Brasil sem Planejamento e um futuro já presente

O artigo do Alfredo contém um conjunto de conceitos e idéias que me parecem muito pertinentes. As principais são:
  • Resgatar o ineditismo da Constituição de 1988 na introdução do planejamento estatal como base para o desenvolvimento nacional.
  • Mostrar como essa orientação constitucional foi solenemente ignorada desde então, reduzindo o planejamento à mera elaboração orçamentária anual ou, quando muito, a uma relação de obras quinquenal.
  • Indicar que a chegada do ultra liberalismo ao poder, nos dias atuais, radicalizou essa tendência, concedendo ao mercado toda a responsabilidade pela dinâmica do desenvolvimento, em franca discordância com as experiências históricas dos países que se desenvolveram.
  • Lembrar que a divisão internacional do trabalho, gerada após a Revolução Industrial e ascensão dos países centrais, permanece mantendo em inferioridade tecnológica e produtiva aquelas periferias que não se movimentam politicamente.
  • Questionar sobre a possibilidade de, no quadro político atual, derivar uma reversão em direção ao ordenamento constitucional de 1988.
  • Insistir na necessidade dessa reversão para que o Estado assuma essa incumbência como base para o desenvolvimento.
  • E, por fim, detalhar a articulação orgânica entre os Órgãos de Estatísticas, o Escritório de Planejamento, o Legislativo, os Agentes Econômicos e a Sociedade para que o processo de planejamento seja eficiente, transparente e democrático.
Sérgio Gonzaga de Oliveira*
Segue o artigo de Alfredo.
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Brasil sem Planejamento e um futuro já presente

Alfredo Maciel da Silveira**
Julho 2019

Neste artigo sustento que a retomada do Planejamento no Brasil poderá ser um imperativo, a depender das decisões cruciais que os brasileiros tem diante de si.
Entendo estarmos atravessando um período de reformismo liberal, que não se resume ao tempo do atual governo, e que agrega as esperanças liberais - hegemônicas na ideologia e na política - em um Brasil "desenvolvido" ao modo do liberalismo. 
Mas diante do Brasil real, tal liberalismo poderia dar conta do que promete? E diante da crise social que se agrava, quais a chances de ruptura com esse projeto estratégico liberal? Um novo caminho econômico-social e democrático, mas em qual direção?
Ambientação Organizacional do Planejamento
Fonte: elaboração do autor

Antecedentes. O Artigo 174 da Constituição: o que se pensava em 1988 sobre o planejamento? O que restou?


O planejamento abrangente e integrado das atividades econômicas dos setores público e privado no Brasil foi alçado a princípio constitucional desde 1988, primeira vez na história em que foi mencionado nas constituições brasileiras. Através do artigo 174 e seu parágrafo 1º, está organicamente inserido no "Capítulo I, Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica", que por sua vez abre o "Título VII, Da Ordem Econômica e Financeira".
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.§1º a lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento. 

Tal dispositivo ainda permanece na Constituição sem jamais ter sido regulamentado.
Mas o artigo 174 e seu parágrafo 1º não entraram na Constituição por acaso. À época ainda havia a expectativa de retomada do planejamento sob relações Estado - Sociedade de inspiração socialdemocrata. Uma primeira redação desse dispositivo já constava do anteprojeto constitucional da "Comissão Afonso Arinos", de 1987, com idêntico conteúdo. Já então se fazia também a conexão com as atribuições do Poder Legislativo, quanto a dispor, "com a sanção do Presidente da República", sobre "planos e programas nacionais e regionais de desenvolvimento". É flagrante que a Comissão de Sistematização da Assembléia Constituinte considerou e aprimorou aquela proposta inicial. Sua organicidade e consistência ficaram evidenciadas pelas conexões estabelecidas com as atribuições do Congresso Nacional e do trabalho de suas comissões (respectivamente os artigos 48 e 58 da Constituição), onde se destaca a participação do Poder Legislativo no processo decisório do planejamento.
Ora, sabe-se o que veio depois, com a radical liquidação do Estado desenvolvimentista e a mudança de rumos das relações Estado - Sociedade e Estado-Mercado desde o governo Collor, relações que não seguem à letra o contemplado originalmente na Constituição de 1988, já de resto sucessivamente emendada.
O pouco que se fez no Brasil desde então, sob a denominação de "Plano",esteve regido pelo artigo 165, alusivo aos orçamentos, onde consta o “Plano Plurianual” que apesar do nome nada mais é que um orçamento para cinco anos,  de  âmbito muito mais restrito portanto, integrante de outro Título, de número VI, "Da Tributação e do Orçamento", em seu "Capítulo II, Das Finanças Públicas". Assim, conceitual e metodologicamente nada tinha a ver com o desenvolvimento institucional da concertação entre governo e setor privado, com a interação estratégica entre players relevantes, ou ainda com a produção de informações socioeconômicas consistentes entre si como base da negociação política, elementos essenciais de um planejamento indicativo contemporâneo.

