Um outro 11 de setembro
Ferreira Gullar
Folha de São Paulo, 17 de dezembro de 2006
Ao ouvir Allende rogar às pessoas que saíssem às ruas, soube que seus dias estavam contados.
Quando cheguei a
Santiago do Chile, em maio de 1973, vindo de Moscou, encontrei o país
praticamente parado por uma greve de transportes que só terminaria na tarde do
dia 11 de setembro, após consumado o golpe militar que derrubara Allende.
Falava-se que a embaixada norte-americana financiava os caminhoneiros, com
cinco dólares por cabeça, o que não era pouco, uma vez que eu pagava dois
dólares pelo aluguel de um apartamento duplex de três quartos, na avenida
Providência; a inflação galopante pulverizara o peso chileno. Agora, com a
morte do general Pinochet, a memória me faz reviver aqueles dias avassaladores.
Não demorei muito a perceber que a situação de Allende era insustentável, ao contrário de outros exilados que, já enraizados no Chile e necessitando acreditar no melhor, achavam que a hipótese do golpe era praticamente inexistente. "O exército chileno é profissional", garantiam. Mas a realidade dizia outra coisa: o desabastecimento provocado deliberadamente pelos ricos, comprando e estocando as mercadorias, esvaziava os supermercados; ninguém conseguia encontrar carne, frango, leite em pó, açúcar, arroz, café, cigarros, papel higiênico... O governo foi obrigado a criar um sistema precário de abastecimento, apoiado no pequeno comércio dos bairros.
Uma vez por mês, eu entrava na fila de uma pequena mercearia em frente à minha casa para comprar o mínimo permitido. Enquanto isso, os atentados se sucediam, promovidos por uma organização de extrema direita, chamada Pátria e Libertad. Certa noite, quando Allende falava à nação, a transmissão saiu do ar e o país mergulhou nas trevas, porque a torre central da rede de energia fora implodida.
Enquanto isso, o Exército fazia incursões nas fábricas e apreendia armas ali guardadas pelos operários. Um livro publicado por uma editora do governo denunciava O'Higgins, o pai da pátria chilena, como traidor do povo, o que deixou indignados os militares. Como se não bastasse, o partido socialista apresentou um projeto no Congresso para instituir no país um programa de ensino marxista, provocando a ira dos democrata-cristãos, que até então apoiavam Allende; os moços da juventude católica espalharam mesas por toda a cidade para colher assinaturas contra o projeto. Para culminar, em junho daquele ano, um grupo de jovens oficiais se sublevou. Ao ouvir pelo rádio o presidente da República rogando às pessoas que saíssem às ruas, valendo-se de paus ou pedras, para enfrentar os golpistas, convenci-me de que ele estava com os dias contados.
Dirigi-me ao palácio La Moneda, sede do governo, como centenas de outras pessoas, solidárias com o presidente. A certa altura, soube-se que uma coluna de tanques vinha em direção ao palácio, mas, ao contrário do que supúnhamos, os tanques vieram reafirmar a autoridade de Allende. A sublevação fora debelada. O susto passou, mas fiquei mais preocupado ainda: teria sido o fim ou o começo do processo golpista?
Dia 10 de setembro, data de meu aniversário, Tereza e meus filhos me ligaram do Brasil. Perguntaram quando iriam se juntar a mim no Chile. "É bom darmos dar um tempo", respondi. "Temo pelo que possa ocorrer aqui." No dia seguinte, às seis da manhã, começou o golpe, com o levante de uma base da Marinha em Valparaíso. Saíra para comprar um litro de leite e, ao voltar, um homem muito nervoso me disse: "O Exército cercou La Moneda. É o fim de Allende". Subi correndo as escadas, entrei no apartamento e liguei o rádio: com voz desesperada, o presidente chileno denunciava a traição dos militares golpistas e afirmava que só morto deixaria o palácio.
