O braço armado bolsonarista.

O deputado federal Marcelo Freixo (PSOL) explica por que desistiu de candidatura a prefeito do Rio em nome da frente contra o fascismo. Defende que amplo espectro político democrata se una contra projeto fascista do bolsonarismo que tem base considerável e mobiliza setores da segurança pública e das milícias em torno do presidente.
Segue o artigo.
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União para derrotar Bolsonaro é urgente**

Marcelo Freixo*
Maio/2020
Recorri recentemente a uma imagem inspirada na sátira "Cândido, ou o Otimismo", escrita pelo filósofo francês Voltaire (1694-1778) em 1759, para alertar o campo democrático sobre a urgência de nos unirmos para frear o avanço do fascismo no Brasil. 
No fim do livro, após ser submetido a uma sucessão de desgraças tão cruéis quanto as que vivemos agora, Cândido conclui que a melhor forma de lidar com as perversidades do mundo é por meio do recolhimento e da disciplina no cuidado de si: "Devemos cultivar o nosso jardim".
Apesar da beleza poética da imagem, vivemos um momento no Brasil que não permite que continuemos a nos comportar como o herói voltairiano. Não podemos seguir cuidando das nossas flores quando um tufão já começa a arrancar nossas casas.
Deputado federal Marcelo Freixo - PSOL-RJ
Não vivemos um tempo de normalidade, em que as tradicionais polarizações se manifestavam dentro dos marcos democráticos. Pela primeira vez temos no poder um governo eleito de extrema direita, com uma base social relevante e um projeto de poder fascista.
A democracia não é uma formalidade que se resume à realização de eleições. Ela é uma experiência concreta, prática cotidiana, que inclui desde o pleno funcionamento das instituições até o respeito à pluralidade de ideias, liberdades e garantias coletivas e individuais.
Esses valores estão sendo vorazmente destruídos pela sanha autoritária do presidente da República e seus seguidores mais radicais, que transformaram a violência e a intimidação em instrumentos de ação política.
Hoje, apesar de todas as barbaridades, Bolsonaro é aprovado por cerca de 25% do eleitorado e mantém uma base fanática, que o apoia de forma incondicional, de aproximadamente 10% dos brasileiros. Se não reagirmos para mantermos o setor mais radicalizado isolado a esses 10%, corremos o risco de vê-lo se ampliar rumo aos 25% da população.
Diante dessa constatação sombria, o campo democrático precisa estar à altura do desafio  e ser capaz de abrir mão dos projetos pessoais e partidários, superar as diferenças e se unir na defesa de algo maior: a vida, os direitos e a democracia, ameaçados pela dupla tragédia do fascismo e da pandemia.  Não precisamos de um grande líder para derrotar Bolsonaro. Necessitamos de um grande projeto de reconstrução nacional, que abra espaço a todas as nossas lideranças e seja capaz de superar o projeto autoritário bolsonarista.
Essa nova plataforma precisa resgatar o espírito da Constituição de 1988, erigida sobre os escombros da ditadura como uma anunciação da democracia que desejamos. Um projeto que seja calcado na redução das desigualdades e na garantia da dignidade de todos os brasileiros, através do fortalecimento do SUS, da valorização da educação pública, da elaboração de uma política de segurança que respeite a vida nas favelas e nas periferias e do compromisso com a preservação ambiental.
A retirada de minha candidatura à Prefeitura do Rio de Janeiro  é um gesto em prol da unidade. Estou me colocando a serviço da construção desse novo projeto de Brasil.
Faço isso com o sentimento de urgência de quem, por ser do Rio, conhece de perto a gênese e o significado do projeto bolsonarista, fermentado no esgoto do submundo carioca e sustentado pelo tripé política, polícia e crime organizado.
A essência dessa combinação pode ser traduzida pela relação do clã com as milícias, que são quadrilhas formadas por agentes da segurança pública corruptos que dominam e exploram economicamente e eleitoralmente territórios pobres através do terror. Esse controle territorial confere ao fascismo da família Bolsonaro uma forte coloração de máfia.
Em 2008, eu presidi a CPI das Milícias na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro), que resultou na prisão de todos os chefes de quadrilha. Em março daquele ano, o patriarca da família deu entrevista à BBC defendendo a legalização das milícias e dos seus negócios, revelando a simbiose de interesses entre o clã e o crime organizado.
"Elas oferecem segurança e conseguem manter a ordem e a disciplina nas comunidades. O governo deveria apoiá-las. E, talvez, no futuro, legalizá-las", declarou.
Uma das peças para entender essa associação é o ex-policial militar e homem de confiança da família, Fabrício Queiroz. Operador do esquema das rachadinhas no gabinete de Flávio Bolsonaro na Alerj, Queiroz construiu sua carreira em batalhões situados em áreas controladas por milícias. Após deixar a corporação, passou a representar os interesses dos Bolsonaro nesses territórios.
Queiroz apresentou o matador Adriano da Nóbrega ao clã. Os dois serviram no mesmo batalhão da PM e responderam juntos por homicídio. Adriano já tinha extenso currículo, havia trabalhado para a máfia dos caça-níqueis e mantinha negócios em áreas de milícia.