Fadiga do capitalismo

O avanço da ultra-direita que ameaça o mundo não é uma consequência da “fadiga da democracia” como dizem alguns, e sim da fadiga do capitalismo, que não consegue sair da crise iniciada em 2008 sem golpear a democracia, os direitos políticos e sociais conquistados pela luta dos povos. Carecemos de uma alternativa consistente ao capitalismo, uma proposta elaborada democraticamente que desenhe uma outra sociedade, que garanta a preservação do planeta, a extinção da miséria e a redução das desigualdades.
Na entrevista abaixo* o professor suíço Jean Ziegler ilumina elementos para tal proposta e aponta nesta direção.
Ziegler: “as sociedades multinacionais privadas são as verdadeiras donas do mundo”. Foto: Henning Kaiser / Picture Alliance / Getty Images

A Esperança está na Sociedade Civil Planetária, segundo Jean Ziegler.

Descrentes da democracia representativa, os cidadãos vivem hoje um “desespero silencioso e secreto”, num mundo controlado pelas corporações globais. Para o sociólogo suíço Jean Ziegler a esperança está na “sociedade civil planetária.”

1. Vemos em diferentes partes do mundo uma reação popular contra partidos tradicionais e contra a política. Também vemos a vitória de políticos como Orbán, Trump, Salvini e Bolsonaro. Por qual motivo o senhor acredita que estamos vendo essa onda?

O mundo se tornou incompreensível para o cidadão, que não mais consegue lê-lo. As 500 maiores empresas multinacionais privadas — reunindo todos os setores, como bancos, indústria e serviços — têm 52% do PIB do mundo. Elas monopolizam um poder econômico-financeiro, ideológico e político que um imperador ou papa jamais teve na história da humanidade. Elas escapam de todos os controles do Estado, parlamentares, sindicais ou qualquer outro controle social. Têm apenas uma estratégia: maximização dos lucros no tempo mais curto e não importa a qual preço humano — ainda que sejam responsáveis, sem dúvida, por um processo de invenção científica, eletrônica e tecnológica sem precedentes e de fato extraordinário. Até o fim da União Soviética, um terço dos habitantes do mundo vivia sob algum tipo de regime comunista. O capitalismo estava regionalmente limitado. A partir de 1991, o capitalismo se espalhou por todo o planeta e instaurou uma só instância reguladora: a mão invisível do mercado. Isso produziu uma ideologia que alienou totalmente a consciência política dos homens e que dá legitimidade a uma só instância de regulação: o neoliberalismo. Esse sistema sustenta que não são os homens que fazem a história, mas os mercados, e que as forças do mercado obedecem às leis da natureza.

