O que há de essencialmente novo, na política externa norte americana, com a chegada do governo Biden?
Em sua recente visita à Europa,
especialmente em seu reencontro com a aliança atlântica e seu braço militar, a
OTAN, Biden declara “a América está de volta”, demarcando a mudança da política
“América primeiro” (“America first”), de Donald Trump. E ao retomar as alianças
do mundo capitalista pós queda da União Soviética e pós Guerra Fria, conjugadamente
põe em marcha a estratégia de contenção da nova potência emergente, a China,
tentando estabelecer, sob sua hegemonia econômica e militar, um cinturão
geoestratégico em torno daquele país, passando destacadamente pela Europa
Ocidental, Índia, Austrália e Japão.
O artigo de José Luis Fiori, a seguir, analisa em maior profundidade a evolução histórica que nos trouxe a este contexto.
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As
estranhas derrotas de uma potência que não para de se expandir e acumular poder*
José Luís Fiori **
Julho - 2021
“O poder político é fluxo, mais do que estoque. Para existir precisa ser exercido; precisa se reproduzir e ser acumulado permanentemente. E o ato de conquista é a força originária que instaura e acumula poder”.(Fiori, O poder global e a nova geopolítica das nações. Boitempo Editorial, São Paulo, 2007, p. 17)
Na madrugada do dia 2 de julho
de 2021, as tropas norte-americanas se retiraram de forma sorrateira de sua
base militar de Bragam, a última e mais importante base dos EUA no Afeganistão,
depois de uma guerra que durou exatamente 20 anos e acabou de forma
absolutamente desastrosa. No conflito morreram 240 mil afegãos e cerca de 2.500
militares americanos; os americanos ganharam muitas batalhas, mas finalmente
perderam a guerra, e seu exército deixa para trás um país destruído e dividido,
às portas de uma nova e violenta guerra civil entre as forças do Talibã e do
atual governo afegão. Neste momento, as forças talibãs vêm avançando por todos
os lados e a perspectiva é que assumam o governo central do país muito mais
cedo que tarde.
Ainda mais surpreendente ou
chocante é acompanhar as conversações de paz entre os dois lados do atual
conflito afegão, que negociam as possibilidades de um pacto de convivência em
Teerã, sob o patrocínio do governo iraniano arqui-inimigo dos EUA. Ao mesmo
tempo, os países membros da Organização para Cooperação de Shangai, sob a
liderança da China e da Rússia, também se mobilizam para encontrar uma fórmula
que pacifique o país, e sobretudo impeça que o fundamentalismo talibã se
expanda além das fronteiras do Afeganistão ameaçando seus vizinhos, incluindo a
própria China. Ou seja, depois dos atentados de 11 de setembro e de 20 anos de
guerra, os EUA conseguiram promover uma cambalhota entregando o Afeganistão de
volta aos seus principais inimigos militares desde o primeiro minuto dos
bombardeios americanos no território afegão, então controlado pelas forças
talibãs.
O surpreendente em tudo isso,
entretanto, é que não se trata de uma situação excepcional, ou de uma derrota
imprevista. Pelo contrário, esta parece ter sido a regra nas guerras americanas
depois da Segunda Guerra Mundial. Os EUA lideraram as forças da ONU na Guerra
da Coreia, entre 1950 e 1953, e depois de três anos de avanços e recuos foram
obrigados a assinar uma trégua que já dura 67 anos, com as tropas do Exército Popular
da Coreia e com os representantes do Exército de Voluntário do Povo Chinês, em
27 de agosto de 1953. Depois, os norte-americanos foram derrotados na Guerra do
Vietnã, de onde tiveram que se retirar de forma quase tão ou mais vergonhosa do
que agora no Afeganistão, culminando com a famosa cena da evacuação da
embaixada americana em Saigon e a retirada apressada, por helicópteros, do
pessoal civil e militar que ainda estava na capital sul-vietnamita, às vésperas
de sua ocupação pelas tropas comandadas pelo general Van Tien Dung, do Vietnã
do Norte, no dia 30 de abril de 1975.
Algum tempo depois dessa
humilhação histórica, os EUA lideraram uma nova coalizão das Nações Unidas e
venceram a Guerra do Golfo de 1991, mas após matar cerca de 150 mil iraquianos,
desistiram de tomar Bagdá e depor e substituir o presidente Saddam Hussein.
