Quando os “juros altos” se tornam falsa questão.

Alfredo Maciel da Silveira*

Fevereiro - 2023

É inegável a alta relevância do atual debate brasileiro sobre nossas altíssimas taxas de juros. Principalmente, haverá de ajudar-nos a localizar suas causas estruturais, ainda obscuras para muitos de nós. E diante da persistente inflação que ameaça a estabilidade macroeconômica, enseja novas questões quanto ao imperativo do crescimento econômico acelerado e sustentado. Para muitos, os da chamada “ortodoxia”, não há dilema, não haveria um “nó górdio” a romper. O crescimento econômico viria espontaneamente das forças do mercado (quanto crescer e desde quando, não se sabe...), uma vez garantido o clima de confiança dos agentes econômicos nas gestões fiscal e monetária! Este é o “Brasil Maravilha”, das melhores práticas internacionalmente comprovadas, embasadas nas mais laureadas autoridades acadêmicas...

Mas...

De qual economia, de qual país, estamos mesmo tratando?

Analistas “ortodoxos” não se cansam de nos recordar dos tempos “dilmáticos” recentes, da conjugação de baixa forçada dos juros básicos da economia com aumento do gasto público em despesas correntes, previdenciárias (em cascata ao aumento nominal do salário mínimo) e transferências sociais, com estagnação econômica e alta inflação, fenômeno contemporâneo conhecido como “estagflação”. Um papel central da explicação vem do fato de as expectativas dos “agentes” econômicos, especialmente os do mercado financeiro, anteciparem a alta da inflação que em sequencia se autoconfirma.

Faltam dizer que erros clamorosos de política econômica tem sido reiteradamente cometidos no Brasil. Agora mesmo, volta essa gritaria de que juros baixos estimularão a recuperação econômica, como se algum automatismo houvesse entre uma coisa e outra.

Mais importante. Em nome de um “círculo virtuoso”, em cujo dinamismo acreditaram, entre consumo de bens duráveis e investimento industrial privado, governos do PT levaram à absurda desoneração de impostos dos produtos de “linha branca”, televisores de tela plana, etc, que “decoraram” as moradias dos pobres e reduziram a arrecadação fiscal.

E o investimento público? Ah, este já tendia a zero antes da chegada do “Teto de Gastos” do Meirelles. Superestimaram o dinamismo do investimento privado induzido pelas políticas sociais. Subestimaram grosseiramente a necessidade da sustentação exógena do crescimento, através do gasto autônomo, público, na formação de capital.  Claro que, sob a batuta de Guedes, o investimento público finalmente “zerou”!

A nossa verdadeira questão é bem keynesiana. O Estado precisa criar demanda efetiva, mediante investimento público. Não se trata apenas de estímulos à recuperação cíclica, à volta do “pleno emprego”. O Estado coordena, induz, arrasta, o investimento privado. Através do planejamento de médio e longo prazo “coordena” as expectativas dos agentes da economia real, dos setores realmente produtivos.

Mas Keynes, pra sua época, falava na “eutanásia do rentista”. Foi de uma época em que a baixa dos juros básicos da economia canalizaria os investimentos privados dos rentistas para as oportunidades e riscos da economia real.

Mas vamos à questão. Qual país?

Não cabe aqui retomar as mudanças estruturais do capitalismo global desde então, que flagrantemente consagraram o rentismo. Mas o Brasil é seguramente um “bicho estranho”, à luz dos manuais de macroeconomia. Seria “um país rico, ao mesmo tempo pobre”, como acaba de reconhecer o André Lara Resende, no “Canal Livre”?

A propósito, percorram a Av das Américas no Rio de Janeiro. Vejam os carrões importados, na rua e nas agencias revendedoras. Em seguida, vão ao “Google Mapas”, e observem as dezenas de favelinhas nos interstícios dos condomínios, invisíveis desde a avenida principal. Aqui estamos falando de um Brasil que mira o Hemisfério Norte, aculturado e integrado às economias centrais do capitalismo, e “de costas para um outro Brasil” que mora ao lado. Ainda no Rio de Janeiro, que conheço melhor, já se “institucionalizaram” os “camelódromos” nos pontos de embarque-desembarque do transporte de massas ao longo dos subúrbios.

E nossa amada Brasília, a “Ilha da Fantasia”, com suas “cidades satélites”?...

