Um pouco de mundo

Werneck nos propõe buscar a porta para o caminho político do Brasil olhando o que se passa no mundo bem agora.

“(...)A política é o lugar próprio para essa descoberta, que já empreende passos promissores em vários países europeus com a valorização dos temas ambientais e das desigualdades sociais, e começa a encontrar espaço entre os democratas americanos que ora se contrapõem, até aqui bem-sucedidos, à reeleição do anacrônico neoliberalismo de Donald Trump. Sobretudo ela é necessária aqui, neste canto do mundo que cedeu ao atraso e abdicou de suas melhores promessas com este governo Bolsonaro que acena com o fascismo e com uma administração tecnocrática nos moldes preconizados por Paulo Guedes, ministro da Fazenda de confissão neoliberal”.

Segue o artigo:

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A muralha e a sua porta*

Luiz Werneck Vianna**

Julho/2020

Aparentemente a atual conjuntura experimenta um tempo homogêneo e vazio em que se reitera o já vivido, como se a sociedade estivesse condenada a movimentos de repetição de suas experiências passadas sem lhe conceder a faculdade de descobrir suas alternativas de futuro. A aceitar esses termos viver-se-ia agora, no Brasil, nas mesmas condições dos idos de 1964 a 85, restando a nós reiterar as práticas bem-sucedidas naquele período. Mas, de fato, nosso tempo nem é homogêneo e nem vazio, pois forças surgidas das entranhas da sociedade capitalista contemporânea brasileira trazem consigo a heterogeneidade e fazem emergir novos sentidos na vida social, alargando a porta estreita de que falava Walter Benjamin pela qual podem entrar as forças da transformação.

Figura do original: IHU

Com efeito, se em boa parte novos processos benfazejos que transcorrem no mundo devem sua aparição à ação do domínio dos fatos como protagonista, outra parte se deve ao plano da consciência do ator que se anima e se inova ao vislumbrar as novas possibilidades que percebe na porta entreaberta que tem diante si. De fato, a intervenção sem freios que a expansão do capitalismo expôs o mundo, desencadeando exponencialmente suas forças produtivas, vem precipitando processos disfuncionais que põe sob ameaça sua própria reprodução, entre os quais os riscos ambientais, como a atual pandemia, que, se não controlados, podem, no pior dos cenários varrer do planeta a nossa espécie ou degradar a herança cultural que ela acumulou em sua jornada de séculos.

A onda neoliberal que tomou conta do mundo a partir dos anos 1970, em sua versão de um capitalismo vitoriano, deixou em sua esteira, como o demonstra incansavelmente o economista Thomas Piketty, um lastro de desigualdades que corrói por dentro a legitimidade do seu modo de produção. Ao lado disso, o legado do colonialismo com que o capitalismo iniciou sua trajetória de triunfos deu como um dos seus frutos amargos a questão do racismo, primeiro pela importação massiva, sob o estatuto da escravidão, de africanos com que se supriu as plantations de mão de obra com que as Américas realizaram sua inserção no mundo do capitalismo, e bem mais tarde, aí já em cenário europeu, com as migrações originárias das antigas colônias, também em grande escala, em busca de oportunidades de vida em sociedades carentes de força de trabalho barata em serviços subalternos.

A entrada em cena do racismo, em especial nos contextos europeus e americanos, como que vieram a sobredeterminar as desigualdades sociais, instalando um sentimento generalizado de que a injustiça se naturalizou na vida social, sentimento particularmente experimentado pelos jovens que se deparam com sociedades adversas à sua participação. O movimento catártico dos jovens em grande número de países, massivo no caso americano, em reação ao bárbaro assassinato de um negro por motivo banal pelas forças policiais, trouxe à luz a existência de uma ainda embrionária sociedade civil mundial e de novos personagens políticos prontos a entrarem em ação.

A atual pandemia que nos assola, por sua vez, acentua o quadro de fim de época que se insinua neste tempo que parece nos ensinar a abandonar as concepções de mundo do utilitarismo que o capitalismo nos impôs para buscar novos caminhos, alguns deles já conhecidos pela longa história humana como os que investiram nos ideais da igual-liberdade, para usar uma forte expressão de E. Balibar.            
A política é o lugar próprio para essa descoberta, que já empreende passos promissores em vários países europeus com a valorização dos temas ambientais e das desigualdades sociais, e começa a encontrar espaço entre os democratas americanos que ora se contrapõem, até aqui bem-sucedidos, à reeleição do anacrônico neoliberalismo de Donald Trump. Sobretudo ela é necessária aqui, neste canto do mundo que cedeu ao atraso e abdicou de suas melhores promessas com este governo Bolsonaro que acena com o fascismo e com uma administração tecnocrática nos moldes preconizados por Paulo Guedes, ministro da Fazenda de confissão neoliberal.

