O nó que não desata

Em novo artigo, Sérgio Gonzaga de Oliveira* revisita a lenda do nó górdio para analisar o “nó” das heranças socioeconômicas perversas que a sociedade brasileira não consegue desatar.

O artigo enseja as seguintes idéias, a destacar.

1) O grande crescimento econômico alcançado nos 50 anos decorridos entre 1930 e 1980, foi sucedido por décadas recentes de estagnação, onde as desigualdades herdadas daquele período foram mantidas ou até agravadas; o artigo expõe em números uma análise minuciosa e devastadora da atual situação socioeconômica brasileira.

2) Os avanços, em âmbito mundial, da pesquisa e da teoria no campo do desenvolvimento socioeconômico evidenciam as conexões entre as desigualdades de renda, raça e gênero com o crescimento econômico, sugerindo a interdependência dessas variáveis.

3)   Para os brasileiros romperem o “nó górdio” que trava o surgimento de um novo ciclo de desenvolvimento, impõe-se um grande esforço econômico das gerações presentes, conjugando elevação dos investimentos e redução de desigualdades, em prol das gerações futuras.

4)   Tal esforço pressupõe uma negociação social e política, tendo por referência um Projeto Nacional de Desenvolvimento.

Infelizmente, na contramão da Ciência Econômica e da experiência internacional, o Governo Brasileiro atual ignora o combate às desigualdades, como se essas pautas nada tivessem a ver com o desenvolvimento econômico.

Alfredo Maciel da Silveira**

                                               

Segue o artigo de Sérgio Gonzaga

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O nó górdio do desenvolvimento de longo prazo no Brasil

Sérgio Gonzaga de Oliveira

Agosto - 2021

Reza a lenda que Alexandre, o Grande, rei da Macedônia, de passagem pela Frígia, atual Anatólia na Turquia, visitando o Templo de Zeus se deparou com um simplório carro de boi fortemente amarrado a uma de suas majestosas colunas. O insólito visual teve sua origem quando um antigo rei da Frígia, que não tinha herdeiros, resolveu consultar o Oráculo sobre sua sucessão. Este lhe disse que o herdeiro do trono, em breve, chegaria à cidade em um carro de boi. Não se passou muito tempo para que um camponês de nome Górdio, conhecido por sua habilidade de amarrar objetos por meio de nós difíceis de serem desfeitos, cumpriu a profecia do Oráculo. Górdio sucedeu ao monarca e, em deferência ao episódio que o levou ao trono, amarrou seu carro de boi no Templo de Zeus. Górdio reinou por muitos anos. Midas, seu filho, foi seu sucessor. Midas, entretanto, não teve herdeiros e, por conta disso, consultou novamente o Oráculo. Este lhe disse que o futuro rei seria aquele que desfizesse o nó de Górdio, liberando o carro de boi da coluna do templo. Durante vários séculos, muitos tentaram em vão. Enquanto a profecia do Oráculo não se realizava, o reino da Frígia passou por muitas turbulências. Quando Alexandre chegou ao local e soube da profecia, desembainhou a espada e cortou o nó. Não se sabe ao certo se por conta da profecia ou por obra do acaso, Alexandre, o Grande, poucos anos depois, expandiu seu império por toda a região, tornando-se o soberano da Frígia.

Ruinas de um templo possivelmente dedicado ao culto de Zeus na Anatólia

Assim como na lenda, o Brasil de hoje parece um “carro de boi” amarrado por um “nó górdio” na triste coluna do subdesenvolvimento.  O Brasil está praticamente parado há 40 anos. O crescimento da renda per capita nesse período foi de 0,7% ao ano. Um quase nada. É verdade que em pequenos períodos dessa trajetória tivemos algum crescimento, como em meados dos anos 1990 e na primeira década deste século. Mas infelizmente foram apenas espasmos de crescimento em um longo período de paralisia e recessão. Os economistas chamam esses períodos de “voos de galinha”, curtos e desajeitados. E não se pode dizer que falta ao Brasil experiência em crescimento econômico. No período de 1930 a 1980 crescemos a taxas chinesas de 6,3% ao ano. Se tivéssemos mantido esse ritmo estaríamos hoje entre as nações mais desenvolvidas do planeta.

