Sergio Augusto de Moraes
Dezembro 2018
A Companhia das Letras publicou
em 2016 o livro “Homo Deus - Uma breve história do amanhã” de Yuval N. Harari, o
mesmo autor do bestseller “Sapiens - Uma breve história da humanidade”, já comentado neste blog. Nesse último livro o autor tenta traçar, em 400 pgs, as
alternativas que a humanidade tem pela frente, numa projeção que varia de
algumas décadas ao fim do século XXI, portanto algo que os leitores mais jovens
poderão conferir nos anos vindouros.
O livro tem qualidades, a
destacar a preocupação com o futuro da humanidade a médio e longo prazo, uma
exceção à enxurrada de imediatismo derramada por centenas de outros de
inspiração puramente neoliberal. Em várias outras ocasiões ele dá informações
interessantes sobre o mundo atual. Mas isto é pouco diante dos tropeços em que
ele incide.
Depois de uma longa, duvidosa e
elitista digressão sobre a “Revolução Humanista”, onde ele se aventura numa
análise tosca do socialismo, Harari se apoia em Marx, Engels e Lenin para afirmar:
“ Até os mais ferrenhos críticos de Marx e Lênin adotaram sua posição básica em
relação à história e à sociedade e começaram a pensar sobre tecnologia e
produção muito mais cuidadosamente do que sobre Deus e o céu. Em meados do
século XIX, poucas pessoas foram tão perceptivas quanto Marx, por isso só uns
poucos países passaram por um processo rápido de industrialização. Foram esses
países que conquistaram o mundo”(p.277).
Harari está se referindo aos
países de capitalismo avançado, como a Grã-Bretanha, que por isso dominaram
outros como a Índia e o Sudão.
Marx, Engels e Lenin tremeriam
na tumba se pudessem ouvir tal diatribe. Eles estudaram e escreveram sobre o
capitalismo a partir de fatores histórico-sociais revelando suas contradições, para
superá-lo e não para fornecer a outrem “percepções” semelhantes às que serviram
de instrumento para a dominação de outros países “atrasados”.
A abordagem de Marx, Engels e Lenin se apoia no desenvolvimento da tecnologia, das forças produtivas (máquina a vapor, etc), das relações de produção com elas conjugadas e de todo o ordenamento social que as mantem até que o próprio desenvolvimento reclame formas superiores daquelas relações e ordenamento.Tal como descrito resumidamente no prefácio de Marx ao tomo I de “O Capital”, citando um de seus críticos: “Portanto, Marx só se preocupa de uma coisa: de demonstrar mediante uma conscienciosa investigação científica a necessidade de determinadas ordens de relações sociais e de por às claras do modo mais impecável os fatos que lhe servem de ponto de partida e apoio. Para isto, basta-lhe plenamente provar, ao par da necessidade da ordem presente, a necessidade de uma nova ordem para a qual aquela tem inevitavelmente que derivar, não importando para tal efeito que os homens acreditem ou não, que tenham ou não consciência disto”.
Como se vê algo muito diferente
das “percepções” de Harari. O capital para Marx não é tampouco uma “coisa” (máquinas,
industrias, dinheiro, etc) mas sim uma relação social. Exatamente o contrário
do que, pretendendo apoiar-se em Marx, diz Harari às pgs 277/8: “No início do
século XXI, o trem do progresso está novamente saindo da estação - e será
provavelmente o último a deixar a estação chamada homo sapiens. Os que perderem esse trem jamais terão uma segunda
oportunidade. Para conseguir um assento, você tem de entender a tecnologia do
século XXI, particularmente os poderes da biotecnologia e dos algoritmos de
computação. Neste século, os que viajam no trem do progresso vão adquirir
aptidões divinas de criação e destruição, enquanto os que ficarem para trás
enfrentarão a extinção”. Mas o que leva nosso autor a pensar neste futuro
catastrófico e desumano?
Um dos mais notáveis tropeços
de Harari é considerar que a maneira de tratar a informática continuará no
futuro a ser feita como atualmente, isto é a serviço dos interesses das grandes
corporações e dos governos a elas subordinados. Talvez apoiado na lógica do
atual mundo capitalista onde a concentração de renda vem aumentando. Pior, apesar
de historiador, ele não destaca que tal maneira, subordinada aos objetivos de
tais corporações, é histórica, tem começo, meio e fim. E que sob certas
condições, será substituída por outra onde a manipulação dos algoritmos servirá
à humanidade e não a alguns privilegiados.
Na página 372 o autor expõe de
outro modo sua visão do futuro, apoiando-se na do economista F. Hayek : “De
acordo com essa visão, a bolsa de valores é o sistema de processamento de dados
mais rápido e mais eficiente criado pelo
gênero humano (...)quando milhões de pessoas(...) determinam o preço mais
acurado para o petróleo,...etc”. O rei da Arábia Saudita e outros sheiks do
Oriente Médio devem rir ao ler isto pois sabem que tal preço varia
principalmente quando eles fecham ou abrem as torneiras dos seus campos de
petróleo. Claro, em conluio com as grandes corporações financeiras que compram
na baixa e vendem na alta.
