As marcas de nascença (1)

Sergio Gonzaga de Oliveira (*)

Novembro - 2022

Lembrem das avós

Abatidas transtornadas

Lembrem das mães

Exaustas apressadas

Lembrem das filhas

Acuadas desamparadas

Lembrem das irmãs

Grávidas violentadas

Das netas...

Tristes crianças

Assustadas

 


Pensem nas mulheres

No acalanto da vida

No útero ancestral

 

Mas não se esqueçam da violência

Dos abortos clandestinos

Dos cárceres privados

Das esquinas degradadas

Do chão duro das ruas

No frio da madrugada

 

Pensem nas ilusões contidas

Nos empregos, exploradas

Nas filas intermináveis

Nas casas enlameadas

Nas promessas não cumpridas

Nas mortes anunciadas

 

Pensem nos sonhos negados

Na dor dos filhos largados

Na roda dos enjeitados

 

Lembrem dos filhos perdidos

Para a guerra das milícias

Nas batalhas com a polícia

Nas rotas sujas do tráfico

 

Mas não se esqueçam

Não se esqueçam...

Dos lucros nunca taxados

Dos juros inexplicáveis

Das dívidas impagáveis

Marcando a desigualdade

 

Dos olhos que não enxergam

Um sistema alucinado

Fonte de tanta maldade

 

De acordo com a Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE, publicado em 2020 e baseado na PNAD-C de 2019, metade da população brasileira vive com um valor inferior ao de um salário mínimo. Pode-se afirmar que a maioria vive na pobreza ou em seu entorno. Quando se cruzam as informações de raça, gênero e renda os dados são chocantes.  As mulheres negras se destacam entre os mais pobres. Embora sejam 28,7% da população total, são 39,8% entre os muito pobres e 38,1% entre os pobres. As mulheres negras, sem cônjuges, com filhos e filhas menores de 14 anos para criar, são os arranjos familiares que mais sofrem com a desigualdade. Segundo o IBGE, esses grupos concentram a maior incidência de pobreza, sendo 86,4% pobres ou extremamente pobres (2).

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(1) Esses versos têm como inspiração a belíssima estrutura poética de "Rosa de Hiroshima", de Vinícius de Moraes, escrita em 1946. Cometi essa transgressão para me unir aos protestos contra as más condições de vida da maioria das mulheres na sociedade brasileira, especialmente as negras e pobres que mais sofrem com a violência cotidiana. Peço perdão aos amantes da poesia de Vinicius por essa ousadia.

(2) Esses dados foram analisados com mais detalhes no artigo “O nó que não desata” que publiquei neste blog em agosto de 2021.

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(*) Sergio Gonzaga de Oliveira é engenheiro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e economista pela Universidade do Sul de Santa Catarina(UNISUL). Colaborador frequente do blog Democracia e Socialismo.


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Perdendo a oportunidade?

Alfredo Maciel da Silveira*

Novembro/2022

Está se iniciando o debate necessário, incontornável, de uma nova política econômica que concilie crescimento com distribuição de renda, até porque a segunda não existe sem a primeira. No "reformismo neoliberal", iniciado com Meirelles lá no governo Temer, o Estado se retrairia, dando espaço ao capital privado. Daí aquele "Teto de gastos", arriscadíssimo de se tornar uma impossibilidade aritmética. Claro que Meirelles, então ministro propositor do “Teto”, sabia desse risco, caso as reformas neoliberais não se concretizassem.

Jaboticabeira - Coisa nossa...

Passados seis anos de vigência da lei, os chamados “gastos obrigatórios”, que são os de custeio das políticas públicas e da máquina pública, praticamente atingiram 100% do “Teto”, levando praticamente a zero os “gastos discricionários” e sua componente principal, o investimento público!

Dentro daqueles “gastos obrigatórios” destaque-se os da Saúde e Educação.  Eles têm seus respectivos pisos legalmente indexados à receita do governo (respectivamente Arts 198 e 212 da Constituição, e leis subseqüentes). E a receita obviamente cresce com o PIB. Ou seja, ao longo dos anos, enquanto Saúde e Educação no mínimo crescem com o PIB, mantido o “Teto” fixo em termos reais, todos os demais gastos tendem para zero a se obedecer a regra do “Teto”.

Aliás, estava e está prevista na emenda constitucional do “Teto” a sua "revisão" em 10 anos, ou seja, 2026. Claro que vai mudar antes disso.

O Meirelles já deve ter se rendido à aritmética. Sabe que o "Teto" de gastos que inventou, é rigorosamente, numericamente, inviável. Seria então o caso de uma nova “âncora” fiscal? Tal conceito, oriundo da ortodoxia do controle inflacionário, contaminou propositalmente a gestão fiscal, orçamentária, com a gestão macroeconômica, que tem na política fiscal, de forma necessariamente flexível, um de seus instrumentos clássicos.

Há de fato a necessidade de serem criados instrumentos de gestão fiscal, orçamentária, de médio e longo prazos, sob o escopo maior do planejamento. Na prática, seriam desejáveis um ou mais mecanismos institucionalizados de balizamento e controle de itens da despesa pública com vistas à gestão de sua eficiência e produtividade, conjugadas ao crescimento da economia. E isto deverá ser feito sob legislação ordinária, sem precipitações, com negociação ampla, e apoio do empresariado, dos banqueiros, do "mercado", etc.

O “Teto” não se coaduna, nem com a flexibilidade própria da política macroeconômica nem com os instrumentos normatizadores de gestão orçamentária. Tal “nem-nem” constitucional, típica “jaboticaba”, não existe em qualquer outra parte do mundo.

Por que a fizeram?

Meirelles, apoiado por vários economistas ultraliberais, "apostavam" num reformismo neoliberal radical onde o capital privado cuidaria da Educação, da Saúde, da Previdência, dos Investimentos em Infraestrutura, etc. Aí ficava fácil um "Teto" grosseiro que mantém constante ano após ano o total dos gastos federais de custeio e investimento, corrigido apenas pela inflação, ao mesmo tempo liberando as despesas financeiras, basicamente o custo da dívida pública.

Como parte disso continuavam acreditando, ainda em 2016, nos “bons ventos” da “globalização” e da financeirização sem freios do capitalismo, no afluxo “generoso” do capital estrangeiro, desde que criássemos, através da “austeridade” fiscal sinalizada pelo “Teto” e de outras reformas liberalizantes,  o “ambiente de confiança” (como dizia o Meirelles) para os agentes privados. Mas o que estamos a assistir no mundo é um refluxo da “globalização” desregulada, numa crise do capitalismo que ameaça as conquistas democráticas dos povos.

Repare-se finalmente que a taxa de crescimento média da economia ficaria inteiramente ao sabor dos ventos e da miopia do mercado. O governo renunciaria completamente ao investimento público como instrumento indutor e coordenador das decisões dos agentes privados, com vistas à sustentação de um crescimento mínimo, em horizonte temporal previsível, compatível às demandas óbvias do sofrido povo brasileiro. Foi revelador que os cenários de crescimento, da área de “planejamento” da época de Temer, para os quatro anos seguintes, ficassem em torno de pífios 2% ao ano. Em seguida,  Paulo Guedes apregoou esses números, os adotou e, claro,  radicalizou todo aquele neoliberalismo. .

Sintoma claro do impasse causado pelo esgotamento do “Teto” foi a recente declaração precipitada de Lula, desatento à complexidade da questão, em crítica ao que chamou “a tal estabilidade fiscal”. O próprio Lula, noutra passagem do mesmo discurso, recordou a gestão fiscal equilibrada de seus mandatos.

Por linhas tortas, em defesa de Lula, próceres do PT apressaram-se em levantar o verdadeiro problema, que é o de um novo arcabouço institucional e legal para a política econômica. Ou seja, apresentando o "motivo justo" da frase de Lula.