Parentes do criminoso eram laranjas nomeados no gabinete de Flávio para desviar dinheiro público. E o próprio Adriano, quando estava preso por assassinato, recebeu das mãos do 01, dentro da cadeia, a mais alta comenda do Legislativo fluminense, a Medalha Tiradentes.
Ao assumir a presidência, o chefe do clã passou a usar o cargo para expandir e a aprimorar essa estrutura de poder fascio-miliciana, essencial ao seu projeto de poder.
O que caracteriza o fascismo bolsonarista? O aspecto mais perigoso é a subversão do papel institucional das forças de segurança, que em vez de servirem ao Estado passariam a atuar como guardas armadas presidenciais. O motim da PM no Ceará, alimentado por lideranças ligadas ao presidente, e a tentativa de interferência na Polícia Federal são exemplos disso.
Paralelamente a essa ação dentro da estrutura estatal, Bolsonaro vem publicando ilegalmente decretos que destroem a legislação de controle de armas e munições  para facilitar o armamento dos seus grupos radicais de apoiadores e disseminar a violência.
O objetivo é formar milícias políticas que assumam o front da ofensiva golpista. Algo semelhante ao que ocorreu na Bolívia em 2019, quando grupos paramilitares promoveram uma série de ataques a instituições e autoridades ligadas ao governo, viabilizando o golpe de Estado. Um exemplo desse experimento é o “Grupo 300 pelo Brasil”, que está acampado em Brasília  e participou das agressões a enfermeiros e jornalistas.
Ao mesmo tempo que cria milícias políticas, Bolsonaro coloca em cargos-chave do governo generais linha-dura sem qualquer compromisso democrático, como deixou claro o vice-presidente Hamilton Mourão em artigo publicado no dia 14 de maio no Estadão, em que tratou as instituições republicanas como empecilhos ao exercício do poder presidencial.
Entretanto, as estratégias do presidente para ampliar seus próprios poderes não se baseiam apenas na violência e na militarização do Planalto.
Bolsonaro construiu, associando-se a lideranças e partidos evangélicos, uma rede capaz de capilarizar sua base de apoio por todo o Brasil e legitimar o autoritarismo do seu governo por meio da criação da imagem do líder que recebeu de Deus a missão de governar e de salvar o Brasil, algo que é constantemente dito nos cultos de que o presidente participa.
Os petardos disparados diariamente contra o jornalismo, a ciência e a cultura também fazem parte dessa operação na esfera do simbólico para reforçar a sua autoridade.
Mais do que tentar intimidar seus interlocutores e estimular agressões a jornalistas, o presidente deseja criar uma nova economia da verdade, destruindo a legitimidade das fontes tradicionais de produção de informação e conhecimento.
É lugar comum afirmar que ditadores não toleram dissenso, crítica e liberdade expressão, mas às vezes esquecemos como eles também odeiam os fatos, que nem sempre podem ser controlados.
Por isso é central ao sucesso do seu projeto decretar a morte dos fatos jornalísticos e científicos e transformar a verdade em algo fluido, alheio ao campo da razão, disseminando através de grupos de WhatsApp e disputado na gritaria das redes sociais.
Essa operação narrativa é o passo decisivo que permite a conversão em mito do homem que sempre representou o que há de pior no banditismo político brasileiro e que agora está comprando o apoio de parlamentares do centrão, antiga tropa de choque de Eduardo Cunha. Entretanto, a encarnação do mito, no bolsonarismo, não é só uma legitimação simbólica, é principalmente um chamado à ação para os seus seguidores.
Isso porque, apesar do desígnio divino, sozinho o líder não conseguirá realizar a missão para a qual foi destinado, pois é constantemente fustigado pelas forças do mal, representadas principalmente pelo sistema político, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal. Por isso a idéia de destruição do sistema é tão presente e crucial para a retórica bolsonarista. É a reencenação farsesca do embate entre David e Golias.
Logo, a produção de crises é uma questão de sobrevivência política e coerência narrativa. Cada conflito é meticulosamente escolhido, calculado e teatralizado para reforçar a imagem do líder interditado.
A conclusão não poderia ser mais cristalina: o mito só cumprirá seu propósito quando o sistema, que é a democracia, for destruído.
O historiador Eric Hobsbawm (1917-2012) cravou em 1914 o início do século 20, inaugurado pelos horrores da 1ª Grande Guerra. Sei das armadilhas da historiografia do tempo presente, mas concordo com a historiadora Lilia Schwarcz, que disse que o século 21 está nascendo neste exato momento. E começa marcado pelo signo do horror da pandemia e do avanço de governos autoritários no mundo.
O novo tempo começa conclamando as forças democráticas a assumirem a responsabilidade e se unirem numa grande concertação para impedir o avanço da tirania. Tanto um golpe de Estado quanto a reeleição de Bolsonaro em 2022, pela radicalização autoritária que se seguirá, representarão o fim da democracia.
Não podemos repetir os mesmos erros do passado. Deixemos as flores dos nossos jardins para depois, caso contrário o tufão levará de arrasto a vida e as conquistas históricas do povo brasileiro.
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(*)Marcelo Freixo, professor de história e deputado federal (PSOL-RJ), foi candidato a prefeito do Rio de Janeiro em 2016 e presidente da CPI das Milícias na Assembléia Legislativa do Estado em 2008.
(**) Originalmente publicado em Folha de São Paulo, 23.mai.2020 