Mas o “nó górdio” brasileiro não é obra do acaso. Para ser desfeito é necessário mais do que uma espada mítica de um comandante militar. É preciso, antes de mais nada, tentar compreender a lógica que o sustenta. E essa compreensão remonta necessariamente ao passado. Tudo indica que a sociedade brasileira de hoje não está nada satisfeita com o longo período de crescimento alcançado naqueles 50 anos, entre 1930 e 1980. Não é para menos. Nesses anos, o crescimento econômico foi acompanhado por uma forte desigualdade social que, ao final, só beneficiou uma pequena parcela da população.

O crescimento econômico implica em sacrifício das gerações atuais em prol das gerações futuras. É preciso abrir mão de benefícios presentes para investir em novas unidades de produção, mas, também, em educação, saúde, infraestrutura física e social, ciência, tecnologia, eficiência do Estado e preservação do meio ambiente. A implantação de um novo Projeto Nacional de Desenvolvimento precisa mudar radicalmente a abordagem em relação às questões sociais, de forma a obter a aprovação da maioria da sociedade; é preciso que as pessoas acreditem que seu sacrifício vai trazer benefícios para seus filhos e netos.

Levando em conta a experiência passada, é compreensível que a sociedade veja com desconfiança a edição de mais um projeto de desenvolvimento. Quando se observa os números, salta aos olhos que a percepção negativa da maioria da população brasileira está correta. As desigualdades atuais de renda, raça e gênero, herdadas do passado desenvolvimentista, se interligam formando um panorama desolador.

A distribuição de renda é pornográfica, para dizer o mínimo. Segundo a Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE, publicada em 2020 e baseado em dados da PNAD-C de 2019 (1), o Brasil é o 9º país mais desigual do mundo em um universo de 164 nações. Numa inversão macabra dos números, os 10% mais ricos detém 42,9% da renda nacional, enquanto os 40% mais pobres ficam com somente 10,2% do total. Tomando como referência o rendimento domiciliar per capita apurado pelo IBGE nessa mesma pesquisa, verifica-se que metade da população vive com um valor inferior ao de um salário mínimo. Pode-se dizer que a maioria vive na pobreza ou em seu entorno. As políticas públicas compensatórias, tipo Bolsa Família ou Auxílio Emergencial, embora muito importantes, mal conseguem conter a pobreza extrema. Ou alguém em sã consciência pode acreditar que os 192 reais médios do Bolsa Família, os 300 reais do Auxílio Emergencial ou, mesmo, os 1.100 reais de um salário mínimo são suficientes para garantir, além da sobrevivência, as condições mínimas de cidadania de uma pessoa e sua família?

Na questão racial o panorama não é diferente. Embora os brancos sejam minoria na população brasileira (42,7% em 2019), entre os 10% mais ricos eles formam uma larga maioria (70,6%). No outro extremo, entre os 10% mais pobres, prevalecem os negros (pretos e pardos) com 77% deste grupo. Esses números mostram que a distribuição de renda é fortemente segregadora, reservando aos negros as faixas inferiores da renda nacional, embora sejam maioria na população (56,3%). Mas não é só isso. O IBGE, no mesmo relatório citado anteriormente, ao examinar as condições de moradia da população, verificou a ocorrência de cinco principais problemas: ausência de banheiro de uso exclusivo da moradia, paredes construídas com material não durável, adensamento excessivo, ausência de documento que comprove a propriedade e ônus excessivo com aluguel. Constatou que a incidência das quatro primeiras inadequações entre pessoas negras foi mais que o dobro da verificada entre a população branca. Apenas no último ponto existe uma certa paridade entre negros e brancos. A lista de indicadores sociais, registrados pelo IBGE, expõe de maneira dramática essa desigualdade. Na educação, saúde, mercado de trabalho e tudo o mais o quadro é o mesmo.