A começar pelo nível técnico, o debate necessário teria tudo pra induzir a convergência de economistas liberais e intervencionistas, num clima de crítica e colaboração, sobre o grau de intervenção do Estado, diante dos desafios objetivos desses novos tempos. Claro que nem todos os liberais aceitariam.  Ou melhor, os mais "ortodoxos" em macroeconomia, numa negociação, teriam que avançar para um consenso. Mas ressalte-se, mesmo entre os liberais declarados, há quem esteja muito à frente do “mainstream” do pensamento macroeconômico ortodoxo, e neste sentido podendo trazer contribuições críticas, férteis e decisivas.

Ao se precipitarem, os próceres petistas embaralharam as cartas, sofismaram, misturando a defesa da frase infeliz de Lula com uma questão político-institucional estratégica, com aquilo que precisa passar por um grande acordo nacional, a ser construído em prazo além da presente legislatura a se encerrar em dezembro próximo.

Agora o ambiente se radicalizou, a desconfiança voltou. O PT e outros optaram por defender atacando, atirando nos “humores do  mercado".

Mas Lula, como é de conhecimento público, está mesmo é de conversa com Trabuco, chefão do Bradesco... O risco é repetir 2003, entregando tudo ao "mercado" (naquela ocasião, com Palocci, Meirelles, etc) e "comprando" os "trezentos picaretas" de sempre (a turma do Orçamento Secreto, etc).

Assim, estamos sob o risco de perdermos a oportunidade de reformas estruturais negociadas, num bloco além da centro-esquerda. Pois a burguesia e a direita democrática – a bem dizer -  detestam crise social.

Com esta crise todos perdemos. Quem ganha é o bolsonarismo.

LEIA TAMBÉM:

Três escudos – analisando o liberalismo econômico no Brasil

Brasil sem planejamento e um futuro já presente

Fadiga do Capitalismo

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(*) Alfredo Maciel da Silveira é Doutor em Economia, IE-UFRJ e MSc. Eng. de Produção, Coppe-UFRJ. É um dos editores deste Blog "Democracia e Socialismo".
Na presente publicação, o autor contou com as valiosíssimas e imprescindíveis críticas e contribuições de Sérgio Gonzaga de Oliveira, assíduo colaborador deste Blog,  e de Sergio Augusto de Moraes, com quem o autor divide a editoria do mesmo Blog.


O que falta para Lula garantir a vitória

Sergio Augusto de Moraes*

Alfredo Maciel da Silveira*

Outubro - 2022

Lula e sua campanha vêm trabalhando duro para vencer as eleições de 30 de outubro próximo. Mas o que vem sendo feito parece não ser suficiente para garantir a vitória.

Todos falam na “frente ampla”. Mas é preciso constituir esta frente, dar-lhe forma, mediante um pacto político entre os principais líderes e personalidades da frente democrática. Faz-se necessário um grande ato público, solene e histórico, em que se proclame à nação o compromisso de constituir tal governo, que tenha um programa mínimo, que poderia englobar:

    1) Cumprir à risca a Constituição de 1988 e garantir o Estado Democrático de Direito;

    2) Tirar o Brasil do Mapa da Fome;

  3) Ampliar os programas de transferência de renda às camadas mais pobres, instituindo a “Renda Básica de Cidadania”;

   4) Equiparação salarial entre homens e mulheres que desempenhem, com currículo equivalente, as mesmas funções;

  5) Avançar nas políticas de resgate das desigualdades raciais, de raízes histórico-estruturais;

   6) Recuperar os compromissos do Brasil com a preservação ambiental e defesa e proteção dos povos indígenas e da floresta.

   7) Promover o desenvolvimento socioeconômico em ritmo sustentado, pactuado com os setores produtivos, e ambientalmente sustentável.

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 (*) Editores deste Blog Democracia e Socialismo


1º ou 2º Turno?

Sergio Augusto de Moraes*

Alfredo Maciel da Silveira*

Setembro - 2022

As pesquisas eleitorais reconhecidamente têm algum efeito significativo na conduta dos eleitores às vésperas das eleições. Em 2018 isto ficou claro com a migração espontânea das intenções de votos em Marina e Alckmin para os dois primeiros colocados nas pesquisas, Haddad e Bolsonaro, podendo ter beneficiado também a Ciro, então terceiro colocado. Nas urnas, conforme o registrado no TSE, Marina e Alckmin a tal ponto “derreteram” que ela foi ultrapassada por Cabo Daciolo, tendo este por sua vez praticamente empatado com Alckmin.

Esse movimento de migração espontânea de votos às vésperas da eleição provavelmente estará operante agora em 2022. Mas há fatos novos. A flagrante ameaça fascista representada por Bolsonaro, tornou-se muito mais ostensiva após os quatro anos da barbárie que vivenciamos. Como resultado, mobilizou-se a sociedade civil organizada em defesa da Democracia, inclusive em torno de entidades de classe patronais lideradas por aquelas do grande capital industrial e financeiro. Ao mesmo tempo, diante das indicações de ser eleitoralmente possível a vitória de Lula já no primeiro turno, uma intelectualidade com presença na grande mídia e principalmente nas redes sociais de internet, em ação coordenada à campanha eleitoral do PT, deflagraram intensa campanha pelo “voto útil” em Lula. A campanha nas redes traz depoimentos de personalidades da cultura e do esporte, apontando a barbárie em que estamos e o fascismo que já está em curso pela violência que espalha o medo no processo eleitoral. As forças democráticas têm que dar um basta a esta violência, não permitindo que ela desvirtue o processo eleitoral.

Há um duplo fundamento racional nesta campanha ativa pelo “voto útil”:

1) Diante das chances mínimas de Ciro e Tebet alcançarem o 2º Turno, é racional o eleitor abrir mão de sua preferência pessoal por esses dois, e de suas críticas ao Lulo-petismo, em prol de uma vitória imediata e mais ampla das forças democráticas contra o inimigo comum a todos, o fascismo e a barbárie, cortando pela raiz as chances de o bolsonarismo militante e armado tumultuar ainda mais uma campanha de 2º Turno;

2)  Uma disputa no 2º Turno, mesmo que as pesquisas estejam a apontar que Lula também venceria, haveria de ser por margem bem menor, de alguns pontos percentuais.

Em qualquer caso, vitória em primeiro ou segundo turnos, Lula precisará compor uma ampla base de alianças para garantir a governabilidade numa conjuntura dificílima de urgente recuperação do país, impondo-nos certamente alívios, mas também sacrifícios. Daí a importância de alianças em torno de compromissos programáticos. E quanto mais cedo melhor.

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(*) Editores deste Blog "Democracia e Socialismo"


NAVIO NEGREIRO

"Se Castro Alves cantasse hoje seu poema "O navio negreiro" em praça pública, como seria? O rapper Slim Rimografia apresenta em livro sua versão musicada do poema que marcou a história da literatura brasileira, por se tornar um ícone da denúncia das injustiças contra os negros. Ilustrado com grafites do Grupo Opni, e acompanhado de textos informativos do professor e doutor José Luis Solazzi, especialista em abolicionismo escravista e movimentos sociais, esta obra revela que a luta contra o preconceito e a defesa da cultura afro-brasileira é responsabilidade de todos nós".(citado conforme TVPandaBooks - YouTube).

Seguem o poema e vídeo.

