A abominável guerra na Ucrânia
continua.
No Ocidente, a propaganda comandada pelos EUA coloca toda a responsabilidade nas costas da Rússia. Mas os EUA também contribuíram para esta guerra.
Tem valor no mínimo simbólico o fato de as atuais negociações presenciais diretas entre Ucrânia e Rússia se darem ao abrigo e protagonismo da Turquia. Um país do Oriente, não do Ocidente.
Rodada de conversas entre delegações da Rússia e da Ucrânia em Istambul na terça-feira Foto: Conversações russo-ucranianas em Istambul / 29 de março de 2022 – O Globo
O texto de David Harvey, abaixo, nos ajuda a ver os diferentes lados desta questão e entender os caminhos da negociação para terminar com o flagelo.
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Sobre os recentes desenvolvimentos na Ucrânia*
Por David Harvey**
Março - 2022
Submeter-se às leis coercitivas da concorrência, tanto entre empresas capitalistas quanto entre blocos de poder geopolítico, é uma receita para mais desastres, mesmo que o grande capital continue a ver esta escalada, infelizmente, como uma nova avenida para a infinita acumulação de capital no futuro. (D. Harvey)
O que acontece na Ucrânia é, em muitos aspectos, o resultado dos vários processos envolvidos na dissolução do chamado “comunismo real” e do regime soviético.
A eclosão de uma guerra total
após a invasão russa da Ucrânia marca um ponto de inflexão dramático na ordem
mundial. E como tal, não deve ser ignorado pelos geógrafos reunidos hoje
(ainda, infelizmente, através do Zoom) em nossa reunião anual. Portanto,
proponho as seguintes observações não-especialistas como base para discussão.
Há um mito de que a paz reina
no mundo desde 1945 e que a ordem mundial que emergiu da hegemonia
estadunidense serviu, em grande medida, para conter os impulsos bélicos entre
os Estados capitalistas que historicamente competiram entre si. Entende-se que
a competição entre os Estados europeus que causaram as duas guerras mundiais
foi geralmente contida e que a Alemanha Ocidental e o Japão foram pacificamente
reincorporados no sistema mundial capitalista, em parte também para combater a
ameaça do comunismo soviético.
Assim, a fim de mitigar a
concorrência, foram criadas na Europa instituições colaborativas como o mercado
comum, a União Europeia, a OTAN e o euro. Sabemos, no entanto, que desde 1945
houve múltiplas guerras “quentes”, tanto civis como entre Estados, começando
com as guerras da Coreia e do Vietnã e continuando com os conflitos na
Iugoslávia e o bombardeio da Sérvia pela OTAN, as duas guerras contra o Iraque
(uma das quais foi justificada pelas mentiras gritantes dos Estados Unidos
sobre a posse de armas de destruição em massa no Iraque), ou as guerras no
Iêmen, Líbia e Síria.
Até 1991, a ordem mundial era
mais ou menos constantemente colocada contra o pano de fundo da Guerra Fria.
Era uma estrutura que as empresas estadunidenses muitas vezes exploravam a seu
favor, constituindo o que Eisenhower definiu na época como o “complexo
industrial militar”. O cultivo do medo, tanto fictício quanto real, dos
soviéticos e do comunismo foi um elemento-chave desta política.
E suas consequências econômicas
foram ondas recorrentes de inovação tecnológica e organizacional em termos de
armamentos e infraestrutura militar. É verdade que estas tecnologias foram, em
grande medida, também benéficas para a esfera civil, como no caso da aviação, o
desenvolvimento da Internet ou da energia nuclear, e contribuíram muito para
sustentar uma infinita acumulação de capital e a centralização do poder
capitalista em relação a um mercado cada vez mais cativo.
Além disso, em tempos de
dificuldades econômicas, o recurso ao “keynesianismo militar” tornou-se um
desvio recorrente da ortodoxia neoliberal que desde os anos 1970 começou a ser
administrada às populações, mesmo dos países capitalistas avançados. Ronald
Reagan recorreu ao keynesianismo militar para orquestrar uma nova corrida
armamentista contra a União Soviética nos anos 80 que ajudou a pôr fim à Guerra
Fria, ao mesmo tempo em que distorcia as economias dos dois países.