Horas depois, estava morto. As emissoras de rádio, ocupadas pelos militares, sugeriam à população que denunciasse os estrangeiros "terroristas", especialmente os brasileiros, que estavam no Chile para implantar o comunismo. Dois dias depois, recebi um telefonema ameaçador dando-me o prazo de um dia para deixar o apartamento. Por duas vezes, fui visitado por militares armados que hesitaram em prender-me quando lhes provei que era membro do Colégio de Periodistas de Chile, entidade jornalística de direita. Antes que voltassem pela terceira vez, tratei de obter um salvo-conduto e cair fora do inferno.
Àquela altura, assumira o poder o general Augusto Pinochet, o mesmo que chegara a La Moneda à frente daquela coluna de tanques para dar garantias ao presidente Allende. Implantaria uma das mais sangrentas ditaduras de que se tem notícia em nosso continente.
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11 de Setembro de 1973 - O dia do golpe contra a democracia no Chile
Do livro “Viver e morrer no Chile” de Sergio Augusto de Moraes
Em torno das nove da manhã, caças a jato começaram a dar rasantes sobre a fábrica e, em seguida, ouvíamos o estrondo de explosões. Logo depois chegou a notícia: o La Moneda, sede do governo, estava sendo bombardeado pelos sediciosos.
Os trabalhadores pararam suas máquinas e, logo depois, atendendo a um chamado dos líderes sindicais, dirigiram-se para o local da fábrica que era usado para reuniões. Os oradores se sucediam, verberando a tentativa
de golpe contra o Governo. No final, um representante do CGT transmitiu a seguinte diretiva: aqueles que não tinham um compromisso profundo com o destino do Governo Allende poderiam voltar às suas casas. Os outros deveriam aguardar em seus locais de trabalho. Dos cerca de dois mil trabalhadores da fábrica, pouco mais de duas centenas ficaram ali. Este número era muito menor que aquele que, no dia do Tancazo, poucos meses antes, tinham se alistado para enfrentar os golpistas de armas na mão. Havia uma sensação generalizada de que, dessa vez, a luta seria muito mais dura, e menores as chances de vitória sobre os golpistas.
Os que ficaram eram aqueles dispostos a jogar a vida numa luta que todos sabiam desigual, pois o armamento de que dispúnhamos era, nessas condições, irrisório: algumas espingardas e uns poucos revólveres.
A esperança de que algum regimento se levantasse para defender a legalidade ia decrescendo à medida que as horas passavam. Mesmo assim, formamos grupos que se revezavam nos postos de vigia e nas entradas da fábrica, para defendê-la na remota hipótese de que um grupo
fascista tentasse invadi-la. Tudo indicava que, nesse momento, os fascistas eram representados pelos pilotos dos caças e pelas equipes dos tanques que começavam a aparecer nas ruas. A questão do poder estava sendo decidida em outros lugares e com outros meios.
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Uma vez por mês, eu entrava na fila de uma pequena mercearia em frente à minha casa para comprar o mínimo permitido. Enquanto isso, os atentados se sucediam, promovidos por uma organização de extrema direita, chamada Pátria e Libertad. Certa noite, quando Allende falava à nação, a transmissão saiu do ar e o país mergulhou nas trevas, porque a torre central da rede de energia fora implodida.
Enquanto isso, o Exército fazia incursões nas fábricas e apreendia armas ali guardadas pelos operários. Um livro publicado por uma editora do governo denunciava O'Higgins, o pai da pátria chilena, como traidor do povo, o que deixou indignados os militares. Como se não bastasse, o partido socialista apresentou um projeto no Congresso para instituir no país um programa de ensino marxista, provocando a ira dos democrata-cristãos, que até então apoiavam Allende; os moços da juventude católica espalharam mesas por toda a cidade para colher assinaturas contra o projeto. Para culminar, em junho daquele ano, um grupo de jovens oficiais se sublevou. Ao ouvir pelo rádio o presidente da República rogando às pessoas que saíssem às ruas, valendo-se de paus ou pedras, para enfrentar os golpistas, convenci-me de que ele estava com os dias contados.