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Slim Rimografia (MC Valter)

Feliph Neo – Arranjo e Refrão

Agosto - 2022

 (REFRÃO)
Somos sonhos, somos luta
Fomos mão de obra barata
Somos arte, somos cultura
Somos ouro e somos prata
Somos índios, Somos negros
Somos brancos, somos afrodescendentes
Somos raça, somos povo
Somos tribo, somos gente
Somos sonhos, somos luta
Fomos mão de obra barata
Somos arte, somos cultura


Estamos em pleno mar, embarcações de ferro e aço
Onde pessoas disputam palmo a palmo por um espaço
Nesse imenso rio negro de piche e asfalto
Cristo observa tudo calado de braços abertos lá do alto
Onde a lei do silêncio impede que ecoe o grito do morro
Dos poetas em barracos sem forro, que clamam por socorro
Homens de pele escura, sem sobrenome importante
Filhos de reis e rainhas de uma terra tão distante
O mar separa o Brasil da África
Um rio separa as periferias das mansões de magnatas
Uniformes diferenciam funcionários de patrões
A cor denuncia vítimas antigas de explorações
Trazidos em porões e navios negreiros
Tratados como animais, vendidos a fazendeiros
Vivendo em cativeiros
Negociados como mercadoria
Enriquecendo a classe nobre, hoje chamada burguesia
Deixou pra trás dialetos e crença
Caçados, mortos e açoitados quem tentou resistência
Tratados como gado, sem direito à educação
Emudeceram seus tambores, amaldiçoaram sua religião
Alguns morreram de fome, de sede, de frio
Corpo magro, cheio de marcas e o estômago vazio
Me diz: Quem são os heróis e quem são os bandidos?
Quem merece honra, quem merece ser punido?
Quem lutou por liberdade, na história foi esquecido
Sem status, sem monumentos, só barracos foram erguidos



Somos sonhos, somos luta
Fomos mão de obra barata
Somos arte, somos cultura
Somos ouro e somos prata
Somos índios, Somos negros
Somos brancos, somos afrodescendentes
Somos raça, somos povo
Somos tribo, somos gente

Fomos tratados como nada, trazidos como bicho
Oprimidos e usados, dispensados como lixo
Temos muito que mudar, a história não acabou
Por cada vida que por liberdade, como Cristo, se sacrificou
Bisavós cuja a voz foi silenciada
E por nós sua luta não pode ser abandonada
O navio hoje é barca sem vela, só sirene
Navegando na estrada, hoje volante, ontem lemes
O porão é chiqueiro de camburão
Os chicotes e açoites trocados por cacetete e oitão
Senzala virou presídio, Quilombo é favela
Heróis: Malcolm X, Luther King, Zumbi e Mandela
Escravidão ainda existe em cada olhar triste nas esquinas
Nos becos e vielas, nos sonhos em ruínas
No esgoto a céu aberto, na criança desnutrida
Nas mãos que pedem esmola nas ruas e avenidas
Herdeiros da miséria dos escravos trazidos em navios
Soldados do breu em busca do brio
Filhos da pátria amada, idolatrada mãe gentil
Onde tu estavas que tamanha atrocidade não viu

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães
Outras, moças, mas nuas e espantadas
No turbilhão de espectros arrastadas


Somos sonhos, somos luta
Fomos mão de obra barata
Somos arte, somos cultura
Somos ouro e somos prata
Somos índios, Somos negros
Somos brancos, somos afrodescendentes
Somos raça, somos povo
Somos tribo, somos gente
Somos sonhos, somos luta
Fomos mão de obra barata
Somos arte, somos cultura


Tem um pouco de navio negreiro embaixo de cada viaduto
Em cada lágrima derramada, em cada mãe que veste luto
Tem um pouco de navio negreiro em cada mão que pede esmola
Em cada beco e viela, em cada criança longe da escola
Tem um pouco de navio negreiro na viola, no pandeiro
No atabaque, no cordel, na enxada e no tempeiro
Tem um pouco de navio negreiro na igreja, no terreiro
No santo, no orixá, na benzedeira e no obreiro
Tem um pouco de navio negreiro no crucifixo, no patuá
Na mulata, no crioulo e na cumbuca de Munguzá
Tem um pouco de navio negreiro na música, na poesia
Na dança, nas artes e em cada panela vazia
Tem um pouco de navio negreiro no futebol, no carnaval
No azeite de dendê, no acarajé e no código penal
Tem um pouco de navio negreiro no reflexo do espelho
Dos que lutaram e morreram pra não viver de joelho
Tem um pouco de navio negreiro em cada conquista, em cada vitória
Na pele, na memória, no coração, na minha e na sua história
Tem um pouco de navio negreiro


Somos sonhos, somos luta
Fomos mão de obra barata
Somos arte, somos cultura
Somos ouro e somos prata
Somos índios, Somos negros
Somos brancos, somos afrodescendentes
Somos raça, somos povo
Somos tribo, somos gente
Somos sonhos, somos luta
Fomos mão de obra barata
Somos arte, somos cultura

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Democracia Ameaçada - A Sociedade Civil se Mobiliza

NOTA DOS EDITORES:

Às vésperas das eleições, prosseguem no Brasil os ataques e ameaças às Instituições Democráticas. Com o título “Sobre o Momento Político” publicáramos neste Blog em maio último um chamamento à Sociedade Civil em defesa da democracia. Na ocasião declarávamos:

"A defesa da democracia precisa ser clamada, vocalizada, expressa em manifestações públicas, demonstrando o estado de prontidão dos democratas face às flagrantes ameaças atuais às instituições democráticas. Quem cala consente.

É um movimento que precisa caminhar em paralelo ao processo eleitoral, incorporando-o certamente, sem negá-lo, abrangendo os partidos, suas lideranças e candidatos. Mas indo muito além, focado naquilo que a todos une, muito acima dos imediatismos legítimos e normais da disputa eleitoral. Portanto, além da sociedade política, requer o protagonismo da sociedade civil."

Desde então têm-se multiplicado os manifestos da sociedade civil organizada, em marcha que possa vir a mobilizar todas as forças democráticas e as manifestações populares no espaço público.

Realça como exemplo a “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”, lançada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que já se aproxima de 800 mil signatários. Apresentamo-la a seguir, e exortamos a todos assiná-la.

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Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!


Em agosto de 1977, em meio às comemorações do sesquicentenário de fundação dos cursos jurídicos no país, o professor Goffredo da Silva Telles Junior, mestre de todos nós, no território livre do Largo de São Francisco, leu a Carta aos Brasileiros, na qual denunciava a ilegitimidade do então governo militar e o estado de exceção em que vivíamos. Conclamava também o restabelecimento do estado de direito e a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.

A semente plantada rendeu frutos. O Brasil superou a ditadura militar. A Assembleia Nacional Constituinte resgatou a legitimidade de nossas instituições, restabelecendo o estado democrático de direito com a prevalência do respeito aos direitos fundamentais.

Temos os poderes da República, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, todos independentes, autônomos e com o compromisso de respeitar e zelar pela observância do pacto maior, a Constituição Federal.

Sob o manto da Constituição Federal de 1988, prestes a completar seu 34º aniversário, passamos por eleições livres e periódicas, nas quais o debate político sobre os projetos para o país sempre foi democrático, cabendo a decisão final à soberania popular.

A lição de Goffredo está estampada em nossa Constituição “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Nossas eleições com o processo eletrônico de apuração têm servido de exemplo no mundo. Tivemos várias alternâncias de poder com respeito aos resultados das urnas e transição republicana de governo. As urnas eletrônicas revelaram-se seguras e confiáveis, assim como a Justiça Eleitoral.

Nossa democracia cresceu e amadureceu, mas muito ainda há de ser feito. Vivemos em país de profundas desigualdades sociais, com carências em serviços públicos essenciais, como saúde, educação, habitação e segurança pública. Temos muito a caminhar no desenvolvimento das nossas potencialidades econômicas de forma sustentável. O Estado apresenta-se ineficiente diante dos seus inúmeros desafios. Pleitos por maior respeito e igualdade de condições em matéria de raça, gênero e orientação sexual ainda estão longe de ser atendidos com a devida plenitude.