A abordagem básica de Harari é
do homem-algoritmo. Na página 92 ele diz que “(...) no decorrer das últimas
décadas, biólogos chegaram à firme conclusão de que o homem(...) é também um
algoritmo(...) mais complicado que a máquina, mas mesmo assim um algoritmo”. Se
ele ficasse somente no campo da biologia talvez evitasse cair no cientificismo,
usando tal descoberta para explicar todos os fenômenos da sociedade, desde a
política até a filosofia. Mas não, ele insiste.
Não satisfeito em deformar as
teses de Marx, Harari se supera e resolve falar em nome do grande
revolucionário. Diz que “se Marx voltasse a viver hoje em dia, provavelmente
incitaria seus poucos discípulos remanescentes a ler menos “O Capital” e a
estudar a internet e o genoma humano” (p. 278). É o entendimento precário e deformado
da obra de Marx , especialmente de “O Capital”, que leva nosso autor a dizer
tais coisas. Marx certamente incitaria seus discípulos a estudar a internet e o
genoma humano mas não desvinculados das relações sociais. Ainda mais porque “O
Capital” contém, além do exame exaustivo das contradições do capital, muitos
elementos do tratado de lógica dialética materialista que Marx não pode
escrever.
Nas páginas seguintes Harari
faz uma incursão no terreno da sociologia quando afirma que “(...) Quando a
engenharia genética e a inteligência artificial revelarem todo o seu potencial,
o liberalismo, a democracia e os livres mercados poderão tornar-se tão
obsoletos quanto facas de pedra lascada, fitas cassete, o islamismo e o
comunismo” (p. 280). E adiante conclui “(...) se o Universo inteiro está
vinculado à experiência humana, o que acontecerá quando a experiência humana se
tornar somente outro produto projetável, não diferente na essência [grifo meu] de qualquer outro item no supermercado?”.
Aqui se revela com clareza a
visão mecanicista de Harari. A experiência humana evolui socialmente conectada
aos avanços da tecnologia, seja ela a fabricação de facas de pedra lascada ou o
desenvolvimento da inteligência artificial. Tal processo envolve milhões de
facetas que mudam a cada segundo e é principalmente social. Por isto ela nunca terá lugar nas gôndolas do supermercado.
Para chegar às suas conclusões
Harari se apoia na seguinte afirmação: “No decorrer do século passado, quando
os cientistas abriram a caixa preta do Sapiens, não acharam lá nem alma, nem
livre-arbítrio, nem um “eu” - somente genes, hormônios e neurônios, que
obedecem às mesmas leis físicas e químicas que governam o resto da realidade.” (p.
286). Ainda bem que nosso autor fica nos limites do século passado. Porque o
problema do “eu”, da consciência, tem um longo futuro para ser pesquisado e
revelado.
Sejamos um pouco mais
explícitos: no cérebro não existem somente estes elementos, existem axônios, células
gliais, outros elementos ainda não identificados pela ciência (coisa que aliás
nosso autor destaca mais adiante) e em particular as sinapses, aproximadamente
100 trilhões delas, as ligações entre os neurônios realizadas de maneira não linear. E aqui começa a questão de
como tudo isto é conectado, que de maneira simplista Harari diz que
“...obedecem às mesmas leis físicas e químicas que governam o resto da
realidade”.
Pelo que sabemos a matéria
obedece a distintos movimentos e conexões: os inorgânicos, que incluem as
formas físicas, químicas, forças gravitacionais, eletro-magnéticas, as
interações entre átomos e moléculas, etc. Os movimentos de natureza orgânica: o
metabolismo, os reflexos, a interação com a biosfera, etc. E as formas sociais
de movimento que incluem a história da humanidade, as mudanças sociais, as
relações entre diferentes sistemas sociais e dentro de cada um deles entre
classes, camadas e grupos.
Talvez por desprezar este
último e decisivo movimento da matéria e portanto do nosso cérebro que Harari
atribui as decisões humanas, sejam elas políticas ou pessoais, a processos
bioquímicos dentro do cérebro que ocorrem, segundo ele, de maneira determinante.
Esquece, ou não quer ver, que a história do homo
sapiens é antes de tudo uma história
social, que o homem é um ser social.
Parafraseando Marx podemos
dizer que Harari aponta fatos que servem de ponto de partida e apoio para a
determinação de novas relações sociais, mas que não as identifica, exatamente
por se limitar somente à projeção futura e mecanicista daqueles fatos.
Assim, é por não considerar que
nos métodos de produção e nas formas de distribuição, sejam elas materiais ou
imateriais, produziram-se transformações com as quais já não concorda a ordem
social vigente e dominante no século XXI, que Harari projeta o futuro da
humanidade como uma sociedade “dataísta” e não pós-capitalista, socialista.
