Sérgio Abranches
Junho - 2020*
Há sinais de que vários setores
do campo democrático, em um amplo espectro ideológico, têm conversado sobre a
formação de uma frente plural contra o avanço autoritário de Bolsonaro. São
iniciativas importantes. Há muita incompreensão e ressentimento fechando
possibilidades de uma frente que inclua todos os setores. Em geral, são pessoas
e lideranças que se consideram democráticas, desde que não tenham que exercer
um mínimo de tolerância em relação à posição de lideranças e grupos de campos
ideológicos distintos. É um equívoco e uma demonstração de autoritarismo.
Sérgio Abranches é cientista político e sociólogo. Foto: Wilton Junior |
O equívoco está em imaginar que
frentes, como a Frente Ampla de 1966, ou a frente pelas Diretas Já, no Brasil,
o Pacto de Moncloa que democratizou a Espanha, ou a Concertación que restaurou
a democracia chilena, se formam por cooptação. Não. Elas se formam por escolha
de cada parceiro em passar por cima de diferenças e desavenças e começar a
conversar com os adversários tradicionais. Se fosse por cooptação — convite ou
convocação — não seriam frentes, nem plurais, nem democráticas. O primeiro
movimento é aceitar os outros como parceiros, com todas as restrições do
passado. O segundo, é conversar com todos os setores democráticos sobre os
objetivos específicos da frente e sobre uma agenda mínima, que todos possam
apoiar. Significa reservar as ideologias e as questões específicas de cada
campo, para o momento posterior, quando a frente tenha alcançado seus
objetivos. Toda frente é limitada no tempo e na agenda e envolve parceiros
autolimitados para se enquadrar no limite do acordo contra a ameaça comum. O
terceiro passo é o diálogo interno a cada campo, para ampliar a convicção dos
companheiros e obter o comprometimento geral com a iniciativa. Liderança é
testada, exatamente, quando tem que sacrificar provisoriamente determinadas
convicções e ressentimentos de embates passados, diante de uma ameaça
existencial, e atravessar pontes entre campos hostis.
Tenho visto reações apequenadas
à possibilidade de uma frente. Seja porque só admitem uma frente de esquerda,
seja porque não admitem aceitar como interlocutores antigos adversários. Uma
reunião de setores da esquerda não é frente, é aliança de grupos ou facções de
um mesmo campo ideológico ou de campos adjacentes. Frente é com os outros
campos. Ela se baseia no reconhecimento das especificidades da conjuntura e na
identificação da contradição principal que está a mover o processo político. Há
várias versões da contradição principal, que conduzem à possibilidade de uma
frente. Para mim, parece evidente que a espinha dorsal da conjuntura de crise
atual é a oposição civilização versus barbárie, ou neofascismo versus
democracia republicana. As causas das rupturas no processo político-democrático
podem variar drasticamente, dependendo de cada ponto de vista. O que fazer, uma
vez vencida a ameaça autoritária, também dependerá da competição abertas em
disputas eleitorais justas entre as várias propostas. Logo, o passado e o
futuro do futuro não podem entrar em cogitação nas negociações de uma frente,
porque dividem. É bom que dividam e é importante que continuem a dividir. O que
se discute na formação de uma frente é a identificação do inimigo principal e
comum. O que fazer no presente e no futuro imediato, que coincidirá com o
restabelecimento das plenas condições de convívio democrático e competitivo.
Há uma dose de grandeza de
todas as partes na negociação de uma frente. Todas têm que superar feridas
abertas nos embates que tiveram entre si no passado recente. Alguns bastante
duros e que deixaram feridas profundas. Todas têm que abrir mão de suas visões
e demandas, para desenhar uma agenda comum de transição entre uma conjuntura
que nos ameaça e outra que reabre a possibilidade de que possamos divergir em
liberdade. Uma agenda que responda aos problemas imediatos, sem cujo
atendimento não seria possível transitar para uma situação de normalidade
democrática, nem para o novo normal pós-pandemia. Mas, é nos momentos de
autolimitação e de busca de comunalidades entre os desavindos que as lideranças
mostram sua capacidade. Políticos que se afogam em mesquinharias, como
Bolsonaro, nunca serão líderes. Podem, no máximo ser déspotas. No caso, sem
qualquer ilustração.