Nos próximos dias, em meio a estes desafios, teremos o início da campanha eleitoral para a renovação dos mandatos dos legislativos e executivos estaduais e federais. Neste momento, deveríamos ter o ápice da democracia com a disputa entre os vários projetos políticos visando convencer o eleitorado da melhor proposta para os rumos do país nos próximos anos.

Ao invés de uma festa cívica, estamos passando por momento de imenso perigo para a normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições.

Ataques infundados e desacompanhados de provas questionam a lisura do processo eleitoral e o estado democrático de direito tão duramente conquistado pela sociedade brasileira. São intoleráveis as ameaças aos demais poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional.

Assistimos recentemente a desvarios autoritários que puseram em risco a secular democracia norte-americana. Lá as tentativas de desestabilizar a democracia e a confiança do povo na lisura das eleições não tiveram êxito, aqui também não terão.

Nossa consciência cívica é muito maior do que imaginam os adversários da democracia. Sabemos deixar ao lado divergências menores em prol de algo muito maior, a defesa da ordem democrática.

Imbuídos do espírito cívico que lastreou a Carta aos Brasileiros de 1977 e reunidos no mesmo território livre do Largo de São Francisco, independentemente da preferência eleitoral ou partidária de cada um, clamamos às brasileiras e brasileiros a ficarem alertas na defesa da democracia e do respeito ao resultado das eleições.

No Brasil atual não há mais espaço para retrocessos autoritários. Ditadura e tortura pertencem ao passado. A solução dos imensos desafios da sociedade brasileira passa necessariamente pelo respeito ao resultado das eleições.

Em vigília cívica contra as tentativas de rupturas, bradamos de forma uníssona:

Estado Democrático de Direito Sempre!!!!

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Para assiná-la acessar o link:

https://www.estadodedireitosempre.com/


Os ovos e o ninho da serpente

Sergio Gonzaga de Oliveira*

Junho/2022


A expressão “ovo da serpente” não é nova. Pelo que se sabe, apareceu pela primeira vez em “Júlio César” de Shakespeare. A peça, provavelmente escrita em 1599, relata o momento em que a incipiente e restrita democracia de Roma estava prestes a sucumbir ao poder imperial de Júlio Cesar. Um grupo de senadores, inconformados com a crescente concentração de poder nas mãos de um ambicioso comandante militar, planejou sua morte em um atentado. Em uma passagem do texto de Shakespeare, Brutus, um dos principais conspiradores, compara Júlio Cesar a “um ovo de serpente que, por sua natureza, uma vez chocado se tornará nocivo; razão pela qual deve ser morto ainda na casca”. Brutus se refere ao mal que causaria à democracia romana a consolidação do poder absoluto de César. Em Shakespeare a referência ao ovo da serpente se dá em um contexto de relações de poder dentro da elite dominante de Roma.

Quase quatro séculos depois, em 1977, Ingmar Bergman usa a expressão de Shakespeare como título de um denso e expressivo filme sobre as fases iniciais da expansão do nazismo na Alemanha, nos anos vinte do século passado. Diferentemente de Shakespeare, em Bergman o contexto econômico e social vivido pelos personagens desempenha um papel relevante. Nos primeiros minutos da película um locutor em off diz: “Um maço de cigarros custa 4 bilhões de marcos e quase todos perderam a fé no futuro e no presente”.  

Com o armistício de 1918, que encerrou as hostilidades da Primeira Guerra Mundial, as principais potências vencedoras impuseram à Alemanha o Tratado de Versalhes assinado em junho de 1919. As reparações de guerra estabelecidas eram tão leoninas que muitos economistas e políticos da época consideraram que seria impossível o seu cumprimento.

No final da guerra a instabilidade em Berlim era tanta que os partidos políticos não puderam se reunir na capital para organizar a vida alemã do pós guerra. Por conta disso, a Assembléia Constituinte se instalou na pequena cidade de Weimar a cerca de 300 km de Berlim e a Constituição foi promulgada em agosto de 1919. Na década seguinte, os elevados pagamentos impostos pelo Tratado de Versalhes, as disputas políticas e as sequelas da guerra tornaram a vida do povo alemão um inferno. Hiperinflação, instabilidade política, fome, miséria e desesperança faziam parte da vida cotidiana.

Bergman retrata bem essa calamidade quando no meio da trama um inspetor de polícia diz:“O câmbio por um dólar é de 5 bilhões de marcos; os franceses ocuparam Ruhr; já pagamos um bilhão em ouro aos britânicos... em Munique Herr Hitler está preparando um golpe de estado com soldados famintos e loucos de uniforme; temos um governo que não sabe para que lado ir; todo mundo tem medo e eu também”.

Como se não bastasse, a crise econômica de 1929, com origem nos EUA, atinge de chofre a Alemanha. A chamada República de Weimar, assolada por dificuldades crescentes, não tem condições mínimas de governabilidade. Nesse contexto um nacionalismo radical conduzido pelo partido nazista de Adolf Hitler, um obscuro ex-sargento do exército, é visto pelo desesperançado povo alemão como a única saída para sua agonia.

Incêndio no Parlamento Alemão em 1933

Até 1928, os nazistas ainda eram minoria no Parlamento alemão. Ocupavam apenas 12 cadeiras. Com a Grande Depressão, em 1930, eles se tornaram o segundo maior partido do país, com 107 cadeiras. Em 1932, já eram a formação política mais popular da Alemanha, com 230 assentos no Parlamento. No rastro dessa ascensão o Presidente Hindenburg, em janeiro de 1933, nomeou Hitler Primeiro Ministro. Nos anos seguintes Hitler desenvolve uma escalada macabra para assumir o poder absoluto e conduzir a Alemanha a um dos maiores desastres da história recente da humanidade. A ascensão do nazismo na Alemanha não é um fenômeno histórico simples, mas os fatos parecem indicar que a degradação econômica e social, bem caracterizada por Bergman, deve ter tido uma contribuição importante para essa tragédia.

Na mesma década, na Itália, um processo semelhante instaura um regime autoritário onde os partidos políticos e sindicatos são postos fora da lei. Em um rastro de instabilidade, destruição pela guerra e ressentimento em relação ao Tratado de Versalhes, os fascistas de Mussolini tomam o poder.

Quase 100 anos depois, os ovos da serpente estão sendo chocados novamente em ambientes cada vez mais favoráveis à sua eclosão. Nas últimas décadas alguns fenômenos políticos, sociais e econômicos vêm jogando lenha nessa fogueira. A globalização, a desastrada resposta neoliberal, a precarização das relações trabalhistas e a perda de poder dos sindicatos vêm promovendo, a partir dos anos 80 do século passado, um aumento expressivo da concentração de renda nos principais países desenvolvidos (1) (2).

No Brasil não é diferente. Nos últimos 40 anos o crescimento da renda per capita não passou de 0,7% ao ano. Um quase nada. Tomando como referência o rendimento domiciliar per capita publicado em 2020 pelo IBGE na Síntese dos Indicadores Sociais (3), verifica-se que metade da população vive com um valor inferior ao de um salário mínimo. Pode-se afirmar que a maioria vive na pobreza ou em seu entorno. É difícil acreditar que os 400 reais do Auxílio Emergencial ou, mesmo, os 1.212 reais de um salário mínimo sejam suficientes para garantir condições adequadas de cidadania para uma pessoa e sua família. Para se ter uma idéia desse disparate basta lembrar que o salário mínimo necessário para o sustento de uma família, calculado pelo DIEESE em março de 2022, é de R$ 6.394,16.

