Aprender com os chilenos?

"Não vamos desempenhar um papel hegemônico no governo de Boric

Dezembro/2021

 “Somos o maior partido da coalizão “Aprovo Dignidade”. Muito bem, mas a única coisa que isto nos faz ver é que temos uma grande responsabilidade”, enfatizou o presidente do Partido Comunista, Guillermo Teillier. A respeito do papel dos comunistas no futuro gabinete de Gabriel Boric, ele disse que cabe ao presidente eleito "se estamos no comitê político ou não". Ele argumentou que “concordamos com o que Boric disse, que seu governo estará com os dois pés nas ruas, intimamente relacionado com o movimento social”.

(Da entrevista de Guillermo Teillier para Hugo Guzman, jornalista. "El Siglo”, Santiago. 20/12/2021). Íntegra a seguir*.


Gabriel Boric, Presidente eleito do Chile, discursa após a vitória - Foto: Javier Torres (AFP)

A que você atribui o triunfo de Gabriel Boric, sobretudo com uma distância de 10 pontos sobre José Antonio Kast?

Existem vários elementos. Em primeiro lugar, que se conseguiu convocar setores que pertenciam a outras forças políticas para votar em Boric. As bases de muitos partidos que não são do “Aprovo Dignidade” votaram em Boric. Algo muito importante é que se apelou aos jovens que haviam votado a favor do Aprovo (nova Constituição), mas que não votaram no primeiro turno e mudaram, para votarem no segundo turno, manifestando que era preciso defender a democracia, uma nova Constituição e que era preciso avançar em resposta às demandas sociais levantadas desde outubro de 2019, na revolta popular. A recuperação do terreno perdido em lugares como Antofagasta, o que deixa às claras que o voto em (Franco) Parisi[1] se voltou para Boric, não para Kast, e a votação na Região Metropolitana, que foi muito grande e espetacular. Houve votos muito bons em comunas populares, por exemplo Lo Espejo, onde Boric teve 72%, outras como Pedro Aguirre Cerda com uma votação elevada, El Bosque, Puente Alto e Região de Valparaíso compareceram com uma votação elevada para Boric . O terreno foi recuperado em várias comunas onde Kast havia vencido no primeiro turno. Também foi influenciado pelo fato de Gabriel Boric ter especificado muito bem os pontos-chave do programa que vai levar adiante. Outro fator é que houve muita mudança de voto nos territórios. O projeto foi bem apresentado e difundido nos finais da campanha, inclusive nas redes sociais. Recorde-se que o comando foi reorganizado no segundo turno, que foi ampliado. Houve figuras que desempenharam um papel muito importante, de todos os partidos, independentes, com um fortalecimento de todo o trabalho que requer uma campanha eleitoral desta natureza.

Ademais tem a ver também com o fato de que Kast estava completamente errado com seu anticomunismo tão abusivo e repetitivo. E ele estava errado, acima de tudo, porque sua missão era vencer o comunismo, independentemente do fato de que o programa não é dos comunistas mas de um conjunto de forças, de muitos setores sociais e profissionais, que foi feito com o povo. Este foi um fator na derrota de Kast. As pessoas se deram conta de que aquele seu discurso fazia parte de um espantalho para justificar suas políticas e falácias.

Mas eles não querem deixar isso de lado. Porque agora falam que o Partido Comunista vai ser um fardo para o governo de Boric, que vai ser rígido, que é extremista. Eles repetem o mesmo discurso da campanha.

O anticomunismo foi derrotado pelo povo chileno. Quem ganhou foi o povo chileno. Somos participantes desta vitória, mas o povo é que defendeu a democracia e o processo constituinte.