Na questão de gênero o cenário não muda. A desigualdade de gênero se apresenta de forma inequívoca no mercado de trabalho quando se verifica que o rendimento médio do trabalho feminino é 22,8% menor que o equivalente masculino. Quando se cruzam as informações de raça, gênero e pobreza os dados são chocantes. As mulheres negras se destacam entre os mais pobres. Embora sejam 28,7% da população total, são 39,8% entre os muito pobres e 38,1% entre os pobres. As mulheres negras, sem cônjuges, com filhos menores de 14 anos para criar, são os arranjos familiares que mais sofrem com a desigualdade. Segundo o IBGE, esses grupos familiares concentram a maior incidência de pobreza, sendo 86,4% pobres ou extremamente pobres.

Como se viu, as três maiores desigualdades, quando superpostas, atingem a grande maioria da população, que se mostra relutante em aderir a um novo projeto de desenvolvimento, já que no passado o crescimento econômico não foi capaz de reduzir essas desigualdades.

Mas além dessa percepção negativa, existem questões econômicas que tornam a desigualdade um obstáculo ao desenvolvimento. O crescimento da produção depende do comportamento conjunto e interligado do consumo e do investimento. Essas variáveis indicam o destino dos bens e serviços produzidos: o consumo atende às necessidades humanas e o investimento repõe ou aumenta a capacidade de produção. O desequilíbrio entre consumo e investimento retarda o crescimento. Assim, o subconsumo estrutural das camadas mais pobres da população impede que o crescimento econômico de longo prazo atinja todo seu potencial. Estudos comparativos entre países de desenvolvimento recente mostram que uma melhor distribuição de renda no início do processo favoreceu os emergentes de melhor desempenho (2).

Outro aspecto importante foi analisado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Trata-se da relação entre o desenvolvimento e a participação das famílias de menor renda na educação das crianças e jovens (3). A educação, na verdade, tem uma dupla inserção num projeto de desenvolvimento. Em primeiro lugar e em boa medida, é pela educação que as pessoas adquirem a condição de cidadãos. Já do ponto de vista econômico, a educação é um dos principais fatores de aumento da eficiência do sistema produtivo.

Entretanto, como diz a OCDE, a educação das crianças e jovens é fortemente influenciada pelo nível de renda de suas famílias, seja pela disponibilidade de recursos financeiros, seja pelo suporte cultural familiar durante o período de aprendizado. Forma-se, na verdade, um círculo vicioso, no qual uma criança nascida em uma família pobre tende a ter menores níveis educacionais e, em decorrência, menor nível de renda quando adulta. Quanto maior a desigualdade mais esse círculo vicioso trava o desenvolvimento econômico.

A Ciência Econômica e a experiência internacional já desvendaram, em grande medida, os caminhos que devem ser percorridos para levar um país ao pleno desenvolvimento. Certamente, cada país tem características próprias e percorre caminhos diferentes, mas as bases teóricas do desenvolvimento já são bastante conhecidas. Recentemente alguns chegaram lá, como a Austrália, Nova Zelândia, Coréia do Sul, Taiwan e Singapura. Outros, estão a caminho como a China, o Vietnã e a Índia. O Brasil, para nosso desgosto, continua parado, imobilizado e amarrado a uma imaginária coluna de um templo dedicado ao culto do atraso e do subdesenvolvimento. Mas nada será politicamente viável se a maioria da população continuar convicta de que o sacrifício não vale a pena. Por tudo isso, um Projeto Nacional de Desenvolvimento deve, preliminarmente, ser orientado para a redução drástica dessas desigualdades. Caso contrário o nó de Górdio, que nos prende ao passado, jamais será desfeito.

LEIA TAMBÉM: Urgente - A retomada do desenvolvimento econômico (III)

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(1) Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira, Coordenação de População e Indicadores Sociais, IBGE, Rio de Janeiro, 2020.

(2) Amsden, Alice H., A Ascenção do “Resto”: Os desafios ao Ocidente de economias com industrialização recente, Editora Universidade do Estado de São Paulo, São Paulo, 2009.

(3) Organization for Economic Co-operation and Development, In It Together: Why Less Inequality Benefits All, OECD Publishing, Paris, 2015.

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(*) Sergio Gonzaga de Oliveira é engenheiro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e economista pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL).

(**) Alfredo Maciel da Silveira é engenheiro (UFRJ), MSc Eng. de Produção (COPPE-UFRJ), Doutor em Economia (IE-UFRJ) e um dos editores deste Blog "Democracia e Socialismo".

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