Em anos recentes, a aceleração
da velocidade e capacidade dos microprocessadores viabilizou o relançamento de
técnicas de modelagem de sistemas de há muito conhecidas, tais como as de
análise estatística e de redes neurais artificiais, agora podendo manejarem grandes bases de dados sob o novo ambiente de conectividade da internet.
Dentro da revolução
informacional digital em curso, iniciada no último quarto do século XX, parece
estar-se abrindo agora um ciclo de inovações mediante novas combinações de
tecnologias. E a grande “estrela” do momento chegou ao senso comum das pessoas sob
a denominação geral de “Inteligência Artificial - IA” , algoritmos que
“aprendem” mediante a interação com uma variedade de ambientes, sejam eles,
físicos, de outras máquinas, ou humanos.
O feliz artigo da Profa. Dora
Kaufman, a seguir, apresenta-nos com casos ilustrativos bem esclarecedores, uma
visão crítica de como se tem difundido as informações sobre “Inteligência Artificial
- IA”. A complexidade e a opacidade dos sistemas favorecem a especulação sobre
o alcance e consequências sociais dessas inovações. Nas palavras da autora:
“Evitando supervalorizar ou demonizar a IA, o desafio é conhecer o
funcionamento e a lógica da tecnologia para aproveitar os benefícios e mitigar
os riscos”.
Serão tais desenvolvimentos
portadores de virtualidades emancipatórias para a humanidade?
____________________________________
Supervalorização e demonização da inteligência artificial - desviam a atenção dos danos reais e comprometem os benefícios*.
Dora Kaufman**
Outubro - 2021
Caetano Veloso canta os
algoritmos de inteligência artificial (IA). Após nove anos de seu último
álbum inédito, Abraçaço (2012), Caetano lança o álbum autoral Meu Coco
(2021), com destaque para a canção 'Anjos Tronchos': "Agora a minha
história é um denso algoritmo, que vende venda a vendedores reais / Neurônios
meus ganharam novo outro ritmo / E mais e mais e mais e mais e mais
[...]”. Inspirar um dos maiores expoentes da música brasileira reflete a
relevância atual da IA. Conhecer seus fundamentos, contudo, é importante para
evitar supervalorizar e demonizar uma tecnologia, ainda em seus
primórdios, e com tantos benefícios à sociedade.
Cinco anos atrás, praticamente,
todos os principais fabricantes de veículos motorizados e empresas de alta tecnologia
previram a implantação generalizada de sistemas de direção automatizada até
2020, previsão replicada pela mídia mundo afora. Steven Shladover, engenheiro
especializado e um dos fundadores do Partners for Advanced Transportation
Technology (PATH) - programa líder em pesquisa de Sistemas Inteligentes de
Transporte da Universidade da Califórnia, Berkeley -, em artigo recente, vaticina:
"As operações automatizadas só serão viáveis durante os próximos anos
dentro de condições estreitamente definidas. Devemos esperar algumas
implementações limitadas de caminhões automatizados de longa distância em
rodovias rurais de baixa densidade e entrega local automatizada de pequenos
pacotes em ambientes urbanos e suburbanos durante a década atual. Serviços
automatizados de caronas urbanas e suburbanas também podem se tornar
disponíveis de forma limitada, mas os desafios específicos do local para sua
implantação são suficientes para que seja improvável que atinja uma escala
nacional em breve”.
O protagonismo da IA em processos
eleitorais é outro mito. Yochai Benkler, professor da escola de direito na
Universidade de Harvard, Robert Faris e Hal Roberts realizaram um dos mais
completos estudos sobre as eleições americanas de 2016, publicado, em 2018, no
livro “Network Propaganda: manipulation, disinformation, and Radicalization in
American Politics”. Os autores concluíram que a eleição de Donald Trump
decorreu mais da dinâmica do ecossistema de mídia dos EUA e da polarização
política assimétrica do que por sistemas comerciais de publicidade. Segundo os
autores, “a publicidade psicograficamente microdirecionada da Cambridge
Analytica é altamente improvável de ter feito diferença na campanha de 2016”, e
alertam para a tendência dos analistas em atribuir à responsabilidade de problemas
históricos da sociedade, por ser o elemento novo mais visível, às tecnologias
digitais.