Pois bem, nós comunistas, já o dissemos e deve ficar claro, não vamos desempenhar um papel hegemônico no governo de Boric. Somos o maior partido da coalizão “Aprovo Dignidade”. Muito bem, mas a única coisa que isto nos faz ver é que temos uma grande responsabilidade. O povo nos deu uma responsabilidade, nos deu mais votos, mais parlamentares, permitiu-nos quebrar a exclusão no Senado, ter mais vereadores regionais, mas isso não quer dizer que vamos ser a força hegemônica. Queremos agir em pé de igualdade com as outras forças. Se participarmos do gabinete (ministerial),queremos fazer o mesmo que todos, não queremos ter privilégios, mas não queremos ser desproporcionais. Em outras palavras, temos os mesmos direitos e queremos ter as mesmas oportunidades.

Nesse sentido, o que o senhor diria quanto a que o PC deveria vir a estar no comitê político do La Moneda?

Esta é uma decisão do presidente eleito. Ele disse que antes de 25 de janeiro terá o gabinete formado. Terá que ver-se. Ele terá que decidí-lo. Boric disse que será numa conversação com os partidos, sem que os partidos imponham a sua vontade ao presidente eleito. Ele fazendo um gesto de conversar, será a ocasião de apresentarmos as nossas propostas. Nós não temos discutido o que queremos no gabinete. O que nos interessa é estarmos em condições de poder dar resposta, nos postos onde melhor possamos contribuir para o cumprimento do programa e das demandas da cidadania. Então esta pergunta só pode ser respondida pelo presidente eleito, se estamos ou não no comitê político, ou em quais cargos de governo.

Bem, é a oportunidade de se perguntar. Na era pós-ditatorial, esta é a segunda vez que o Partido Comunista faz parte de uma coalizão que venceu as eleições presidenciais. Que significado e projeção isso tem para o PC?

Temos sido constantes na promoção de reformas profundas, na luta pela democracia, em deixar para trás a Constituição da ditadura, em promover os direitos dos trabalhadores e do povo. Por isso entramos no governo de Michelle Bachelet. Creio que somos reconhecidos por isso, por esses objetivos. Algumas reformas foram alcançadas, outras não. Antes do governo Bachelet não tínhamos maior experiência, pois aqueles que estiveram no governo de (Salvador) Allende já não mais estavam em condições de se integrar. Estávamos numa situação de menos capacidade do que agora em termos de quadros, de experiência. Tínhamos menos força, menos parlamentares, menos votos. Agora a situação mudou. A experiência do Governo de Michelle Bachelet, com todos os seus acertos e erros, foi muito fértil para nós. Hoje nos dá uma capacidade de contribuirmos mais neste governo de Boric.

Agora, sempre consideramos isso como parte de um processo onde se conjugam muitos fatores, muitos fenômenos que vão se concatenando ao longo do tempo. Houve lutas estudantis, longas lutas trabalhistas, processos eleitorais, levante social. E cada vez se avança mais no aperfeiçoamento da democracia e da participação. Esperemos que este Governo signifique um avanço maior em várias direções. É o que esperamos, sinceramente. As medidas que estão propostas como principais, esperamos que sejam cumpridas neste curto período de tempo, que é de quatro anos.

Precisamente quanto à participação, como vê o PC a forma como o movimento social terá de se expressar nesses quatro anos?

Concordamos bastante com o que Gabriel Boric disse em seu discurso na noite do triunfo, que seu governo estará com os dois pés nas ruas, ou seja, intimamente relacionado ao movimento social, conversando com o movimento social. Estamos absolutamente de acordo com isso e em ter a contribuição e o apoio do mundo social. Isto é vital.

Hoje é impossível falar da antiga “Concertación”. A Democracia Cristã parece que será oposição a Boric, o Partido Socialista quer colaborar. Como vê a possibilidade de integração destes partidos ao futuro Governo?

Veja, o presidente eleito nos convocou aos presidentes dos partidos políticos do “Aprovo Dignidade” e dos demais partidos que contribuíram para o triunfo de Boric e a derrota de Kast.

Conversaram no domingo ao entardecer?