A Ciência Econômica, em grande medida já conhece os caminhos para retirar da miséria e indigência a maior parte da população. Esse roteiro passa por um projeto de reconstrução nacional com desenvolvimento inclusivo e sustentável. O conceito de desenvolvimento estabelece que o crescimento econômico deve ser acompanhado por uma efetiva distribuição de renda, preservação do meio ambiente e desenvolvimento de vários outros aspectos sociais, culturais e políticos que valorizem a vida e o bem estar das comunidades humanas. Em geral o conceito de desenvolvimento está associado à melhoria da qualidade de vida em qualquer desses aspectos. Entretanto é difícil imaginar que se possa retirar da pobreza grande parte da população sem promover o crescimento econômico. Assim, o crescimento econômico constitui um substrato, uma parcela que viabiliza muitos aspectos do desenvolvimento, principalmente daqueles que exigem um nível mínimo de renda e riqueza para que sejam efetivamente realizados. Muitas áreas da atividade humana, como educação e saúde, exigem vultosos gastos para garantir um nível mínimo de cidadania para os indivíduos de uma comunidade.

De forma bem simplificada pode-se dizer que o crescimento econômico se dá quando certas variáveis interagem e evoluem positivamente ao longo do tempo: (i) o investimento (entendido como a criação ou ampliação de unidades de produção), (ii) a educação (no sentido de qualificação e treinamento dos trabalhadores), (iii) a ciência e a tecnologia (como pesquisa e desenvolvimento aplicados à produção) e (iv) a produtividade (medida pelo aumento da produção por unidade de trabalho).

A experiência internacional mostra que as quatro variáveis acima podem ser induzidas ao crescimento pela ação institucional do Estado. As possibilidades de participação do Estado no crescimento econômico induzido são muito amplas e diversificadas. O Estado pode interferir na atividade econômica para acelerar a acumulação de fatores ou para incentivar a ciência e tecnologia em setores estratégicos. Pode aumentar a produtividade ou, ainda, reduzir os efeitos colaterais negativos resultantes da própria lógica do sistema, como a concentração de renda e a concentração do mercado.

Na educação a presença do Estado vai além do aumento da eficiência do sistema. A educação tem uma dupla inserção no processo de desenvolvimento. A educação é a principal responsável pela formação da cidadania. É principalmente através da educação para a cidadania que os indivíduos tomam consciência de seu papel na sociedade. Que adquirem noções claras de seus direitos e deveres perante a lei. Mais do que isso, tornam-se participantes ativos na elaboração das leis, seja por ações diretas, seja na escolha de seus representantes. Já do ponto de vista econômico, a educação aumenta a eficiência e a produtividade da economia; os processos de produção atuais exigem cada vez mais qualificação e treinamento.

A descrição acima, embora limitada, nos mostra quanto o Estado tem papel importante no crescimento econômico induzido, sendo inevitável que o desenvolvimento econômico e social dependa fortemente de sua atuação. Para tal, aumentar a eficiência do próprio Estado pode ser uma medida essencial; trata-se de introduzir reformas nas instituições existentes de forma que elas cumpram suas finalidades com menores prazos, maior qualidade e menores custos. Alguns dos grandes problemas derivados da relação umbilical entre o crescimento econômico e o Estado é que nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento as instituições públicas são precárias. Devido à insuficiente qualificação da força de trabalho e à baixa intensidade tecnológica dos métodos e processos utilizados, essas instituições, em geral, ficam muito aquém da necessidade. Romper esse círculo vicioso, onde instituições estruturalmente ineficientes devem planejar e dirigir o aumento de sua própria eficiência e, além disso, planejar e dirigir o processo de desenvolvimento econômico de todo o país, não é uma tarefa simples. Entretanto não é impossível, já que muitos países, outrora periféricos, conseguiram nas últimas décadas alcançar o nível de desenvolvimento dos países precursores. Outros estão a caminho, como a China, Índia e Vietnã.

O desenvolvimento induzido e acelerado pelo Estado exige planejamento, coordenação e execução de políticas públicas de longo prazo. No Brasil, a pulverização e baixa representatividade dos partidos políticos, associada à perda de poder do Presidente da República perante o Congresso Nacional, parece ser a principal fonte da crescente instabilidade política verificada nos últimos tempos. É preciso lembrar que a economia, principalmente a economia do desenvolvimento, depende fortemente do contexto político e das instituições que o cercam. Por conta disso é desejável construir alianças políticas baseadas em estruturas de governança mais estáveis, com partidos mais bem estruturados, que possibilitem acordos pró-desenvolvimento com maior permanência ao longo do tempo. Se isso é verdade, a reforma política deveria estar entre os primeiros passos dessa longa caminhada (4).

Como disse Tarso Genro em recente artigo:“(...)matar a fome, dar segurança e educação ao povo, para reavivar as dimensões civilizatórias(...)será o seguro histórico da política antifascista bem-sucedida e da revalorização da democracia verdadeira pelo povo exasperado” (5).

Em nosso país, o embate eleitoral que se aproxima é certamente mais uma etapa de uma longa jornada para derrotar os grupos fascistas que estão sempre à espreita. O fascismo como movimento político de massa não é um fenômeno abstrato. Não surge do nada. Os grupos fascistas sempre existiram. Expandem-se quando encontram condições econômicas e sociais deterioradas. Os fascistas sempre souberam tirar proveito da propaganda. Os da atualidade têm utilizado com competência as redes sociais para difundir suas obscuras teorias, suas falsas promessas e sua política de ódio. Mas não nos iludamos. Não é a propaganda em si que os leva ao poder. Bergman em seu filme relembra a lição da História: as más condições de vida da população formam um substrato onde, não poucas vezes, a serpente cria e recria os seus ovos.

LEIA TAMBÉM: O mal-estar na civilização em tempos de pandemia

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(1) Piketty, Thomas, O Capital no Século XXI, 1ª edição, Editora Intrínseca, Rio de Janeiro, 2011

(2) Jordà, Òscar et al., The Rate of Return on Everything, 1870-2015, The Quarterly Journal of Economics, Universidade de Oxford, agosto de 2019.

(3) Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira, Coordenação de População e Indicadores Sociais, IBGE, Rio de Janeiro, 2020.

(4) Oliveira, Sergio Gonzaga, A Mãe de Todas as Reformas, Rio de Janeiro, novembro de 2021

(5) Genro, Tarso, A Democracia como Forma e Conteúdo,  Rio de Janeiro, abril de 2022

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(*) Sergio Gonzaga de Oliveira é engenheiro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e economista pela Universidade do Sul de Santa Catarina(UNISUL). É colaborador frequente do blog Democracia e Socialismo, onde tem destacado a importância dos desafios para a retomada do desenvolvimento de longo prazo no Brasil.


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Sobre o Momento Político

Sergio Augusto de Moraes*

Alfredo Maciel da Silveira*

Maio/2022

Os obstáculos para unir os democratas são muitos. Mas nem por isto escasseiam as críticas, muitas delas negativistas, à incapacidade dos partidos políticos do campo da democracia realizarem tal objetivo.

Não é de estranhar. Na medida em que os partidos e, porque não dizer, também os eleitores, deixaram de valorizar os programas partidários e a só olharem para o imediato, absolutizando o resultado eleitoral, a colocação da democracia como valor estratégico fica mais difícil.

Mas nas condições políticas do Brasil, com um governo que tem como objetivo permanente a destruição dos poucos pilares de nossa democracia, a tarefa de unir os democratas torna-se premente.

Há pouco foi entregue ao Ministro Fachin um manifesto assinado por alguns líderes da sociedade civil em defesa do atual sistema eleitoral com urnas eletrônicas, e da democracia. Isto é um passo importante. Mas não o bastante para o momento atual.

