade de todos, independentemente de suas convicções, por serem fruto da labuta, da fé, do suor e do pranto, assim como da paixão, das lutas e do júbilo de multidões de pessoas, anônimas ou não, que passaram por este planeta. Elas expressam aspirações, sonhos e utopias de toda a espécie humana.


Se


Se és capaz de manter a tua calma quando
Todo o mundo ao teu redor já a perdeu e te culpa;
De crer em ti quando estão todos duvidando,
E para esses no entanto achar uma desculpa;
Se és capaz de esperar sem te desesperares,
Ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
E não parecer bom demais, nem pretensioso;

Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,
De sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se encontrando a desgraça e o triunfo conseguires
Tratar da mesma forma a esses dois impostores;
Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas
Em armadilhas as verdades que disseste,
E as coisas, por que deste a vida, estraçalhadas,
E refazê-las com o bem pouco que te reste;

Se és capaz de arriscar numa única parada
Tudo quanto ganhaste em toda a tua vida,
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
Resignado, tornar ao ponto de partida;
De forçar coração, nervos, músculos, tudo
A dar seja o que for que neles ainda existe,
E a persistir assim quando, exaustos, contudo
Resta a vontade em ti que ainda ordena: "Persiste!";

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes
E, entre reis, não perder a naturalidade,
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
Se a todos podes ser de alguma utilidade,
E se és capaz de dar, segundo por segundo,
Ao minuto fatal todo o valor e brilho,
Tua é a terra com tudo o que existe no mundo
E o que mais - tu serás um homem, ó meu filho! 
Rudyard Kipling, 1895 (tradução de Guilherme de Almeida)

Oração de Francisco de Assis

Senhor, fazei de mim um instrumento da Vossa paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor.
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.
Onde houver discórdia, que eu leve a união.
Onde houver dúvidas, que eu leve a fé.
Onde houver erro, que eu leve a verdade.
Onde houver desespero, que eu leve a esperança.
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria.
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, fazei que eu procure mais:
consolar, que ser consolado;
compreender, que ser compreendido;
amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe.
É perdoando que se é perdoado.
E é morrendo que se vive para a vida eterna.
(Tradutor desconhecido)

O homem novo

“O homem será capaz de mover rios e montanhas, de construir palácios para o povo no topo do Mont Blanc e no leito do Atlântico; ele naturalmente será também capaz de comunicar a sua vida diária não apenas riqueza, colorido e intensidade, mas também supremo dinamismo... O homem assumirá como tarefa tornar-se mestre de seus próprios sentimentos, elevar os seus instintos até o ápice da consciência, torná-los transparentemente claros, implantar fios de guia (guiding threads) sob o limiar da consciência, criando assim um tipo sócio-biológico mais elevado ou – se quiserem – um super-homem. O homem se tornará incomparavelmente mais forte, mais sábio, mais refinado. O seu corpo – seus movimentos com maior harmonia, sua voz com mais ritmo – mais musical; as formas de existência adquirirão uma teatralidade dinâmica. O ser humano médio será exaltado ao nível de um Aristóteles, Goethe, Marx. Acima deste ápice novos cumes serão elevados.”
Lev Trotsky, Literatur und Revolution, Viena, 1924 (pp. 176-9)
(tradução do inglês por Sérgio de Azevedo Morais)
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(*) Sérgio de Azevedo Morais é engenheiro - UFRJ e Mestre em Ciências - Manchester University, Inglaterra.