Sim, domingo à tarde. Gabriel Boric agradeceu aos partidos do “Aprovo Dignidade”, a todos os outros partidos, pela contribuição a sua vitória, e foi muito claro em manifestar que apelaria à contribuição, opinião e colaboração de todos aqueles que desejassem trabalhar para cumprir o programa e as medidas propostas. Tendo em conta, disse, que a casa deste Governo é o “Aprovo Dignidade”. Porém, a partir daí, pode-se buscar ampliar esta base de sustentação ou acumulação de forças para levar adiante as mudanças.

Ele não falou em integrar outros partidos à coalizão. Disse sim, que estava disposto a trabalhar com os partidos institucionalmente. Disse, "sou militante de partido, respeito os partidos, quero que se desenvolvam", e dentro disso propôs também trabalhar com pessoas independentes. Acho todavia que ainda não está claro, da parte do presidente eleito, como ele nomeia o gabinete.

No “Aprovo Dignidade”, antes da campanha, durante a campanha e talvez durante o governo, houve e haverão divergências entre os partidos. Como administrá-las?

Bem, administrando-as...

Porque elas vão surgir.

É que não temos outra possibilidade.

Olha, num sistema como este o Presidente da República sempre terá preponderância. Sem dúvida haverá divergências de opiniões sem que implique em atentar contra o Governo. Todos os partidos deverão ser cuidadosos e um diálogo permanente será necessário. Creio que vamos estar tão ocupados cumprindo o programa e o trabalho do Governo e do Parlamento que não deverão surgir tantas divergências, que também são normais.

Vai ser preciso muita habilidade e conversação no nível parlamentar.

Sem dúvida. Porque há um empate no Senado, embora tenhamos maioria com uma certa folga na Câmara dos Deputados. Poderíamos até chegar aos três quintos, mas há reformas constitucionais que podem não ser possíveis se não tivermos dois terços. Há leis de caráter ordinário como a da reforma tributária, que é muito importante e há possibilidades de aprová-la, se bem acordada. Aí seria necessário o apoio de organizações sociais, sindicais, de todos aqueles que querem levar as mudanças adiante.

Fala-se em chegar a acordos, construir pontes. Mas salta o fantasma da "política dos consensos" implementada durante a transição e que incluía a direita.

Depende de para quê serve o consenso. Pois se é para fazer as coisas "na medida do possível", acho que não. Mas se houver consenso para fazer uma reforma, sem que isso signifique fazer "na cozinha", tudo bem. A palavra consenso não é má em si mesma. É em relação a quê se dão os consensos. Posso ter um consenso no Partido Comunista e não é ruim. O consenso é para avançar. Mas se for para impedir as mudanças, isso não é positivo. Não são aqueles consensos com a direita, onde as coisas permaneciam mais ou menos na mesma.

Vocês vão ficar atentos, em alerta para o que as forças de direita e segmentos de extrema direita poderão fazer durante o governo Boric?

Você pode ver que já existem rachaduras à direita. Por exemplo, vejo haverem vários que não querem Kast fazendo parte do Chile. Admitamos que tampouco ele terá a liderança da direita. Há pessoas como o senador (Manuel José) Ossandón que disse estar disposto a participar de processos pré-legislativos para dar a possibilidade de aprovar alguns projetos de lei do futuro Governo. É possível que ante algumas leis se possa contar com o voto de uma direita menos extremista. Creio que o setor da extrema direita, devido às declarações iniciais de gente como Rojo Edwards, vá seguir com seu anticomunismo. Tratarão de seguir usando o anticomunismo da pior forma. No entanto, este nefasto anticomunismo será derrotado e as esperanças e expectativas do povo prevalecerão.

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[1] Candidato populista de direita, Franco Parisi alcançou o 3º lugar no 1º turno, desbancando os dois candidatos das forças tradicionais - Sebástian Sichel, o sucessor do presidente Piñera, e Yasna Provoste, da ex-Concertación, dos ex-presidentes Ricardo Lagos, Eduardo Frei e Michelle Bachelet.

(*)Publicado originalmente em El Siglo, 20/12/2021. Tradução de Alfredo Maciel da Silveira, especial para “Democracia e Socialismo”.