O mundo mudou muito, e o Brasil mais ainda. Já foi chamado "Belíndia" (Bacha) e "Ornitorrinco" (Chico de Oliveira). E com a revolução tecnológica em curso neste século XXI, reitera-se e aprofunda-se, sob as forças do mercado, nossa “heterogeneidade estrutural” (Anibal Pinto).

Há milhões de empreendedores, empresas pequenas e médias, pessoas físicas e jurídicas, que estão fora do mercado de crédito! Eu vejo aqui mesmo em meu bairro. A política monetária não alcança estes agentes. A retomada do crescimento que alcance tais agentes nada tem a ver com aquelas taxas, a de juros básicos ou da dívida pública!

O mercado de crédito ainda é ultra concentrado. A incipiente bancarização recente da população pobre, mediante bancos digitais, facilita transações mas não expande o crédito.

E o empresário de bairro se autofinancia.  Capital de giro? Crédito rotativo? Tudo capital próprio ou financiamento de fornecedores a juros realistas, pelo interesse mútuo das partes. E muita informalidade. Compras com nota fiscal? O que é isso? E vendas a crédito dos grandes magazines populares já embutem juros astronômicos que compensam a inadimplência, o calote, praticamente certo. É comum o pobre fazer uso do cartão de crédito daquele parente ou amigo ainda “limpo” no SERASA, por exemplo. Como entrar na favela, com mandado de recuperação judicial daquela geladeira que não foi paga? E a concessionária de energia, a Light, por exemplo, que não dá conta dos “gatos”? Quanto aos Bancos, cobram juros escorchantes já prevendo negociarem inadimplências.

E quanto aos juros básicos do BC?

Não estou inteiramente convencido quanto ao instrumento da Selic ser eficaz sobre a inflação, com a economia estagnada. Qual a sensibilidade da inflação aos movimentos da Selic? Choques de oferta, sob uma economia estagnada ou em desocupação, criam ondas de inflação, mudanças de preços relativos, que se atenuariam no tempo. Mas não sou peremptório quanto a isso. Altas de preços por choques de oferta tenderiam mesmo a se dissipar como uma onda?  André Lara Resende, em seu artigo "Consenso e Contrassenso" explica como, tanto nos choques quanto no excesso de demanda, cria-se a percepção de alta generalizada de preços além de efeitos de inércia. Para debate, vale a pena reproduzí-lo:

“A inflação é provocada por um excesso de demanda agregada, ou por um choque negativo de oferta que pressiona alguns preços-chave e cria a percepção de que há uma alta generalizada dos preços, que por sua vez cria expectativas de que preços continuarão a subir. Uma vez consolidadas, as expectativas de inflação podem manter a inflação alta, mesmo com desemprego e capacidade ociosa. A inflação consolidada tem um grande componente de inércia. Expectativas de inflação podem ser revertidas através de anúncio de metas por um banco central que tenha credibilidade, conquistada pelo seu histórico de sucesso para manter a inflação dentro da metas. Para isso o banco central utiliza a taxa básica de juros como instrumento para regular a demanda agregada”. “(...) Para vencer a inércia de expectativas ancoradas, tanto de alta quanto de baixa inflação, é preciso provocar muito desemprego, ou muito excesso de demanda(...)”

De qualquer forma, dadas as nossas condições de heterogeneidade estrutural, inclusive quanto à flagrante desbancarização e desfinanceirização de um dos “Brasis”, deixemos então os juros altos satisfazerem o tal “mercado” do outro “Brasil”!

Ainda sobre a falta de crédito, recebi de um amigo, importante empresário de telecomunicações, o seguinte comentário:

"Alfredo, o quadro de acesso ao crédito que você descreve é o que encontramos nos pequenos provedores de banda larga fixa no Brasil. Eles são hoje responsáveis por cerca de 30% das conexões e levaram a Internet com fibra para municípios com menos de 100 mil habitantes. Sem ter acesso a crédito. Fizemos um estudo sobre isto há um ano atrás, para um banco de desenvolvimento internacional"

Nosso problema estrutural, a requerer inadiáveis reformas, vai alcançar em algum futuro o Banco Central em sua relação com o Tesouro. Mas de imediato, reformas terão que vir do lado fiscal, e do financiamento fiscal.

Como a crise social já passou do limite, reformas estruturais envolvendo bancos públicos, empresas públicas, recursos parafiscais e financiamento do investimento público podem vir aí logo à frente...