Este havia sido protegido e aliado militar dos americanos durante a guerra
Irã-Iraque, na década de 80, e depois foi transformado no seu grande inimigo
nas duas guerras dos EUA contra o Iraque. Da mesma forma, em 2003, as tropas
americanas, apoiadas por soldados ingleses, voltaram a derrotar os iraquianos e
desta vez mataram seu presidente, mas em seguida “perderam o fio da meada” e
acabaram entregando o Iraque aos seus principais inimigos, os xiitas iranianos.
Depois disto, os americanos se envolveram na guerra civil da Líbia, ajudaram a
matar seu presidente e antigo aliado, Muamar al-Gaddafi, e acabaram
abandonando o país à sua própria sorte, destruído e dividido em estado de guerra
civil crônica até hoje. E algo análogo teria ocorrido na Síria, se não tivesse
havido a intervenção militar russa que sustentou o presidente Bashar al-Assad,
deu uma contribuição decisiva para derrotar as tropas do chamado Estado
Islâmico, e agora vem liderando o esforço de juntar os pedaços de um país
inteiramente destruído, dividido e na mais absoluta miséria. E tudo indica que
o mesmo voltará a acontecer em alguns meses mais, depois dos Estados Unidos
retirarem seu apoio militar à intervenção da Arábia Saudita no Iêmen.
Deve-se agregar a esse quadro
de derrotas e fracassos sucessivos da diplomacia e das tropas norte-americanas,
o distanciamento de seus antigos aliados, Paquistão e Turquia, cada vez mais
próximos da zona de influência russa e chinesa. Uma perda de influência que se
reflete na ausência americana das negociações que estão em pleno curso em
vários pontos do Oriente Médio e da Ásia Central visando pacificar o “Grande
Médio Oriente”, inventado pelo governo Bush e destruído pelas sucessivas administrações
democratas e republicanas destes últimos 30 anos. Pode-se lembrar aqui, como um
verdadeiro ponto de inflexão nesta história, a irrelevância dos EUA no conflito
recente entre o Azerbaijão e a Armênia, em torno ao território disputado de
Nagorno Karabakh, e sua completa irrelevância nas negociações da trégua que foi
lograda com a mediação e tutela da Rússia e da Turquia.
No entanto, realmente difícil
de entender e explicar é como os EUA atravessaram todas essas derrotas ou
fracassos no logro de seus objetivos imediatos, sem perder seu poder global.
Mais do que isso, como conseguiram aumentar seu poder a cada nova derrota? Uma
pergunta muito importante para entender o passado do sistema mundial em que
vivemos, mas muito mais importante ainda para pensar sobre o seu futuro. Mas,
ao mesmo tempo, uma pergunta que não tem uma resposta imediata e conjuntural, e
só pode encontrar ou explicação recorrendo-se à história de longo prazo do
sistema de Estados nacionais que nasceu na Europa entre os séculos XVII e
XVIII, e que depois se universalizou nos séculos XIX e XX, através da expansão
e das conquistas das grandes potências coloniais europeias. Durante toda a
história deste sistema de Estados nacionais, houve sempre Estados ganhadores e
Estados perdedores, e o sistema como um todo foi sempre competitivo, bélico e
expansivo. E todos os seus “membros” foram obrigados a competir e fazer guerra
para sobreviver nesta verdadeira corrida pelo poder e pela conquista de uma
riqueza maior do que a de seus competidores, até porque a acumulação da riqueza
se transformou num peça fundamental da luta pelo poder.
Como disse uma vez o grande
historiador e psicanalista alemão Norbert Elias, a regra básica do sistema de
Estados nacionais inventado pelos europeus é: “quem não sobe, cai” –uma regra
válida mesmo para as grandes potências que já se encontram na frente desta
corrida sem fim. Ou seja, mesmo as chamadas “grandes potências” desse sistema
estão obrigadas a se expandir permanentemente, aumentando seu poder e sua riqueza,
para seguir ocupando as posições que já ocupam e necessitam preservar através
de suas novas conquistas e guerras que apontam na direção da criação de um
império universal que conseguisse monopolizar o poder dentro do sistema
internacional. Só que esse “império universal” é uma impossibilidade lógica
dentro do próprio sistema, porque se ele se realizasse, o sistema se
desintegraria ou entraria em estado de entropia, por causa do desaparecimento
da própria competição, que é de onde vem a energia que move todo o sistema que
funciona em conjunto como se fosse uma verdadeira máquina de criação de mais
poder e de mais riqueza.