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A mãe de todas as reformas

Em novo artigo, Sérgio Gonzaga de Oliveira analisa alguns aspectos da democracia brasileira que podem explicar a estagnação em que o país se encontra desde a década de 80 do século passado. Para tal faz uma comparação entre o presidencialismo norte americano e o brasileiro, concluindo que o Brasil, nas últimas décadas evoluiu para uma grave falha institucional. Esta, pode dificultar muito o próximo Governo, qualquer que seja o Presidente a ser eleito em 2022.

Além disso, é sempre bom lembrar que o caos político e econômico cria o ambiente favorável às aventuras totalitárias.

Segue-se o artigo

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A mãe de todas as reformas: presidencialismo ou semipresidencialismo?

Sérgio Gonzaga de Oliveira*

Novembro - 2021 

Os brasileiros estão perplexos e sem esperança. As instituições políticas têm baixo nível de aprovação. Não é para menos. Os indicadores sociais são assustadores. Pobreza, saúde precária, desemprego, uberização, informalidade e outras mazelas, atingem a maior parte da população. As camadas médias sofrem com a violência urbana e a insegurança em relação ao emprego e a renda. A elite econômica se refugia em guetos disfarçados de oásis, cercados de grades por todos os lados. A falta de perspectiva, de emprego e de renda acaba atingindo todas as classes e camadas sociais, embora, como sempre, penalize com mais rigor os mais pobres.

É verdade que não somos um país atrasado do ponto de vista econômico. Mas também estamos longe do pleno desenvolvimento. Paramos no meio do caminho. Nesses últimos 40 an0s o crescimento da renda per capita foi de 0,7% ao ano. Um quase nada. Já no período anterior, entre 1930 e 1980, o PIB cresceu, em média, 6,0% ao ano (1). Sem dúvida, uma taxa de crescimento chinesa. Não se pode dizer que não houveram progressos nas últimas quatro décadas. Entretanto, quando comparamos o Brasil com outros países que se desenvolveram recentemente, parece que ficamos parados. Mas afinal, quais são as razões para essa estagnação? Porque paramos?

Não existe uma resposta simples para essa pergunta. Este artigo pretende analisar algumas questões que, do ponto de vista institucional, podem ter sido decisivas para a formação do quadro desolador em que vivemos.

 
Já há algum tempo, a Ciência Econômica considera as Instituições de um país como uma peça chave no desempenho de sua economia. Nas últimas décadas, o estudo das relações entre as Instituições e a economia ganhou muito destaque e deu a Douglass North o Prêmio Nobel de 1993. Como escreveu North, em seu livro “Institutions, Institutional Change and Economic Performance”,“A História importa. Ela importa, não somente, porque podemos aprender com o passado, mas porque o presente e o futuro estão conectados ao passado pela continuidade das instituições sociais. As escolhas de hoje e de amanhã são moldadas pelo passado” (2).

Com base nos dados do último Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU (3), pode-se caracterizar como países desenvolvidos aqueles que têm um IDH muito alto (maior que 0,8) e uma renda per capita superior a US$ 30 mil (em paridade de poder de compra). Com esse critério, 45 países estão nessas condições. Desse total, 38 são democráticos e a maioria esmagadora é parlamentarista ou, em alguns casos, semipresidencialista. As duas únicas exceções são os Estados Unidos da América e a República de Chipre, este, um pequeno e belo país numa ilha do Mediterrâneo. Ambos são presidencialistas. Deve-se ressaltar que a classificação adotada para países desenvolvidos é um pouco arbitrária, mas se tomarmos outras classificações como as do Banco Mundial ou do FMI a conclusão não será muito diferente: o regime político dominante entre os desenvolvidos e democráticos é o parlamentarismo ou uma de suas variantes.

Por sua dimensão, longevidade e proximidade com o Brasil, o sistema americano merece nossa atenção.