Dirigi-me ao palácio La Moneda, sede do governo, como centenas de outras pessoas, solidárias com o presidente. A certa altura, soube-se que uma coluna de tanques vinha em direção ao palácio, mas, ao contrário do que supúnhamos, os tanques vieram reafirmar a autoridade de Allende. A sublevação fora debelada. O susto passou, mas fiquei mais preocupado ainda: teria sido o fim ou o começo do processo golpista?
Dia 10 de setembro, data de meu aniversário, Tereza e meus filhos me ligaram do Brasil. Perguntaram quando iriam se juntar a mim no Chile. "É bom darmos dar um tempo", respondi. "Temo pelo que possa ocorrer aqui." No dia seguinte, às seis da manhã, começou o golpe, com o levante de uma base da Marinha em Valparaíso. Saíra para comprar um litro de leite e, ao voltar, um homem muito nervoso me disse: "O Exército cercou La Moneda. É o fim de Allende". Subi correndo as escadas, entrei no apartamento e liguei o rádio: com voz desesperada, o presidente chileno denunciava a traição dos militares golpistas e afirmava que só morto deixaria o palácio.
Horas depois, estava morto. As emissoras de rádio, ocupadas pelos militares, sugeriam à população que denunciasse os estrangeiros "terroristas", especialmente os brasileiros, que estavam no Chile para implantar o comunismo. Dois dias depois, recebi um telefonema ameaçador dando-me o prazo de um dia para deixar o apartamento. Por duas vezes, fui visitado por militares armados que hesitaram em prender-me quando lhes provei que era membro do Colégio de Periodistas de Chile, entidade jornalística de direita. Antes que voltassem pela terceira vez, tratei de obter um salvo-conduto e cair fora do inferno.
Àquela altura, assumira o poder o general Augusto Pinochet, o mesmo que chegara a La Moneda à frente daquela coluna de tanques para dar garantias ao presidente Allende. Implantaria uma das mais sangrentas ditaduras de que se tem notícia em nosso continente.
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11 de Setembro de 1973 - O dia do golpe contra a democracia no Chile
Do livro “Viver e morrer no Chile” de Sergio Augusto de Moraes
Em torno das nove da manhã, caças a jato começaram a dar rasantes sobre a fábrica e, em seguida, ouvíamos o estrondo de explosões. Logo depois chegou a notícia: o La Moneda, sede do governo, estava sendo bombardeado pelos sediciosos.
Os trabalhadores pararam suas máquinas e, logo depois, atendendo a um chamado dos líderes sindicais, dirigiram-se para o local da fábrica que era usado para reuniões. Os oradores se sucediam, verberando a tentativa
de golpe contra o Governo. No final, um representante do CGT transmitiu a seguinte diretiva: aqueles que não tinham um compromisso profundo com o destino do Governo Allende poderiam voltar às suas casas. Os outros deveriam aguardar em seus locais de trabalho. Dos cerca de dois mil trabalhadores da fábrica, pouco mais de duas centenas ficaram ali. Este número era muito menor que aquele que, no dia do Tancazo, poucos meses antes, tinham se alistado para enfrentar os golpistas de armas na mão. Havia uma sensação generalizada de que, dessa vez, a luta seria muito mais dura, e menores as chances de vitória sobre os golpistas.
Os que ficaram eram aqueles dispostos a jogar a vida numa luta que todos sabiam desigual, pois o armamento de que dispúnhamos era, nessas condições, irrisório: algumas espingardas e uns poucos revólveres.
A esperança de que algum regimento se levantasse para defender a legalidade ia decrescendo à medida que as horas passavam. Mesmo assim, formamos grupos que se revezavam nos postos de vigia e nas entradas da fábrica, para defendê-la na remota hipótese de que um grupo
fascista tentasse invadi-la. Tudo indicava que, nesse momento, os fascistas eram representados pelos pilotos dos caças e pelas equipes dos tanques que começavam a aparecer nas ruas. A questão do poder estava sendo decidida em outros lugares e com outros meios.