É necessária a intervenção de uma força política que entenda a democracia como valor estratégico, e que veja as divergências e conflitos entre os atuais partidos políticos como algo natural, sem colocá-los como obstáculo ao objetivo maior de garantir nossa democracia.

A defesa da democracia precisa ser clamada, vocalizada, expressa em manifestações públicas, demonstrando o estado de prontidão dos democratas face às flagrantes ameaças atuais às instituições democráticas. Quem cala consente.

É um movimento que precisa caminhar em paralelo ao processo eleitoral, incorporando-o certamente, sem negá-lo, abrangendo os partidos, suas lideranças e candidatos. Mas indo muito além, focado naquilo que a todos une, muito acima dos imediatismos legítimos e normais da disputa eleitoral. Portanto, além da sociedade política, requer o protagonismo da sociedade civil.

No Brasil já existem embriões de tal força. Um deles está nas personalidades que assinaram o manifesto acima mencionado entregue ao Ministro Fachin.

Como dar o primeiro passo?

Faz-se necessário que alguns democratas de prestígio político costurem as afinidades existentes, dando um primeiro passo para forjar um instrumento tão necessário para o povo brasileiro.

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(*) Editores deste Blog Democracia e Socialismo.

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Cenário Econômico, Financeiro e Empresarial Global e a volta da estagflação na economia brasileira

Em artigo inédito, o Prof. Durval Meirelles apresenta-nos uma análise objetiva do cenário econômico, financeiro e social com o qual o país poderá se defrontar em 2023, qualquer que venha a ser o próximo governo. Analisa o contexto das mudanças estruturais - tecnológicas, financeiras e informacionais - em curso na economia mundial, sobrepostas pelas incertezas trazidas pela pandemia e pela guerra, condicionando o nosso já conturbado panorama político interno.

Segue o artigo.

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O Cenário Econômico, Financeiro e Empresarial Global e a Volta da Estagflação na Economia Brasileira

Durval Correa Meirelles*

Maio/ 2022

O ambiente empresarial global tem apresentado grandes transformações nos últimos anos, influenciadas, de um lado, pelo grande avanço tecnológico e pela integração comercial provocada pela globalização, e por outro, pelas novas técnicas de gestão empresarial. Estes fatos proporcionam inovações tanto em produtos quanto em processos, como na forma de governança nas empresas.

Em função disso, e aliado a pandemia e a incerteza gerada pelo conflito armado entre Rússia e Ucrânia, a economia global recente apresenta oscilações adaptativas, ora com crescimento ora com declínio econômico. Esse contínuo processo de ajustes tem provocado um aumento do desemprego em todo o planeta. Isto ocorre pela utilização de forma massiva das novas tecnologias pelas empresas, como por exemplo, a substituição dos meios de produção por robôs ou softwares inteligentes[1], ou mesmo pela transformação dos novos modelos de negócios digitais.

Capitalismo Financeiro Global - Fonte:  MundoEducação-UOL

Por outro lado, a diminuição da oferta de emprego também ocorre pelo crescimento da concentração e centralização do capital nos processos de fusões e aquisições, pela crescente financeirização da economia e ainda, pela flexibilização nas relações de trabalho. Alguns autores vêm chamando a atenção do público que poderia estar ocorrendo uma grande acumulação de capital, sobretudo no mercado financeiro, demonstrando que a nova arquitetura do capitalismo global estaria caminhando para uma junção da economia digital com o capital aplicado no mercado financeiro global, integrantes da grande transformação em curso para um “capitalismo da informação” [2].

Segundo o Banco de Compensações Internacionais (BIS) existiriam aplicados no mercado financeiro global em 2021, aproximadamente 700 trilhões de dólares, divididos em títulos públicos, títulos privados, derivativos etc, enquanto o valor do PIB mundial representaria cerca de 85 trilhões de dólares.

Neste contexto, as grandes, médias ou microempresas precisam cada vez mais investir em conhecimento e inovação, até mesmo como meio de crescimento e sobrevivência, enquanto o homem, força de trabalho, se prepara constantemente investindo no aprendizado contínuo e no comportamento empreendedor.

Nesse cenário de grandes mudanças e incertezas, a economia brasileira vem apresentando baixo crescimento econômico, principalmente pela falta de políticas públicas coerentes com esse novo panorama econômico, e pela falta de um planejamento adequado às novas condições tecnológicas e financeiras globais citadas acima. Apesar desse ambiente trazer grandes oscilações e volatilidade financeira, o país já vinha apresentando essas instabilidades, mesmo antes da pandemia e do conflito armado no leste europeu.

A inflação vem subindo de forma contínua no país, apesar do esforço do Banco Central do Brasil em conter a inflação, que subiu muito nos últimos meses, decorrente do choque de preços das commodities, em especial energia, combustíveis e alimentos. No entanto, devido a uma política macroeconômica falha no campo fiscal[3], há alguns anos, a saída tem sido aumentar continuamente os juros e administrar o câmbio, fato que tem gerado aumento no spread bancário brasileiro para empréstimos, e a subida do percentual dívida pública/PIB, além de maior volatilidade [oscilação] cambial.

O peso da dívida pública no PIB, conforme pode ser observado no gráfico acima, vem subindo muito e, no limite, se nada for feito em relação ao crescimento descontrolado dos gastos públicos, como por exemplo as reformas administrativa e tributária, sua tendência é a de chegar em 100 % do PIB em 2023. Diga-se que no Orçamento da União de aproximadamente 4,8 trilhões de reais, as despesas primárias (pessoal, previdência, outras despesas correntes e de investimento), montam a 1,8 trilhões, enquanto as despesas financeiras, fortemente impactadas pela taxa de juros, montam a 3 trilhões de reais, constituindo portanto o grosso da despesa sob a qual não há nenhum limitador ou “Teto”. Enquanto se espera que aquelas despesas primárias venham a ter, mediante reformas, uma contrapartida de serviços mais eficientes à população, estas despesas financeiras constituem uma perversa transferência de renda a grupos privilegiados, agravando as desigualdades sociais.

O gráfico abaixo mostra a volatilidade [oscilações de grande amplitude] do Real em 2021 e que continua em 2022, com sucessivos movimentos especulativos internos e externos na bolsa de valores e no câmbio, o que gera mais incerteza e imprevisibilidade no cenário econômico, financeiro e empresarial nacional.

 

Para piorar o quadro recente, historicamente o país apresenta um dos maiores spreads bancários globais, em parte devido à falta de educação financeira por parte da população e certamente pela grande concentração de crédito em apenas em apenas cinco instituições financeiras, que detém 90% de todo crédito que é dado as famílias e empresas brasileiras.

O resultado deste quadro revela a existência de sessenta milhões de pessoas físicas inadimplentes no Brasil, segundo o SPC/Serasa, e seis milhões de micro e pequenas empresas endividadas, agravando em muito a situação econômica, social e financeira das famílias e empresas brasileiras, especialmente as micro e pequenas empresas que mais geram emprego na economia.

Conclui-se então que o cenário global continuará imprevisível e conturbado, seja pela continuação do conflito no leste europeu, ou pelos movimentos especulativos no mercado financeiro, ou ainda pelos resquícios da pandemia.

Neste contexto em que reina a incerteza, os governos e Bancos Centrais - como acaba de se ver agora nos EUA - deverão adotar uma política mais restritiva, principalmente no campo monetário, com juros altos para combater a inflação, sem dar um olhar mais profundo para a política fiscal, que de fato vem reduzindo o poder dos investimentos públicos sem que os governos consigam substituí-lo por aquele capital fictício incessantemente acumulado nos mercados financeiros.