O Keynes que nos interessa agora é o do investimento público e do investimento privado que vem por arrasto (para os franceses , “effet d’entraînement”) Desnecessário enfatizar nosso imenso passivo social, da saúde, da fome, da educação. Da falta de saneamento básico, de nossas oportunidades competitivas de inserção internacional, de redução do “custo Brasil”, de um país literalmente “atolado” em transporte rodoviário, etc, etc...

O investimento público pode monetizar o Brasil paralelo, desatrelado do “mercado”. Portanto deixemos de lado a “ditadura” dos juros altos! Viva os juros altos deixados para o “Brasil Maravilha”, paraíso dos compradores de títulos públicos. Só não chega a ser o inferno dos emissores de títulos privados porquanto no mesmo “Brasil Maravilha” estes ainda têm pra quem repassarem seus altíssimos custos financeiros, com efeitos distributivos óbvios...

Precisamos debater soluções estratégicas, para contornar as “barreiras” das relações com um poder “encastelado”, o do tal “mercado”. Não é “bater de frente”, mas “dar a volta”.

E como conciliar democracia, crescimento econômico e inclusão social?

Em artigo recente, “Planos para o futuro de forma produtiva” (O estado de São Paulo, 20/11/22) Albert Fishlow tratou da questão do crescimento no Brasil:

“(...) o Brasil chegou a um ponto em que as decisões produtivas se tornaram essenciais. Dilma prometeu dobrar a renda per capita de 2010 até o aniversário de 200 anos da Independência do Brasil, ou seja, 2022. Uma meta mais modesta, mas notável, seria atingir uma taxa de crescimento contínua de 3% até 2026(...)”.

“(...) O Brasil precisa de uma taxa de investimento regular da ordem de pelo menos 24%/25% de seu PIB. Parte dela pode vir de uma ampliação do investimento estrangeiro, mas também deve haver um aumento da poupança doméstica para financiar o crescimento. Isso tem sido altamente variável, caindo para menos de 15% quando o investimento estrangeiro estava em rápida expansão (...)”

 

Comento.

1) A Taxa de Investimento. Num artigo curto, ele não poderia mesmo se estender sobre como alcançá-la; o foco dele é nosso atraso na formação da capacidade produtiva; no atual contexto do novo governo Lula, acrescenta: "(...) Com a decisão de realizar uma grande distribuição de recursos para os mais pobres no início de seu novo governo, restará pouco para o investimento público necessário para estimular o crescimento real do capital social”; sucede (digo eu) que o investimento público é crucial como variável-instrumento reguladora da taxa de crescimento do PIB; trata-se de decisão autônoma de gasto;

2) A taxa de crescimento. A taxa média de crescimento de 3% aa (per cápita) que ele admite para o quadriênio, deve guardar relação com aquela taxa robusta desejável de 25% do investimento sobre o PIB que, uma vez alcançada, deve propiciar taxas de crescimento do PIB muito maiores do que as da renda per cápita; por exemplo, André Lara Resende na já citada entrevista ao “Canal Livre”, admitiu um crescimento de 6% ao ano.

3) Não sei por quanto anda a relação produto/capital média de nossa economia; mas apesar do atraso na produtividade sistêmica de nossa economia nas últimas décadas, que exige taxas de investimento comparativamente mais elevadas, uma taxa de investimento sustentada de 25%, sem ser "chinesa", seria espetacular;

4) Este grande brasilianista, fala pouco mas põe o dedo na ferida!

Concluindo, sem esgotar o assunto.

Em economia, estamos escravizados por preconceitos, "verdades" superadas.

Não por acaso, como se diz agora, é preciso pensar "fora da caixa".

Num espectro amplo de pensamento econômico, ideologia e política, temos uma intelectualidade que vem se revelando brilhante e engajada nesta hora da verdade, na hora da prática! E temos importantes quadros na política, agora experientes com os erros do passado, especialmente quanto às alianças estratégicas. E a crise social, rebatendo na política, empurra-nos à busca premente de soluções. Reiterando: conjugar a longo prazo, democracia, crescimento e inclusão social.

E quanto à liderança?

Negue-se a Lula muitas virtudes. Mas não a da inteligência!...

A víbora fascista está “de bote armado”...

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(*) Doutor em Economia, IE-UFRJ, MSc Eng. de Produção, COPPE-UFRJ. É um dos editores deste Blog.