Vida e morte do corona virus

Maio/2020
Até agora a trágica experiência da humanidade com a pandemia do Covid 19 aponta para três fatores importantes.
Primeiro, que na sua origem está a voraz, irresponsável e dominante relação do homem com a natureza. O vírus que vem dizimando centenas de milhares de pessoas passou para o homem através de animais que, expulsos do seu habitat natural, invadiram as cidades e seus habitantes. Dito em outros termos o planeta não suporta mais um crescimento econômico semelhante ao praticado nos EEUU e em outros países industrializados.
Segundo, que dentre os mais atingidos pela doença estão os mais pobres e, dentre estes, os mais velhos. Novamente o crescimento econômico observado nos últimos tempos apontado acima tem uma característica medular que contribui para o quadro desolador que assistimos: ele é concentrador de renda e gerador das enormes desigualdades observadas em países como o nosso.
Em terceiro lugar o ensinamento é que para transitar para outra economia há que se mudar o sistema de saúde, da prevalência do particular para outro onde o atendimento público e gratuito seja o dominante.
Corona vírus em Nova York, EUA
Foto: Michael Appleton/Mayoral Photography Office
Em todo o mundo milhares de intelectuais e cientistas, ao mesmo tempo em que trabalham para salvar vidas, estão pensando em outra sociedade onde outros Covid não venham aparecer nem fazer os estragos que hoje assistimos.
Abaixo transcrevemos o resumo de um exemplo de proposição destas, recentemente elaborado por 170 acadêmicos holandeses.
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Holandeses avançam no cenário pós-pandemia e propõem um modelo econômico baseado no decrescimento*

Compartilhamos o curto e claro manifesto com o qual acadêmicos holandeses propõem uma mudança do paradigma econômico mundial depois da crise da pandemia.
A nota é publicada por El Clarín, Chile, 27-04-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Aparentemente a Holanda é o país que com mais força está tomando o desafio de reestruturar sua economia a partir do que nos vivemos no presente. Nesse contexto, 170 acadêmicos holandeses escreveram um manifesto em cinco pontos para a mudança econômica pós-crise da covid-19, baseado nos princípios do decrescimento:
1. Passar de uma economia focada no crescimento do PIB , a diferenciar entre setores que podem crescer e requerem investimentos (setores públicos críticos, energias limpas, educação, saúde) e setores que devem decrescer radicalmente (petróleo, gás, mineração, publicidade, etc.).
2.Construir uma estrutura econômica baseada na redistribuição. Que estabelece uma renda básica universal, um sistema universal de serviços públicos, um forte imposto sobre a renda, ao lucro e à riqueza, horários de trabalho reduzidos e trabalhos compartilhados, e que reconhece os trabalhos de cuidado.
3.Transformar a agricultura para uma regenerativa. Baseada na conservação da biodiversidade, sustentável e baseada em produção local e vegetariana, ademais de condições de emprego e salário justas.
4. Reduzir o consumo e as viagens. Com uma drástica mudança de viagens luxuosas e de consumo desenfreado, a um consumo e viagens básicas, necessárias, sustentáveis e satisfatórias.
5. Cancelamento da dívida. Especialmente de trabalhadores e donos de pequenos negócios, assim como de países do Sul Global (tanto a dívida a países como a instituições financeiras internacionais).
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(*)Publicado originariamente por IHU em 29-04-2020,