Se Bolsonaro é prisioneiro dos idos do AI 5, a oposição democrática a isso que aí está, não deve ficar retida na sua história de sucessos nos anos 1980, embora deva estar atenta às suas lições. A trama é nova e novos são os personagens, muito particularmente aqueles que surgiram com a auto-organização da vida popular em suas lutas pela vida em meio à catástrofe da pandemia, eles e os seus intelectuais que ganharam estofo nessas lutas, e junto a eles os movimentos de cientistas, de universitários e de intelectuais que a eles se associaram. A política democrática não poderá perdê-los de vista, assim como abrir generosos espaços a esses emergentes setores da esquerda, que, embora ainda imaturos em alguns casos, trazem consigo seiva nova a ser valorizada.

As eleições municipais – eleições, na nossa experiência, consistem em uma forma superior de luta – estão batendo em nossas portas, e aí estará o momento, especialmente se a malfadada pandemia arrefecer para recuperarmos os espaços que fomos coagidos a abandonar. Nessa hora de retomada cumpre alargar, de forma tal que empalideça todas nossas experiências anteriores, uma frente democrática que invista com energia contra as muralhas reacionárias que os desavindos com a nossa história e melhores tradições ergueram para a proteção dos seus privilégios e de suas crenças malévolas.

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(*) Originalmente publicado em IHU - Instituto Humanitas Unisinos, em 22/07/2020

(**) Sociólgo PUC-RJ

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Depois de tudo

FERNANDO SABINO

NOS  ENSINANDO,

ANOS ATRÁS, O QUE

FAZER APÓS A PANDEMIA...

 

DEPOIS DE TUDO


De tudo ficaram três coisas:

A certeza de que estamos

sempre a começar...

A certeza de que é preciso continuar...

A certeza de que podemos ser interrompidos

Antes de terminar.

 

Por isso devemos:

Fazer da interrupção um caminho novo...

Da queda, um passo de dança...

Do medo, uma escada...

Do sonho, uma ponte...

Da procura, um encontro.


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Vida e morte do saneamento básico

Desde há muito se discute a participação dos capitais privados no saneamento básico. Seja na construção das estações e linhas seja na operação das mesmas. A experiência no Brasil é que a construção das estações tem sido feita quase totalmente pelos estados. O capital privado prefere operar as estações e linhas e nisto tem sido, dentro de certos limites, eficiente. Tanto o abastecimento d’água quanto o tratamento de esgotos é muito custoso para a imensidão das populações pobres. Terão condições de pagar? O remuneração dos investimentos e da operação seria atrativa ao capital privado? 

Abaixo Roberto Freire abre uma discussão sobre a participação dos capitais privados no saneamento*.

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 1. Como avalia a aprovação do Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico? Não é um conflito ser de esquerda e aprovar a entrada da iniciativa privada no setor?

De forma alguma. E isso está na história do PCB. Sempre fomos reformistas. Se as circunstâncias mudam, nós mudamos. Não faz sentido no mundo de hoje, descentralizado e interconectado, defender um modelo centralizado no papel do Estado. Não fazia sentido já na década de 1980, faz ainda menos agora. Não podemos ser dogmáticos e não somos. Somos um partido historicamente reformista. Éramos gorbachovianos como PCB, evoluímos como PPS e isso não mudou como Cidadania. Esse modelo está aí há décadas e deixou 100 milhões sem tratamento de esgoto e 35 milhões sem água potável. Há abertura agora para que investimentos privados ajudem a mudar esse quadro. Nada disso vai acontecer da noite para o dia, mas foi dado um passo nessa direção. A alternativa é deixar esses milhões de pessoas sem acesso a esses direitos básicos e à mercê de uma série de doenças que atingem principalmente os mais pobres.

2. A água foi privatizada como querem alguns críticos?

A nova lei não privatiza nem estatiza. Ela estabelece metas e faz cobrança pelos resultados. Cria concorrência. Se a empresa é privada ou estatal, deverá ser cobrada pelo seu serviço. O fato de uma empresa ser estatal não garante que ela serve ao interesse da sociedade. Essa é uma discussão atrasada, ideológica, que vem impedindo o Brasil de avançar. Uma âncora do pensamento. Não importa a cor do gato, desde que cace o rato.

3. Muitos alegam que o momento econômico é ruim e que haveria dificuldades para a realização de investimentos numa área que sempre foi bastante complicada em razão do grande volume de aporte necessário.