Assim sendo as empresas, para sobreviverem neste panorama difícil, continuarão a investir em novas tecnologias e na preparação de um bom planejamento financeiro, por meio de corte de custos e aumento da produtividade, o que pode gerar, no limite, uma conjuntura de tendência recessiva, com baixo crescimento e elevação da taxa de desemprego global.

Para concluir. No campo doméstico, além do conturbado panorama político, aliado a uma conjuntura econômica previsível de baixo crescimento do PIB brasileiro neste ano, cerca de 1%, pode-se especular que ocorra um novo quadro de estagnação econômica com inflação [estagflação], com queda de receitas públicas, agravando o quadro fiscal, e a continuidade da adoção de políticas mais restritivas pelo BACEN, no campo monetário. Desta forma o cenário deixado para o próximo governo, que se aproxima em 2023, poderá ser dramático nos campos econômico, financeiro e social.

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[1] Ver a propósito neste Blog "Supervalorização e demonização da Inteligência Artificial". 

[2] O conceito de “Capitalismo da Informação”, originariamente de Tessa Morris Suzuki, é exposto na resenha sobre as pesquisas seminais daquela autora, na publicação “Seu emprego está ameaçado?”, deste Blog. 

[3] No contexto da pandemia, ver “O sadismo intelectual do ajuste fiscal”, neste Blog. 

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(*) Durval Correa Meirelles é Doutor em Ciências Sociais - CPDA/UFRRJ, MSc em Administração Pública - EBAPE/FGV, com graduações em Administração - UNISUL e em Economia - UNESA. Professor de Gestão e Economia da Universidade Veiga de Almeida, Professor Visitante do Instituto de Profissionalização Digital e Consultor em Gestão Educacional.


LEIA TAMBÉM: O mal-estar na civilização em tempos de pandemia.

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Guerra na Ucrânia

A abominável guerra na Ucrânia continua.

No Ocidente, a propaganda comandada pelos EUA coloca toda a responsabilidade nas costas da Rússia. Mas os EUA também contribuíram para esta guerra.

Tem valor no mínimo simbólico o fato de as atuais negociações presenciais diretas entre Ucrânia e Rússia se darem ao abrigo e protagonismo da Turquia. Um país do Oriente, não do Ocidente. 

Rodada de conversas entre delegações da Rússia e da Ucrânia em Istambul na terça-feira Foto: Conversações russo-ucranianas em Istambul / 29 de março de 2022 – O Globo

O texto de David Harvey, abaixo, nos ajuda a ver os diferentes lados desta questão e entender os caminhos da negociação para terminar com o flagelo.

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Sobre os recentes desenvolvimentos na Ucrânia*

Por David Harvey**

Março - 2022

Submeter-se às leis coercitivas da concorrência, tanto entre empresas capitalistas quanto entre blocos de poder geopolítico, é uma receita para mais desastres, mesmo que o grande capital continue a ver esta escalada, infelizmente, como uma nova avenida para a infinita acumulação de capital no futuro. (D. Harvey)

O que acontece na Ucrânia é, em muitos aspectos, o resultado dos vários processos envolvidos na dissolução do chamado “comunismo real” e do regime soviético.

A eclosão de uma guerra total após a invasão russa da Ucrânia marca um ponto de inflexão dramático na ordem mundial. E como tal, não deve ser ignorado pelos geógrafos reunidos hoje (ainda, infelizmente, através do Zoom) em nossa reunião anual. Portanto, proponho as seguintes observações não-especialistas como base para discussão.

Há um mito de que a paz reina no mundo desde 1945 e que a ordem mundial que emergiu da hegemonia estadunidense serviu, em grande medida, para conter os impulsos bélicos entre os Estados capitalistas que historicamente competiram entre si. Entende-se que a competição entre os Estados europeus que causaram as duas guerras mundiais foi geralmente contida e que a Alemanha Ocidental e o Japão foram pacificamente reincorporados no sistema mundial capitalista, em parte também para combater a ameaça do comunismo soviético.

Assim, a fim de mitigar a concorrência, foram criadas na Europa instituições colaborativas como o mercado comum, a União Europeia, a OTAN e o euro. Sabemos, no entanto, que desde 1945 houve múltiplas guerras “quentes”, tanto civis como entre Estados, começando com as guerras da Coreia e do Vietnã e continuando com os conflitos na Iugoslávia e o bombardeio da Sérvia pela OTAN, as duas guerras contra o Iraque (uma das quais foi justificada pelas mentiras gritantes dos Estados Unidos sobre a posse de armas de destruição em massa no Iraque), ou as guerras no Iêmen, Líbia e Síria.

Até 1991, a ordem mundial era mais ou menos constantemente colocada contra o pano de fundo da Guerra Fria. Era uma estrutura que as empresas estadunidenses muitas vezes exploravam a seu favor, constituindo o que Eisenhower definiu na época como o “complexo industrial militar”. O cultivo do medo, tanto fictício quanto real, dos soviéticos e do comunismo foi um elemento-chave desta política.

E suas consequências econômicas foram ondas recorrentes de inovação tecnológica e organizacional em termos de armamentos e infraestrutura militar. É verdade que estas tecnologias foram, em grande medida, também benéficas para a esfera civil, como no caso da aviação, o desenvolvimento da Internet ou da energia nuclear, e contribuíram muito para sustentar uma infinita acumulação de capital e a centralização do poder capitalista em relação a um mercado cada vez mais cativo.

Além disso, em tempos de dificuldades econômicas, o recurso ao “keynesianismo militar” tornou-se um desvio recorrente da ortodoxia neoliberal que desde os anos 1970 começou a ser administrada às populações, mesmo dos países capitalistas avançados. Ronald Reagan recorreu ao keynesianismo militar para orquestrar uma nova corrida armamentista contra a União Soviética nos anos 80 que ajudou a pôr fim à Guerra Fria, ao mesmo tempo em que distorcia as economias dos dois países.

Antes de Reagan, a taxa máxima de impostos nos EUA nunca estava abaixo de 70%, enquanto que depois de Reagan a taxa nunca ultrapassou 40%, limitando-se à persistente alegação de que os altos impostos asfixiam o crescimento econômico. A crescente militarização da economia dos Estados Unidos depois de 1945 foi acompanhada por uma maior desigualdade econômica e pela formação de uma oligarquia dominante tanto nos Estados Unidos quanto em outros lugares, incluindo a Rússia.

A dificuldade enfrentada pelas elites políticas ocidentais em situações como a atual na Ucrânia é que crises urgentes e problemas de curto prazo não podem ser resolvidos de forma a acentuar as próprias raízes subjacentes aos conflitos. É verdade que, mesmo sabendo que as pessoas inseguras muitas vezes reagem com violência, não podemos confrontar alguém que vem com uma faca simplesmente usando palavras calmantes para acalmar suas inseguranças.

Mesmo assim, é preferível tentar desarmar o atacante sem, por sua vez, fomentar essas inseguranças. Nosso objetivo hoje deve ser, portanto, lançar as bases para uma ordem mundial pacífica, colaborativa e desmilitarizada, enquanto limita urgentemente o terror, a destruição e a perda irresponsável de vidas que esta invasão trará.

O que estamos testemunhando na Ucrânia é, em muitos aspectos, o resultado dos vários processos envolvidos na dissolução do chamado “comunismo real” e do regime soviético. Com o fim da Guerra Fria vieram promessas ao povo russo de um futuro brilhante no qual os benefícios do dinamismo capitalista e de uma economia liberalizada se derramariam sobre todos os setores da sociedade. A realidade, no entanto, era diferente. O sociólogo Boris Kagarlitsky disse, no final da Guerra Fria, que os russos pensavam que estavam embarcando num avião para Paris, mas no meio do vôo lhes foi dito: “Bem-vindos a Burkina Faso”.