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11 de Setembro de 1973 - Lição Duríssima
Alfredo Maciel da SilveiraAcompanhei tudo aqui no Rio pelo rádio. O estampido das bombas sobre o La Moneda, despejadas pelos caças cujo zumbido me lembrava o dos velhos "Gloster Meteor", meus vizinhos de Sepetiba, conhecidos desde a infância. No meio da tarde, o rádio falava de uma contraofensiva, comandada pelo Gen. Carlos Prats, avançando sobre Santiago. Nada! Só boato!
Nunca senti tanto ódio e indignação. Agora mesmo, ao escrever isso, me vem as lágrimas. E olha que sou duro de chorar!
Marcou-me para sempre! E me passa pela lembrança, numa recapitulação rápida, o laboratório da história do século XX e sua herança de sangue.
À noite, reunido com amigos, nós que vivíamos em plena ditadura, e que assistíramos em 1964 as "Marchas da Família com Deus pela Liberdade", recordamos então os dias que antecederam à queda de Allende, dentre muitas outras coisas, o mau presságio das donas de casa nas ruas de Santiago, inaugurando o "bate panelas", e a gritar "Chile si, Cuba no!"...
À frente da Unidade Popular, Allende fora o mais votado nas eleições de setembro de 1970, mas recebera apenas 36% dos votos. Em 27 de outubro foi então eleito Presidente por eleição indireta no Parlamento, com o apoio da Democracia Cristã, por 153 votos contra 35 de Alessandri (Partido Nacional, de direita) e 7 em branco.
Em março de 1973, nas eleições parlamentares, a Unidade Popular obteve apenas 43,4% dos votos, no máximo impedindo a oposição de obter 2/3 do parlamento, o que teria permitido a esta destituir Allende legalmente. (Tirei esses dados da cronologia apresentada por Sergio Augusto de Moraes em seu livro de memórias "Viver e morrer no Chile", eds FAP e Contraponto, 2010).
Como e por que aconteceu o golpe? Como e por que foram destruídas as instituições democráticas chilenas, vindas, ao contrário do Brasil, de longa tradição democrática histórica?
Claro que isto já foi amplamente analisado. A registrar apenas que o Partido Comunista chileno foi o único da Unidade Popular a tentar estancar aquela marcha da loucura e da insensatez!
Quanto a mim, segue o que penso, e que deixo como lição, especialmente para a nossa "esquerda órfã" (se é que me entendem...).
Uma esquerda que não sabe recuar, uma revolução que não pode se defender! No fundo, só uma concepção revolucionária golpista poderia estar por trás do pensamento de uma parte da esquerda chilena que julgava poder avançar sem o consenso majoritário da população, respeitando a principal e maior conquista popular, suas instituições democráticas. Golpista, não por ser revolucionária mas justamente por destruir uma tradição democrática pré existente, por tentar "passar por cima" de suas instituições, por instrumentalizar taticamente a democracia. Havia então uma velada "racionalidade" em tudo aquilo. Uma vanguarda à espera de uma "situação revolucionária" quando então se poria à frente das "massas" e conduziria o cerco ao Estado Capitalista e o assalto final ao poder.
Enfim ainda restam perguntas. Estaria nos dias de hoje plenamente superado um tal erro teórico e prático? Teria sido realmente aprendida a lição do Chile?
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Será que erraram ou erramos todos aqui na AL? Penso que o maior problema foi substimar o poder do império americano capitalista. Talvez.
ResponderExcluirLi Marx pela primeira vez aos 13 anos sob a orientação do meu pai. Um marxista convicto e tambėm cristão que via em Jesus um revolucionårio comunista pacīfico. Décadas se passaram , eu continuo
marxista e o mundo continua sob a opressão do capital. Inferno!
Sim. Ainda era o tempo da tal "Guerra Fria". Mas até hoje o "Império" está vivíssimo. Basta ver o controle e manipulação da "Grande Mídia"....
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