No Brasil e no mundo andam
juntas a defesa da vida e da democracia. É o que descreve e demonstra o
precioso texto de Werneck Viana a seguir.
____________________________
Hic Rhodus hic salta*
Luiz Werneck Vianna**
Janeiro - 2021
Nesse tempo de espantos algo já
se pode dizer: perderam todos os que se empenharam em imprimir uma marcha à ré
no movimento das coisas no mundo com a derrota no processo eleitoral de Donald
Trump que os liderava a partir do poder e da influência que o governo dos EUA
exerce na cena mundial. Em poucos dias, Joe Biden, cuja campanha se orientou
por princípios opostos de política externa será ungido com a faixa
presidencial, devolvendo o seu país ao seu leito natural historicamente
constituído, exemplar no processo de criação da ONU. O eixo do mal,
portador de versões degradadas do nacionalismo em moldes populistas, perde a
sustentação do pino que garantia seu funcionamento, e as peças que ainda lhe restam
não terão como operar sem o amparo do sistema de quem faziam parte.
Luiz Werneck Vianna |
Essa transição não será um
processo fácil, à sua frente poderosos obstáculos, políticos, sociais e
econômicos, como se constatou dramaticamente com a insurreição frustrada da
invasão do Capitólio quando se intentou obstar a certificação das eleições por
um golpe de mão. O cenário dantesco daquele episódio foi registrado ao vivo e a
cores, e seu macabro inventário tem sido exposto pela imprensa americana com a
identificação dos seus personagens, conformando um quadro assustador de
supremacistas brancos, neonazistas, de milicianos, de uma gente sem eira e
beira, inflada pela cólera do ressentimento social, escória cevada com as
bênçãos do governante do país.
Conduzir
essa transição demanda soluções enérgicas e criativas que destravem seu
caminho, a primeira resposta contundente foi a do impeachment de Trump, que
contou com a aprovação de 10 votos de representantes republicanos, e as que
devem ser apresentadas por Biden em seu discurso de posse no próximo dia 20 em
nome do que ele sustenta serem os remédios para a cura da alma americana da
doença do trumpismo que teria posto em risco os valores fundacionais da sua
sociedade.
Tal como testemunha o caso
brasileiro, mais do que uma patologia própria aos EUA o trumpismo se constituiu
em um sistema. Sua derrocada importará em efeitos de dominó nos países que
integravam sua constelação, entre os quais o Brasil, contudo a necessária
admissão dessa nova condicionante da política brasileira, bem longe de
recomendar uma postura quietista, de cega confiança de que a mudança no estado
de coisas da nossa realidade possa provir do mundo exterior, deve servir de
estímulo aos esforços de erradicação do trumpismo tupiniquim.
O princípio da realidade nos
aconselha a constatar as dificuldades políticas e sociais que se antepõem a
esse necessário e inafastável empreendimento diante da gravidade das
circunstâncias a que estamos expostos. Mas, em que pesem as restrições,
inclusive as impostas pela pandemia que dificulta os encontros e as
mobilizações no espaço público, são necessários os primeiros passos na longa
marcha que se tem pela frente, pois não se podem dar as costas à fortuna que
nos alicia para a ação. Caso contrariada por um ator surdo às suas mensagens,
ela pode nos entregar à nossa própria má sorte com o resultado nefasto de
prolongar o abjeto governo que aí está.
A tragédia amazônica, se
permanecermos inertes, será o destino de todos se nos faltar o alento para a
reconquista do que nos tem sido subtraído pelo governo Bolsonaro em suas
práticas demofóbicas e antidemocráticas. A investida das forças democráticas,
na hora atual, deve ter como objetivo principal a defesa da vida e de todas as
instituições da área da saúde que se empenham contra a orientação genocida
imposta pelas autoridades governamentais, ora representada pela bizarra inépcia
do ministro Pazzuelo.
Nessa direção, o movimento
ofensivo deve transcorrer nas esferas institucionais, incluído o poder
judiciário, com ênfase especial no Congresso, a que não pode faltar o recurso
ao impeachment de Bolsonaro, principal responsável pela catástrofe sanitária do
país, movimento a ser respaldado pelas agências da sociedade civil por meio de
manifestos, panelaços e do que mais estiver à mão.
Cassandras nos aconselham a não
partir para o mar alto, e nos relembram dos políticos liliputianos com que
contamos, mas não nos vem de João Doria, governador de São Paulo, de perfil e
robusto histórico conservador, a qualificação de Bolsonaro como facínora? Não
se faz política sem alma, remoendo cálculos intermináveis de avaliação de
forças esperando dos céus uma chuva que não vem, pois sempre chega a hora do
hic Rhodus hic salta. Pois ela chegou. Já contamos mais de 200 mil mortos,
basta, fora.
LEIA TAMBÉM: Tática e Manobra
__________________________________
(*) Em expressão literal: “Aqui é Rhodes. Salta aqui”. Significa: mostre aqui, prove o que você pode. Provem de uma fábula de Esopo, que trata de um fanfarrão que se nega a participar de uma prova de saltos, contando vantagem de ter saltado mais que todos em Rhodes. A frase passou a usar-se como uma exigência da demonstração imediata do que pode ser facilmente provado. A interpretação no contexto político, Werneck Vianna pode ter trazido de K. Marx em “O 18 Brumário de Luis Bonaparte.”
(**)Luiz Werneck Vianna,
sociólogo, PUC-Rio; Publicado originalmente em https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/01/luiz-werneck-vianna-hic-rhodus-hic-salta.html domingo, 17 de janeiro de 2021
Nenhum comentário:
Postar um comentário