2. E qual é a implicação disso para o cidadão?

É dito ao homem que, por não ser mais o sujeito da história, cabe a ele se adaptar ao mundo. De fato, entre o fim da URSS, no começo dos anos 90, e os anos 2000, o PIB mundial dobrou. O volume do comércio se multiplicou por três e o consumo de energia dobrou em quatro anos. É um dinamismo formidável, mas isso tudo ocorreu de uma forma concentrada e nas mãos de um número reduzido de pessoas. Se considerarmos a fortuna pessoal dos 36 indivíduos mais ricos do mundo, segundo a Oxfam ( organização mundial contra a pobreza ), ela é igual à renda dos 4,7 bilhões de pessoas mais pobres da humanidade. Segundo um relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura sobre a insegurança alimentar, a cada cinco segundos uma criança com menos de 10 anos morre de fome ou de suas consequências imediatas no mundo. O mesmo relatório diz que, em seu atual estado de desenvolvimento, a agricultura poderia alimentar normalmente 12 bilhões de seres humanos. Ou seja, quase o dobro da humanidade. Não há fatalidade. A fome é feita pelas mãos do homem e pode ser eliminada pelos homens. Uma criança que morre de fome é assassinada.

3. Isso é sustentável?

De forma alguma. A desigualdade não é só moralmente vergonhosa. Também faz com que o estado social seja esvaziado. Os mais ricos não pagam impostos como deveriam. Os paraísos fiscais, o segredo bancário suíço — que continua —, isso tudo permite uma enorme opacidade. Empresas são contratadas para criar estruturas que impedem que os reais donos do dinheiro sejam encontrados em sociedades offshore. Os documentos revelados pelo Panama Papers mostram muito bem isso. Portanto, podemos dizer que as maiores fortunas do mundo e as maiores multinacionais pagam os impostos que querem.

4. E qual a consequência disso?

O fato de que os mais ricos pilham o país e não pagam impostos gera duas situações: esvazia a capacidade social de resposta dos governos e impede a contribuição obrigatória dos países mais ricos às organizações especializadas da ONU que lutam contra a miséria no mundo. Portanto, esse sistema mata. No fundo, essa ditadura do mercado faz com que os cidadãos entendam que não é o governo no qual eles votaram que tem o poder de definir o destino. Isso cria uma insegurança completa e a desigualdade não é controlável. Se não bastasse, o cidadão é informado que seu emprego passa por um período profundo de flexibilização. Na França, há 9 milhões de desempregados, e três quartos dos empregos no setor privado são contratos de duração limitada. Outros milhões vivem de forma precária, como a maioria dos aposentados.

5. Quem são, portanto, os atores que influenciam o destino econômico de um país?

Vou dar um exemplo. As sociedades multinacionais privadas são as verdadeiras donas do mundo. Nos Estados Unidos, sob a administração Obama, foi criada uma lei que proibia o acesso, ao mercado americano, de minerais que tivessem sido extraídos por crianças, principalmente de minas no Congo. O cobalto, por exemplo, foi um deles. Essa lei gerou a mobilização de empresas como Glencore, Rio Tinto e tantas outras. Elas denunciaram que isso era inaceitável, por ser contra a liberdade dos mercados. Uma das primeiras medidas que Donald Trump tomou ao assumir o governo, em janeiro de 2017, foi a de acabar com essa lei. Como esse, existem muitos outros exemplos em meu livro.

6. Em quais setores?

A agricultura é outro. Em 2011, três semanas antes da reunião do G7 em Cannes, o então presidente da França, Nicolas Sarkozy, foi à televisão e declarou que proporia que a especulação nas bolsas e no mercado financeiro fosse proibida, principalmente sobre arroz, milho, trigo e outros produtos agrícolas de base. Seria uma forma de lutar contra o aumento de preços dos alimentos básicos, especialmente nos países mais pobres. Faltando poucos dias para o G7, a França retirou sua proposta, depois de ter sido pressionada pelas grandes empresas do setor, como Unilever, Nestlé e outras.

7. O que isso significa para uma democracia?

É um sistema que priva o cidadão, mesmo numa democracia, de todo tipo de resposta efetiva à precariedade, à desigualdade, que destrói o estado social. É nesse contexto que se cria um desespero silencioso e secreto entre os cidadãos. E, como sempre ocorreu na história e como ocorreu nos anos 30 na Alemanha, é nesse momento que vêm os grupos de extrema-direita com sua estratégia de criar um bode expiatório.