O presidencialismo norte americano
 

Nos EUA existe uma sólida tradição bipartidária que divide o país ao meio do ponto de vista eleitoral. Quando um presidente é eleito ele carrega consigo, no mínimo, algo próximo a metade do Congresso. Sua base de sustentação já começa com um número expressivo de parlamentares. Mesmo quando o Presidente não conta com uma maioria no Congresso, a diferença em relação à oposição é muito pequena, o que facilita eventuais negociações.

Adicionalmente, a derrubada de um veto presidencial exige a expressiva maioria de 2/3 dos votos. A simples existência desse dispositivo lhe assegura um elevado poder de barganha nas negociações, já que os parlamentares sabem que o Presidente usará o poder de veto em caso de derrota. E esse veto dificilmente será anulado pelos opositores, tendo em vista o equilíbrio entre os dois partidos.

Outro instrumento igualmente poderoso são as Ordens Executivas. Podem ser emitidas pelo Presidente em uma vasta gama de assuntos. Kenneth Mayer em seu livro “With the Stroke of a Pen: Executive Orders and Presidential Power” (4) relaciona oito categorias para as cerca de 5.800 Ordens Executivas que foram emitidas no período de 1936 a 1999. Criação, extinção ou transferência de atribuições de órgãos da administração, declaração de estado de emergência, criação, alteração ou extinção das áreas ou reservas públicas e política interna, incluindo energia, meio ambiente, direitos civis, economia e educação são algumas delas. Muitas trataram de segurança nacional e relações externas, como a que recentemente determinou o retorno dos EUA ao Acordo de Paris. Além disso, as Ordens Executivas dão ao Presidente a capacidade de tomar a iniciativa quando algum assunto ainda não está regulado por lei. Quando o Congresso resolve legislar, os efeitos da Ordem Executiva já estão bem estabelecidos, limitando a ação parlamentar.

Essas características do sistema americano, notadamente o equilíbrio bipartidário, o alto poder de veto e as Ordens Executivas, criam condições para que o Presidente, junto com o seu partido, cumpra o programa de governo que o elegeu.

Muito provavelmente, por influência cultural dos EUA a América Latina adotou o presidencialismo desde o nascimento de suas Repúblicas.

O presidencialismo brasileiro

Uma das principais diferenças entre o presidencialismo brasileiro e o americano, tem sido a proliferação partidária. O crescimento do número de partidos desde o término da ditadura militar é bastante expressivo. Logo após o fim do bipartidarismo, nas eleições gerais de 1982, concorreram 5 partidos políticos. Em 1994 na eleição de FHC já haviam 15 partidos, subindo para 28 na eleição da Dilma em 2014. Hoje estão registrados no Tribunal Superior Eleitoral 33 partidos.

Além do aumento do número de partidos, o sistema tornou-se cada vez mais pulverizado. Como referência, vale destacar que em 1982 os dois maiores partidos detinham 84,9% da representação na Câmara, enquanto que com FHC esses mesmos maiores partidos foram reduzidos a 38,6%. Em 2014, com a Dilma, representavam 32,4% e hoje os dois maiores partidos detêm apenas 20,6%. Nessas quatro décadas o número de partidos aumentou muito enquanto a representatividade de cada um deles despencou. Nesse quadro, a construção de uma base parlamentar é bastante difícil, mesmo para presidentes com grande capacidade de articulação política. Para presidentes com baixa capacidade de articulação, essa tarefa é quase impossível. Não à toa, desde a democratização, dois deles sofreram impeachment e o atual, para evitar a queda, entregou a articulação política e a condução do governo aos líderes do Congresso. Formou-se uma espécie de presidencialismo-parlamentarista muito confuso e disfuncional.

Deve-se acrescentar que, no Brasil, os vetos presidenciais podem ser derrubados pela maioria dos Deputados e Senadores eleitos (maioria absoluta), em contraste com os 2/3 exigidos pelo sistema americano.