Por isso mesmo, a preparação
para a guerra e as próprias guerras não impedem a convivência, a
complementaridade e até alianças e fusões entre os Estados envolvidos nos
conflitos. Às vezes predomina o conflito, às vezes a complementaridade, mas é
esta “dialética” que permite a existência de períodos mais ou menos prolongados
de paz dentro do sistema mundial, sem que se interrompam a concorrência e o
conflito latente entre seus Estados mais poderosos. A própria “potência líder”
ou “hegemônica” precisa seguir expandindo seu poder de forma contínua, para
manter sua posição relativa, como já dissemos, mas também para manter vivo o
seu poder. O poder dentro deste sistema é fluxo, é conquista, e ele só existe
enquanto é exercido, não importa se afinal os vencedores conseguem impor ou não
os objetivos imediatos em cada uma de suas guerras. Por mais absurdo que possa
parecer, nesse sistema é mais importante que seus Estados líderes façam guerras
sucessivas e demonstrem seu poder militar, do que consigam realizar os seus
objetivos que são declarados e utilizados para justificar seu exercício sem fim
de novas guerras. O passado confirma que a potência líder do sistema, fosse ela
a Inglaterra, nos séculos XVIII e XIX, ou os EUA, no século XX, foram os
Estados que fizeram mais guerras durante toda a história do sistema
interestatal que foi inventado pelos europeus, e o número destes conflitos
iniciados por estas duas potências líderes aumentou com o tempo e na medida em
vez de diminuir na medida em que foi aumentando o poder destas duas grandes
duas potências anglo-saxônicas que lideraram o sistema internacional nos
últimos 300 anos.
É por isto mesmo, aliás, que as
grandes potências acabam por ser também as principais “desestabilizadoras” da
ordem mundial, sendo que a sua “potência hegemônica” é invariavelmente quem
destrói com mais frequência as regras e instituições que ela mesma construiu e
tutelou num momento anterior da história. Exemplo disso é quando, em 1973, os
EUA se desfizeram do “padrão monetário dólar-ouro” que eles próprios haviam
criado em Bretton Woods em 1944. E agora mais recentemente, quando o governo de
Donald Trump passou a atacar e destruir todas as regras e instituições criadas
e tuteladas pelos EUA desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em particular após
o fim da Guerra Fria.
Por fim, resumindo e voltando à
discussão sobre as sucessivas derrotas americanas no período em que os Estados
Unidos estiveram no epicentro do sistema mundial e do seu movimento permanente
de expansão: do nosso ponto de vista, o sistema mundial é um “universo em
expansão”, onde todos os Estados que lutam pelo “poder global” – em particular,
a potência líder ou hegemônica – estão sempre criando, ao mesmo tempo, ordem e
desordem, expansão e crise, paz e guerra. Por essa razão, crises, guerras e
derrotas não são, necessariamente, o anúncio do “fim” ou do “colapso” da
potência derrotada. Pelo contrário, podem ser uma parte essencial e necessária
da acumulação de seu poder e riqueza, e anúncio de novas iniciativas, guerras e
conquistas. O que passou já ficou para trás, como se fosse uma perda de estoque
que não altera necessariamente o fluxo do seu poder dirigido para frente e para
novas competições e conquistas. E é isto exatamente que está acontecendo,
agora, do nosso ponto de vista, quando os Estados Unidos estão realinhando suas
forças, suas velhas alianças, e preparando todos os seus estados vassalos, para
a disputa de poder e riqueza que já em curso dentro do novo eixo asiático do
sistema mundial. E, em particular, para enfrentar o seu novo grande desafio e
motor do seu próprio poder: a China. E deste ponto de vista, aliás, a própria
retirada americana do Oriente Médio e da Ásia Central pode ser vista como parte
desta nova disputa, e como uma forma de fragilizar seu novo adversário,
desencadeando uma explosão fundamentalista e uma grande guerra religiosa e
civil no território que os Estados Unidos estão abandonando, situado exatamente
na retaguarda continental da China.
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(*) Transcrito conforme o site
de notícias “O sul21”, publicado 16 de julho de 2021.
(**) Professor titular de
economia política internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). É autor de História, estratégia e desenvolvimento: para uma
geopolítica do capitalismo (Boitempo, 2014) e de O poder global e a
nova geopolítica das nações (Boitempo, 2007).
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