8. De que forma?

O discurso é simples. Eles chegam e declaram ao cidadão: “Sim, sua situação é insuportável. Você tem razão”. Não falam como outros, que tentam dar esperanças ou dizer que as coisas vão melhorar. Mas, num segundo momento, o que fazem? Apresentam um bode expiatório para essa crise. Na Europa, são os imigrantes e os refugiados. A estratégia do bode expiatório tem funcionado. Basta ver os resultados do partido Alternativa para a Alemanha. Hoje, ele tem o mesmo número de representantes no parlamento que o tradicional SPD, o partido social-democrata alemão, de políticos como Willy Brandt. O mesmo ocorreu na Itália, com Matteo Salvini; na Hungria, com Viktor Orbán; na Holanda; na Áustria. Além disso, a consciência coletiva está sendo cimentada por uma ideologia neoliberal de que o homem não é mais o sujeito da história e que apenas pode se adaptar à situação e às forças do mercado, que obedecem às leis naturais.

9. Tal cenário ameaça minar a própria democracia?

Jean-Jacques Rousseau publicou O contrato social , em 1762, que foi a Bíblia para a Revolução Francesa. Ele descreveu a soberania popular e o fato de darmos voz a alguém para nos representar. A delegação é um pilar do contrato social. Mas esse contrato social, que é a fundação da República, está esgotado. A democracia representativa está esgotada. O povo não acredita mais nela. O povo vê que, ao votar em um deputado, não é ele que toma decisões, mas a ditadura mundial das oligarquias do capital financeiro globalizado. Ao mesmo tempo, esse povo não está disposto a abrir mão de seu poder nem de sua capacidade de intervenção. No caso dos coletes amarelos, na França, um dos pontos principais é o apelo por referendos populares como mecanismo. O que eles estão dizendo é: o parlamento faz o que quer. Queremos ter o direito de propor leis, de votar nelas.

10. E quais são as respostas possíveis?

Retirar das consciências essa placa de cimento que foi imposta. Liberar a consciência dos homens, que é, por natureza, uma consciência de identidade. Se um homem, de qualquer classe social ou de qualquer religião, vir diante dele uma criança martirizada, algo de si se afunda. Ele se reconhece imediatamente nela. Somos a única criatura na Terra com essa consciência da identidade. E é por isso que milhões de jovens na Europa e na América do Norte se mobilizam em imensos cortejos, todas as semanas, pela sobrevivência do planeta e contra o capitalismo. O que eles estão dizendo a seus governos? Assim não podemos continuar. Façam algo contra essa ordem canibal do mundo.

11. A questão climática pode ser decisiva nesse contexto para modificar a forma de pensamento?

Pelo Acordo de Paris, cada um dos 190 Estados que o assinaram assumiu obrigações precisas para limitar as emissões de CO2 na atmosfera. Do total de CO2 emitido, 85% vem de energias fósseis. O acordo pede que as cinco maiores empresas de petróleo reduzam 50% de sua emissão até 2030 e deem parte dos lucros ao desenvolvimento de energia alternativas, como solar, eólica e outras. Mas o que é que ocorreu desde 2015? As cinco grandes empresas de petróleo do mundo aumentaram sua produção, em média, em 18%. E financiaram energias alternativas somente em 5%. Os jovens dizem: isso não funcionará.

12. Onde está a esperança?

Na sociedade civil planetária. Na miríade de movimentos sociais — Greenpeace, Anistia Internacional, movimento antirracista, de luta pela terra — que lutam contra a ordem canibal do mundo. São entidades que não obedecem a um comitê central ou a uma linha de partido e que funcionam por um só princípio: o imperativo categórico. Kant dizia: “A desumanidade infligida a um outro humano destrói a humanidade em mim”. Eu sou o outro e o outro sou eu. Essa consciência, em termos políticos, cria uma prática de solidariedade entre os indivíduos e de reciprocidade entre os povos. Mas essa sociedade é invisível. Não tem uma sede. Ela é visível cinco dias por ano, no Fórum Social Mundial, organizado pelos brasileiros em Porto Alegre. O escritor francês George Bernanos escreveu: “Deus não tem mãos que não sejam as nossas”. Ou somos nós que mudaremos essa ordem canibal do mundo, ou ninguém o fará.

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(*) Por Jamil Chade, originalmente para a Revista Época, 31-05-2019