Algo parecido como, se aplicado aos dias de hoje, concluíssemos que vivemos em
uma sociedade “eletronística” e não capitalista como é o caso.
Muito Bom Sérgio, você talvez conheça, mas indico "Big Tech. A ascensão dos dados e a morte da política." De Evgeny Morozov
ResponderExcluirValeu Cezar. Vou procurar o Morozov.
ResponderExcluirCriticar Homo Deus de Harari é se posicionar contra a corrente natural do Universo que nos leva ao nada. Lugar final da humanidade. Nao ê uma leitura para gente de fé. Recomendo!!
ResponderExcluirFé eu não discuto.
ExcluirEmpatia, qual o algoritimo? na biologia há, mas pouco praticada!
ResponderExcluirAchei parte da crítica pertinente, mas acho a obra do Harari uma das melhores dos últimos tempos. Portanto, diferente do Sérgio Augusto de Moraes, eu digo: Homo Deus sim! Assim como Sapiens e 21 Lições Para o Século XXI, do mesmo autor.
ResponderExcluirAinda n li as lições... Mas achei estranhamente pertinente a crítica. Posto que homo Deus o historiador de lança ao futuro, um risco que achei louvável, interessante, mas como o texto aqui explícita, dentro da obra de Marx ele comete erros, sim, interpreta. O que fatalmente pode levar a erros, e aqui levando em consideração a obra no geral. Harari é jovem ainda, é brilhante, sei que amadurecera posto que sua obra prima ainda é homo sapuens, onde se articula bem com a historicidade é não em supisiçoes e interpretações equivocadas.
ExcluirConcordo com a crítica mecanicista ao livro de Harari. Isso já aparece em homem sapiens. Ele pouco se detém mas relações sociais e políticas. Parabéns. (Mas é muito gostoso de ler)
ResponderExcluirConcordo com a crítica ao mecanicismo de Harari enfatizando aspectos biológicos e tecnológicos. Esses aspectos somam-se aos políticos e sociais que, sim, ele minimiza. Mas o texto é muito prazeiroso.
ResponderExcluirtem razão Sheila. Mas é aí que mora o perigo.
ExcluirRecentemente foi desenvolvido um algoritimo de machine learning para o qual foram dadas apenas as regras básicas do xadrez...ele jogou contra ele mesmo e apredeu as sutilezas do jogo de uma forma que se tornou imbatível...o ponto pricipal na revolução que vivemos, diferente da agrícola e industrial, é que nesta a inteligência está se desvinculando da consciência...o ser humano, que não aquele das elites, foi necessário em guerras e produção...não se podia enviar para estes campos pessoas doentes e com baixo nível educacional...hoje paras guerras bastam mísseis e drones e a produção, tanto na indústria como no agronegócio, estão em processo de serem completamente automatizadas...em cima destes elementos viviam as dinâmicas das relações sociais...o que Yuval está nos dizendo é que em uma análise "what if" mantidas as tendências tudo que conhecemos será mudado radicalmente...uma elite de "super homens" com capacidades físicas e cognitivas acima da grande massa de humanos "comuns", detentora de todo poder advindo da informaçåo, proveniente da IA, e em um mundo globalizado (resultado do globalismo, diferentemente da globalização) determinará o que serão "estas relações sociais"...uma leitura pormenorizada do livro mostra que este poder que o ser humano tinha de organizar e moldar esta teia está se esvanecendo...passando a ser, em um futuro não tão distante, algo tão remoto como para nós hoje foi o processo de relações que mudaram o ser humano de um povo nômade para um povo agrícola...cada vez mais teremos consciência de que todas estas relações estavam fundadas em mitos - tais como partidos políticos, religiões, sociedades anônimas, sindicatos, ideologias, nações - que em última instância só serviam para que os verdadeiros líderes tivessem algum meio para organizar e exercer algum domínio sobre aqueles que ali se abrigassem...é justamente nestes substratos que as redes sociais se estruturavam e se moldavam...a impressão que eram os humanos comuns que mexiam nesta teia era apenas uma ilusão que tende cada vez mais se desvanecer...
ResponderExcluirAnônimo
ExcluirDesculpe a resposta tardia.Problemas.
No seu comentário vc repete algumas das teses e/ou afirmações idênticas às que Harari faz em seu livro. Assim não avançamos no debate.
Simplesmente chego a concluir que todos sabem tudo ao mesmo tempo em que não compreendem nada...
ResponderExcluirDesculpe o atraso. Problemas.
ExcluirSeria muito bom que vc nos explicasse.
Ótima crítica, obrigado pois estou lendo a obra e já li Marx e realmente questões estas questões e outras que vc trouxe em sua análise. Vlw muito
ResponderExcluirNio
ExcluirEu tento.Marx e o futuro do capitalismo de informação são complexos.
Este comentário foi removido pelo autor.
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