É inestimável a contribuição de
Shoshana Zuboff no entendimento do modelo de negócio baseado em dados
(“data-driven models”) e algumas de suas consequências. Militante contra o
poder das big techs, seu livro “The Age of Surveillance Capitalism: The fight
for a human future at the new frontier of power” (2019) é permeado de
afirmações contundentes - “exploração dos dados comportamentais para ler as
mentes dos usuários tornando possível saber o que um determinado indivíduo em
um determinado momento e lugar estava pensando, sentindo e fazendo” - ,
contudo, em sua maioria, não explicita as evidências (fundamento de qualquer
pesquisa empírica crível) e/ ou não explicita as amostras base das pesquisas
(parte significativa das amostras são de perfis “Weird” - Western,
Educated, Industrialized, Rich, Democratic - ou seja, enviesada). Conhecer
o “consumidor target” para influenciar suas escolhas é a essência da
propaganda, que há décadas migrou o foco da funcionalidade do produto (“valor
de uso”) para o desejo e a emoção do consumidor; o que precisa ser investigado,
com metodologias científicas, é a mudança de natureza derivada da coleta e
mineração de dados em larga escala, ou seja, a natureza da disrupção (partindo
do pressuposto que ela existe).
O historiador Yuval Harari
(“Homo Deus: Uma breve história do amanhã”, 2016) afirma que no século
XXI, a partir de bases de dados gigantescas e poder computacional inédito,
os algoritmos “sabem não apenas como você se sente, como sabem 1 milhões de
outras coisas a seu respeito das quais você mal suspeita”. Harari, igualmente,
não revela a fonte dessas afirmações. Pode ser que sejam verdadeiras, pode ser
que não, o ponto é que essas afirmações, ditas por autores de referência, são
replicadas sem o devido questionamento: alguém conhece uma pesquisa empírica
qualificada (método científico, extensa base de dados) que confirme tamanho
poder e influência dos algoritmos de IA sobre a decisão dos indivíduos e,
particularmente, sobre a formação da subjetividade humana?
Ao condenar o uso da IA com
foco nas externalidades negativas, eliminamos, simultaneamente, as
externalidades positivas. A arquitetura de redes neurais GAN (Generative
Adversarial Network), por exemplo, é combatida por gerar as chamadas “Deep
Fakes”, mas elas têm potencial de contribuir positivamente em outras áreas,
como na saúde. Diferente da CNN (Convolutional Neural Network) - arquitetura de
rede neurais aplicada em visão computacional para identificar e classificar
objetos -, a GAN cria imagens bi ou tridimensionais (imagem, voz, vídeo)
possibilitando, por exemplo, criar dados sintéticos de qualidade, suprindo a
carência de dados para pesquisas médicas, e melhorar uma imagem de tomografia
computadorizada e/ou ressonância magnética em baixa resolução (menos tempo de
exposição, protege o paciente de altas doses de radiação).
A técnica que permeia quase
todas as implementações de IA hoje, chamada de redes neurais profundas ou deep
learning, é “apenas” um modelo estatístico de probabilidade com aplicação
restrita ao desempenho de tarefas específicas (previamente determinadas). Como
todos os modelos estatísticos de probabilidade, existe uma variável de
incerteza intrínseca, produzem conhecimento provável, mas inevitavelmente
incerto. A personalização é com base em "clusters", não é individual,
agrupa conjunto de usuários com perfis similares. A capacidade preditiva desses
modelos decorre de variáveis pré-estabelecidas pelos desenvolvedores, logo
incorpora a subjetividade humana; seus algoritmos são treinados em bases de
dados, em geral, tendenciosas; e a visualização dos resultados nem sempre é
trivial de ser assimilada pelos usuários. Ou seja, são modelos limitados sem
essa suposta objetividade e precisão.
Evitando supervalorizar ou
demonizar a IA, o desafio é conhecer o funcionamento e a lógica da tecnologia
para aproveitar os benefícios e mitigar os riscos.
LEIA TAMBÉM:
SAPIENS – Harari,Marx e Engels
__________________________________
(*) Originalmente publicado em Época Negócios,
01 de outubro – 2021
(**) Dora Kaufman professora do
TIDD PUC - SP, pós-doutora COPPE-UFRJ e TIDD PUC-SP, doutora ECA-USP com
período na Université Paris – Sorbonne IV. Autora dos livros “O Despertar de
Gulliver: os desafios das empresas nas redes digitais”, e “A inteligência
artificial irá suplantar a inteligência humana?”. Professora convidada da
Fundação Dom Cabral.