Estamos em meio a uma pandemia, com uma crise social e econômica gigantesca, agravada pelo negacionismo e pela irresponsabilidade do presidente Jair Bolsonaro. No momento, difícil realmente ver cenário de investimento produtivo no Brasil. Mas apesar de Bolsonaro, isso vai passar. Sem dúvida, com grande trauma, mas vai passar. E precisaremos estar preparados para o momento seguinte. O projeto é importante por isso, mas é evidente que por si só não resolve nada. Há uma série de condições para atração de investimentos e tudo o que Bolsonaro faz é torná-las mais distantes. Mas, passado esse momento, estados e municípios poderão atuar na contramão do presidente, se lá ele ainda estiver. Terão uma carta na manga numa área tão sensível, mas com grande potencial de mudar a realidade dos brasileiros mais vulneráveis. No Nordeste, por exemplo, somente 28% da população tem esgoto tratado.

4. O senhor vê algum paralelo com a privatização da telefonia no governo FHC? Água não é mercadoria diz quem critica…

É um comentário bastante esdrúxulo, mas aceito a provocação. Poderíamos não ter privatizado a telefonia porque a comunicação é um direito constitucional e pertence ao Estado. Estaríamos hoje com redes obsoletas, internet discada e aparelhos telefônicos como bens de alguns poucos. Essa era a realidade então. E o Estado não tinha os recursos necessários para fazer frente à revolução tecnológica que se impunha. Podemos ficar com a “água estatizada”, um ativo na mão, se querem assim, e continuar alijando de condições mínimas de sobrevivência digna mais de 100 milhões de brasileiros. Muitos desses críticos têm água potável, parte do esgoto tratado – porque o Brasil trata muito pouco –, celular e internet de alta velocidade. Por quê? Porque o Estado pelo Estado funciona para alguns, mas não para quem mais precisa. O Estado brasileiro foi privatizado para o interesse de uns poucos. E não estamos falando, nesse caso do saneamento, de todo poder à iniciativa privada ou todo poder ao Estado, mas de uma parceria no melhor interesse público. Se for preciso ajustar o modelo, que isso seja feito. Do jeito que está é que não pode continuar.

5. O senhor se considera um privatista?

Veja, essa visão é simplista. Certamente não sou mais um estatista, mas é impossível reproduzir a lógica do setor privado no setor público, como querem Paulo Guedes e alguns de sua equipe. Nem o Estado é mais ou menos corrupto do que a iniciativa privada. Muitas vezes, a iniciativa privada, desobrigada de certas limitações corretamente impostas pela legislação ao setor público, poderá ser mais eficiente. Nesse caso, o modelo que está aí não deu conta do recado. E veja que já há empresas públicas, com participação privada e ações na bolsa, como Copasa e Sabesp, então não estamos falando de um modelo puramente estatista. Essas empresas são estatais e têm lucro. Devo muito da mudança de concepção que tenho sobre o papel do Estado ao economista Ignácio Rangel. Ele já fala em concessões à iniciativa privada como meio de financiar a expansão da infraestrutura na década de 1970.

6. O senhor inclusive conduziu alguns processos como Deputados Federal e líder do governo na Câmara…

Já em 1989, como candidato a presidente, defendi as privatizações. Não havia porque falar em setores estratégicos, em inovação, e continuar produzindo aço. Fui líder do governo Itamar Franco na Câmara dos Deputados e vivi essa discussão de perto quando da privatização da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda (RJ), e da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), em Cubatão. Hoje, os países mais avançados discutem robótica e inteligência artificial. É nessas áreas que o Estado tem de focar sua agenda econômica. Até para ter condições de cuidar do social. Enquanto ficamos nesse debate sobre Estado x Privado, uns poucos seguem privatizando lucro e socializando o prejuízo, ficamos parados, perpetuando a desigualdade, e vendo outros países deixarem o Brasil para trás. Falar em privatização da água é desonestidade intelectual. Precisamos superar a queda do muro de Berlim. O modelo de uma economia totalmente planificada foi derrotado, mas uma parte da esquerda está ainda atrás de um muro de Berlim imaginário.

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(*) Entrevista originariamente concedida ao site Cidadania23, publicada em 25 de junho de 2020: 

https://cidadania23.org.br/2020/06/25/freire-votacao-do-novo-marco-regulatorio-do-saneamento-mostra-atraso-da-esquerda-pre-muro-de-berlim/?fbclid=IwAR1KVn1BXu_LZHOm17TG64YyRTBkUCPfAOcEsC6oW5ggypknzsS_H91mn5Y


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