Como é que se imagina ter sido
possível a aliança entre Estados Unidos, União Soviética e Reino Unido contra o
nazismo? Churchill e Roosevelt trocaram cartas amargas durante o período de
formação da frente antinazista, revelando sérias divergências geopolíticas,
fundamentais para o após-guerra. Churchill dedicava aristocrático desprezo por
Roosevelt que, por sua vez, opunha-se fortemente ao império britânico. Ambos
detestavam o que Stalin representava e reconheciam a ameaça representada pela
União Soviética aos interesses de seus respectivos projetos nacionais de poder.
Quando a URSS invadiu a Polônia, Roosevelt descreveu o governo de Stalin como a
ditadura mais absoluta do que qualquer ditadura no mundo. Stalin, por sua vez,
dedicava a ambos desdenhosa ironia. Ele tinha profunda desconfiança de ambos.
Mas, havia Hitler, o nazismo, a ameaça de derrota do Reino Unido e a invasão da
União Soviética. E houve Pearl Harbor. Uma vitória do nazismo representaria uma
grande ameaça aos interesses geopolíticos da potência americana emergente.
Depois da guerra, vencida a partir da aliança dos três líderes, eles passaram à
mais ferrenha disputa. Com a decadência do Império Britânico, passou a dominar
o antagonismo polarizado entre EUA e URSS, que alimentou a Guerra Fria e a
détente nuclear, nada cordial.
Quem viveu as agruras do regime
militar sabe que não é exagero dizer que um avanço autoritário no Brasil de
hoje representa uma ameaça existencial para todos os que prezam a democracia.
Põe em risco as condições essenciais para continuarmos competindo por projetos
que buscam, por caminhos diversos, manter o Brasil no campo democrático e
buscar soluções estruturais para as necessidades da maioria. A extrema direita
no poder, com um projeto que se assemelha ao fascismo, racista, excludente,
reacionário e hierárquico, associado aos interesses econômicos mais predatórios
do país é uma ameaça existencial a todo democrata verdadeiro.
Eu, particularmente, considero
que uma saída democrática do impasse em que nos encontramos e a superação
rápida e efetiva da necropolítica que vem sendo aplicada com patológica frieza
pelo governo pressupõe um amplo entendimento entre as forças políticas
nacionais. Vivemos o pior momento da história da Terceira República, inaugurada
com a Constituição de 1988. É inédita a superposição de crises pandêmica, de
governança, econômica e política, gerando enorme estresse institucional. Só não
houve retrocessos muito perigosos, como a sonegação de informações sobre o
avanço da pandemia pelo ministério da Saúde, ou a flexibilidade precipitada e
sem respaldo médico do isolamento social, porque a Justiça bloqueou essas decisões
com liminares.
São muitas as decisões
insensatas interrompidas por decisões judiciais ou por decretos legislativos.
Isto mostra que as instituições de freios e contrapesos estão funcionando.
Contudo, não é normal que funções regulares de governo, decisões de políticas e
escolhas de governantes tenham que ser recorrentemente corrigidas ou obstadas
por intervenções do Legislativo e, principalmente, do Judiciário. Não existe a
possibilidade de um governo funcionar à base de liminares delimitando seu campo
de ação. Mas, este bloqueio legislativo e judiciário se faz indispensável
diante dos danos que as escolhas de Bolsonaro podem produzir, sobretudo no
campo da segurança coletiva frente à pandemia.
Para que possamos superar com
rapidez e eficácia a ameaça autoritária que já se desenhou, não é possível
confiar em um acordo com Bolsonaro, como parece fazer o presidente do Supremo
Tribunal Federal, Dias Tóffolli. Bolsonaro não faz acordos. Quer a aceitação de
suas escolhas pelos outros Poderes. A única alternativa é a união de todos os
setores democráticos da sociedade em uma frente plural para barrar o avanço
autoritário.
Volto a meu ponto central. Uma
frente se constrói com diálogo e pela entrada voluntária de lideranças e forças
políticas na conversação. Não há espaço para cooptação ou indução de adesões.
Ela requer um movimento espontâneo. Há lideranças que têm a capacidade e o
descortino para atuar como viabilizadores cívicos, propiciando oportunidades
para o encontro de forças atritadas em torno de uma agenda mínima comum
pró-democracia. É o papel inverso ao dos viabilizadores da tirania que apoiam o
avanço autoritário, mesmo não tendo confiança, nem particular apreço pelo
governante no poder, imaginando que para eles sairá tudo bem. No caso de uma
frente democrática, os viabilizadores têm a noção cívica de que construir
pontes entre forças até agora adversárias é uma ação necessária para a
preservação e o aprofundamento da democracia. É este o caminho que tornaria
possível a tão necessária frente democrática.
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(*) Originalmente publicado em SérgioAbranches 9 de junho de 2020