Mas isso não é tudo. Em termos de autonomia do Presidente, a deterioração ao longo do tempo também é evidente. A Constituição de 1988 criou as Medidas Provisórias (MP) com a finalidade de dotar o Presidente de uma certa liberdade, principalmente em situações de relevância e urgência. De 1988 a 2001 as Medidas Provisórias podiam ser emitidas praticamente sobre qualquer assunto, já que o texto constitucional era muito vago em relação ao significado de relevância e urgência. Eram válidas por 30 dias, mas para não perder a legalidade podiam ser renovadas indefinidamente. Esse período foi marcado por sete tentativas de conter a alta inflação herdada da ditadura militar. Por conta do combate à inflação ou pela facilidade de emissão e renovação das Medidas Provisórias, essa prática atingiu números absurdos. No auge, de janeiro de 2000 até setembro de 2001, foram editadas 134 Medidas Provisórias com mais de 1000 reedições.

Com a justificativa de conter a proliferação de Medidas Provisórias e suas reedições, o Congresso aprovou em 2001 uma Emenda Constitucional que restringiu os poderes do Presidente. Esta Emenda Constitucional relacionou assuntos que não poderiam ser tratados por MP, proibiu a reedição e estabeleceu que se o Congresso não tratasse do assunto em 45 dias a MP trancaria a pauta de votações. Em 2009, uma interpretação do Presidente da Câmara, referendada pelo STF, acabou com o trancamento da pauta, estabelecendo que em 120 dias a MP perderia a validade se não fosse apreciada. Na prática a autonomia presidencial representada pelas Medidas Provisórias perdeu muito de seu valor.

Com a pulverização dos partidos, o menor poder de veto e a incerteza em relação às Medidas Provisórias, o presidencialismo brasileiro se afastou cada vez mais do modelo americano. Com o passar do tempo, o Poder Executivo foi perdendo protagonismo. No entanto, para a opinião pública o Presidente continua a ser o principal responsável pelo sucesso ou fracasso das políticas públicas, embora o poder de fato tenha migrado progressivamente para o Congresso. Muitas vezes, o Presidente eleito começa seu mandato com uma base de apoio bastante reduzida. A partir de sua eleição inicia uma peregrinação em busca de apoio parlamentar com negociações pontuais nem sempre muito republicanas, conhecidas popularmente como “toma-lá-dá-cá”, “troca-troca”, “balcão de negócios” e “orçamento secreto”. O resultado dessa má alocação de poder e diluição de responsabilidade está à vista de todos. Já há algum tempo, o país parece uma nau sem rumo.

Enquanto o Brasil se debate em uma evidente crise de identidade política, não sabendo ao certo se é presidencialista ou parlamentarista, vale a pena examinar com mais detalhes como se estruturam politicamente a quase totalidade dos países desenvolvidos e democráticos.

O parlamentarismo e o semipresidencialismo

No parlamentarismo, o Chefe do Poder Executivo não é eleito diretamente pela população. Ele emerge da base de sustentação no Congresso. Forma-se uma maioria no parlamento com um ou vários partidos que se unem para governar. Essa maioria, estruturada após as eleições, escolhe o Primeiro Ministro e o Conselho de Ministros, encarregados da administração do país. A primeira consequência desse tipo de formação é que fica claro para a opinião pública qual o partido ou conjunto de partidos é responsável pelo sucesso ou fracasso das políticas públicas. Rapidamente a população percebe essa configuração e começa a dar muita atenção aos Partidos e às escolhas para Deputados e Senadores. De outro lado, os partidos políticos passam a entender que sua sobrevivência depende do sucesso do Primeiro Ministro e seus auxiliares diretos, escolhidos por eles.  Outra vantagem desse arranjo é a facilidade de substituição do Primeiro Ministro quando sua atuação não está atendendo às expectativas dos partidos ou da opinião pública. Em geral, neste caso, é necessário que a maioria dos Deputados aprove uma Moção de Censura para derrubar o Primeiro Ministro. Em alguns casos, para que não haja descontinuidade, o Primeiro Ministro só cai quando se estabelece uma nova maioria capaz de substituí-lo.