Depois de 1991, ao contrário do Japão e da Alemanha Ocidental em 1945, não houve nenhuma tentativa de trazer o povo e a economia russa para o sistema global. Seguindo as orientações do FMI e dos principais economistas ocidentais (como Jeffrey Sachs), a doutrina do choque neoliberal foi adotada como a fórmula mágica para a transição. E quando isto falhou miseravelmente, as elites ocidentais recorreram ao velho discurso neoliberal de culpar as vítimas, responsabilizando o povo russo por não ter sido capaz de desenvolver adequadamente seu capital humano e desmantelar os muitos impedimentos endêmicos ao empreendedorismo individual (culpando tacitamente a própria Rússia pela rápida ascensão dos oligarcas). Internamente, os resultados na Rússia foram desastrosos.

O PIB despencou, o rublo deixou de ser uma moeda viável (o dinheiro até foi medido em garrafas de vodka), a expectativa de vida despencou, a posição social das mulheres piorou, as instituições governamentais e o Estado social soviético entrou em colapso. Também consolidou uma política mafiosa liderada pelo novo poder oligárquico cuja rubrica era a crise da dívida de 1998, da qual, dizia-se, a única saída era mendigar migalhas da mesa dos ricos e submeter-se à ditadura econômica do FMI. Com exceção dos oligarcas, a humilhação econômica do povo russo foi total. Para limitar tudo isso, a União Soviética desmembrou-se em repúblicas independentes constituídas de cima para baixo, sem muito envolvimento popular.

Dentro de dois ou três anos, a Rússia sofreu uma redução dramática na população e na economia, bem como uma destruição de sua base industrial que, em termos proporcionais, foi ainda maior do que aquela sofrida nas antigas regiões industriais dos Estados Unidos durante os quarenta anos anteriores. Estamos bem conscientes das consequências sociais, políticas e econômicas da desindustrialização da Pensilvânia, Ohio e do meio-oeste americano, desde a atual epidemia de opioides até o surgimento de ondas políticas reacionárias, como o apoio ao supremacismo branco ou o fenômeno Donald Trump. Mas enquanto o Ocidente se baseava em um suposto “fim da história” imposto pelos capitalistas, o impacto da terapia de choque na vida política, cultural e econômica russa era muito mais dramático.

Depois há a questão da OTAN. Originalmente concebida em termos de defesa e colaboração interestatal, logo se tornou uma organização pró-guerra dedicada a conter a disseminação do comunismo e impedir a competição entre os estados da Europa Ocidental de entrar no reino militar. Em geral, é verdade que ajudou a mitigar a concorrência interna na Europa, embora a Grécia e a Turquia nunca tenham sido capazes de resolver suas diferenças sobre o Chipre. Mas na prática, a União Europeia foi muito mais útil do que a OTAN e, após o colapso da União Soviética, seu principal objetivo se desvaneceu.

A perspectiva da população estadunidense se beneficiar de um “dividendo de paz” resultante de cortes profundos nos gastos de defesa surgiu como uma ameaça real ao complexo industrial militar. Talvez por esta razão, o intervencionismo da OTAN (que sempre esteve presente) se tornou mais evidente durante os anos Clinton, em grande parte quebrando as promessas verbais feitas a Gorbachev [por George Bush pai, Nota nossa] nos primeiros dias da perestroika. Um exemplo claro disto foi o bombardeio da OTAN liderado pelos EUA em Belgrado em 1999, onde até mesmo a embaixada chinesa foi atingida (embora intencionalmente ou acidentalmente permaneça pouco clara).

Tanto o bombardeio da Sérvia quanto outras intervenções nas quais os EUA violaram a soberania dos Estados-nação mais fracos são evocados por Putin como precedentes para suas ações. A expansão da OTAN até a fronteira da Rússia, numa época em que não havia ameaça militar, foi mesmo discutida por Donald Trump, que chegou ao ponto de questionar a própria existência da organização atlântica. Mesmo o comentarista conservador Thomas Friedman chegou ao ponto de culpar os EUA em uma recente coluna no New York Times pelos últimos desenvolvimentos, dada a abordagem agressiva e provocadora em relação à Rússia.

Durante os anos 1990, parecia que a OTAN era uma aliança militar em busca de um inimigo. Agora Putin satisfez este desejo após ter sido suficientemente provocado e seu ressentimento está em parte enraizado nas humilhações econômicas do Ocidente e na arrogância desdenhosa em relação à Rússia e seu lugar na ordem mundial. As elites políticas americanas e ocidentais deveriam ter percebido que a humilhação é uma ferramenta desastrosa quando se trata de política externa, cujos efeitos são muitas vezes duradouros e catastróficos.

A humilhação da Alemanha em Versalhes desempenhou um papel crucial na escalada que precedeu a Segunda Guerra Mundial. As elites políticas evitaram repetir o mesmo erro com a Alemanha Ocidental e o Japão após 1945 através do Plano Marshall, mas voltaram à estratégia catastrófica de humilhar a Rússia (tanto explícita como implicitamente) após o fim da Guerra Fria. A Rússia precisava e merecia um Plano Marshall, mas recebeu as lições paternalistas da bondade do neoliberalismo que caracterizou os anos 1990.

Também o século e meio de humilhação imperialista ocidental da China, que pode ser traçado desde as ocupações japonesas dos anos 30 e o infame Massacre de Nanjing, está desempenhando um papel central na geopolítica contemporânea. A lição é simples: se você quer humilhar, faça-o por sua conta e risco, porque os humilhados podem se revoltar e, por que não, morder de volta.

Nada disso justifica as ações de Vladimir Putin, mais de quarenta anos de desindustrialização e punição neoliberal dos trabalhadores não justifica as ações ou posições de Donald Trump. Mas o ataque de Putin à Ucrânia não justifica a ressurreição de instituições belicistas como a OTAN, que tanto fizeram para criar o problema. Assim como a competição entre Estados europeus teve que ser desmilitarizada depois de 1945, hoje devemos procurar frear as corridas de armas entre blocos e fomentar instituições fortes de colaboração e cooperação. Submeter-se às leis coercitivas da concorrência, tanto entre empresas capitalistas quanto entre blocos de poder geopolítico, é uma receita para mais desastres, mesmo que o grande capital continue a ver esta escalada, infelizmente, como uma nova avenida para a infinita acumulação de capital no futuro.

O perigo em um momento como este é que o menor erro de julgamento de qualquer dos lados poderia facilmente levar a uma escalada em um grande confronto entre potências nucleares, no qual a Rússia consegue fazer frente à superioridade militar até então esmagadora dos EUA. O mundo unipolar no qual as elites americanas viveram durante os anos 1990 já foi substituído por um mundo bipolar, mas muito mais ainda está mudando.

Em 15 de fevereiro de 2003, milhões de pessoas ao redor do mundo saíram às ruas para protestar contra a ameaça de guerra, no que até o The New York Times reconheceu como uma expressão marcante da opinião pública mundial. Infelizmente, os protestos fracassaram e o que se seguiu foram duas décadas de guerras destrutivas e ruinosas em muitas partes do mundo. É claro que o povo da Ucrânia não quer guerra, nem os russos e europeus querem guerra, nem os povos da América do Norte querem outra guerra. O movimento popular pela paz precisa ser reavivado e reafirmado. Os povos do mundo devem afirmar seu direito de participar da criação de uma nova ordem mundial baseada na paz, cooperação e colaboração, em vez de competição, coerção, conflito e ressentimento.

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(*)Discurso na reunião anual da Associação de Geógrafos Americanos, 27 de fevereiro de 2022. Publica-se em português conforme o site A Terra é redonda , de 07/03/2022. Originalmente publicado em inglês no Focaalblog .

(**)David Harvey é professor na City University of New York. Autor, entre outros livros, de O novo imperialismo (Loyola).

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