Essa formação é acompanhada pela escolha de um Chefe de Estado que é um Presidente eleito pela população ou pelo Senado. Nas monarquias parlamentares é um Rei ou uma Rainha. Em geral, o Chefe do Estado tem a função de dissolver a Câmara dos Deputados quando os parlamentares não conseguem estabelecer uma maioria para governar. Neste caso, o Presidente convoca uma nova eleição, na expectativa de que os eleitores irão escolher partidos capazes de constituir uma maioria estável.

Na última metade do século passado, surgiram algumas variantes para o sistema parlamentarista que mudam um pouco a sua essência. A principal delas é o chamado semipresidencialismo. Neste caso, o Presidente, além de poder dissolver a Câmara, tem outros poderes, como o comando das Forças Armadas e a administração das Relações Exteriores. Em alguns casos, divide a responsabilidade pela escolha do Primeiro Ministro com o Parlamento. França e Portugal são os melhores exemplos dessa configuração.

A mãe de todas as reformas

A Ciência Econômica e a experiência internacional, em grande medida, já dispõem de instrumentos para conduzir um país ao pleno desenvolvimento, com inclusão social e sustentabilidade ambiental.

Entretanto, esse caminho é necessariamente político, uma vez que exige um amplo acordo entre as forças representativas da sociedade em torno desse objetivo. E no quadro institucional em que o Brasil se encontra, esse acordo é muito difícil.

Na verdade, as Instituições americanas e de outros países desenvolvidos obrigam a composição política de partidos com proximidade ideológica e programática. Já o sistema brasileiro favorece a pulverização e o fisiologismo. O que o sociólogo Sergio Abranches chamou educadamente de “presidencialismo de coalisão” e FHC, com mais realismo, de “presidencialismo de cooptação”, nada mais é do que uma grave falha institucional.

Para aproximar o presidencialismo brasileiro do norte americano seria necessária uma reforma constitucional profunda e de difícil execução, dando poderes ao Presidente para realizar o programa que o levou ao cargo. Em contrapartida seria necessário que só se inscrevessem candidatos de partidos ou federações de partidos que aglutinassem uma parcela expressiva de Deputados e Senadores. Com essa restrição, haveriam no máximo dois ou três candidatos e o novo Presidente iniciaria o mandato com uma sólida base no Congresso. Esse impedimento evitaria a inscrição de candidatos avulsos, sem sustentação partidária, e faria com que os eleitores dessem mais atenção aos partidos políticos.

Alternativamente, a reforma política poderia instaurar o parlamentarismo ou o semipresidencialismo, como praticado na imensa maioria dos países desenvolvidos e democráticos. Este talvez seja o caminho de menor resistência, já que o enfraquecimento do Presidente e o empoderamento do Congresso parecem irreversíveis. Talvez, para não ser entendido como casuísmo, o novo sistema devesse ser programado para ter início após as eleições gerais de 2030, quando a cláusula de barreira atinge o seu valor máximo (3%). Naturalmente, um amplo acordo político e o reconhecimento de sua importância poderia antecipar essa reforma. A verdade é que não nos restam muitas escolhas. Nenhuma delas é simples, mas como se diz em voz corrente “não fazer nada, não é opção”.

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(1) Cardoso, Ricardo, Desenvolvimento em crise: a economia brasileira no último quarto do século XX, Editora UNESP, São Paulo, 2002.

(2) North, Douglass, Institutions, Institutional Changes and Economic Performance, Cambridge University Press, Cambridge, United Kingdom, 2002.

(3) United Nations, The 2020 Human Development Report, United Nations Development Programme, New York, NY, USA, 2020.

(4) Mayer, Kenneth, With the Stroke of a Pen: Executive Orders and Presidential Power, Princeton University Press, Princeton, New Jersey, USA, 2002.


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(*) Sérgio Gonzaga de Oliveira é engenheiro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e economista pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). É colaborador frequente deste Blog Democracia e Socialismo, onde tem destacado a importância e os desafios para a retomada do desenvolvimento de longo prazo no Brasil.

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