Antes de Reagan, a taxa máxima
de impostos nos EUA nunca estava abaixo de 70%, enquanto que depois de Reagan a
taxa nunca ultrapassou 40%, limitando-se à persistente alegação de que os altos
impostos asfixiam o crescimento econômico. A crescente militarização da
economia dos Estados Unidos depois de 1945 foi acompanhada por uma maior
desigualdade econômica e pela formação de uma oligarquia dominante tanto nos
Estados Unidos quanto em outros lugares, incluindo a Rússia.
A dificuldade enfrentada pelas
elites políticas ocidentais em situações como a atual na Ucrânia é que crises
urgentes e problemas de curto prazo não podem ser resolvidos de forma a
acentuar as próprias raízes subjacentes aos conflitos. É verdade que, mesmo sabendo
que as pessoas inseguras muitas vezes reagem com violência, não podemos
confrontar alguém que vem com uma faca simplesmente usando palavras calmantes
para acalmar suas inseguranças.
Mesmo assim, é preferível
tentar desarmar o atacante sem, por sua vez, fomentar essas inseguranças. Nosso
objetivo hoje deve ser, portanto, lançar as bases para uma ordem mundial
pacífica, colaborativa e desmilitarizada, enquanto limita urgentemente o
terror, a destruição e a perda irresponsável de vidas que esta invasão trará.
O que estamos testemunhando na
Ucrânia é, em muitos aspectos, o resultado dos vários processos envolvidos na
dissolução do chamado “comunismo real” e do regime soviético. Com o fim da
Guerra Fria vieram promessas ao povo russo de um futuro brilhante no qual os
benefícios do dinamismo capitalista e de uma economia liberalizada se
derramariam sobre todos os setores da sociedade. A realidade, no entanto, era
diferente. O sociólogo Boris Kagarlitsky disse, no final da Guerra Fria, que os
russos pensavam que estavam embarcando num avião para Paris, mas no meio do vôo
lhes foi dito: “Bem-vindos a Burkina Faso”.
Depois de 1991, ao contrário do
Japão e da Alemanha Ocidental em 1945, não houve nenhuma tentativa de trazer o
povo e a economia russa para o sistema global. Seguindo as orientações do FMI e
dos principais economistas ocidentais (como Jeffrey Sachs), a doutrina do
choque neoliberal foi adotada como a fórmula mágica para a transição. E quando
isto falhou miseravelmente, as elites ocidentais recorreram ao velho discurso
neoliberal de culpar as vítimas, responsabilizando o povo russo por não ter
sido capaz de desenvolver adequadamente seu capital humano e desmantelar os
muitos impedimentos endêmicos ao empreendedorismo individual (culpando
tacitamente a própria Rússia pela rápida ascensão dos oligarcas). Internamente,
os resultados na Rússia foram desastrosos.
O PIB despencou, o rublo deixou
de ser uma moeda viável (o dinheiro até foi medido em garrafas de vodka), a
expectativa de vida despencou, a posição social das mulheres piorou, as
instituições governamentais e o Estado social soviético entrou em colapso.
Também consolidou uma política mafiosa liderada pelo novo poder oligárquico
cuja rubrica era a crise da dívida de 1998, da qual, dizia-se, a única saída
era mendigar migalhas da mesa dos ricos e submeter-se à ditadura econômica do
FMI. Com exceção dos oligarcas, a humilhação econômica do povo russo foi total.
Para limitar tudo isso, a União Soviética desmembrou-se em repúblicas
independentes constituídas de cima para baixo, sem muito envolvimento popular.
Dentro de dois ou três anos, a
Rússia sofreu uma redução dramática na população e na economia, bem como uma
destruição de sua base industrial que, em termos proporcionais, foi ainda maior
do que aquela sofrida nas antigas regiões industriais dos Estados Unidos
durante os quarenta anos anteriores. Estamos bem conscientes das consequências
sociais, políticas e econômicas da desindustrialização da Pensilvânia, Ohio e
do meio-oeste americano, desde a atual epidemia de opioides até o surgimento de
ondas políticas reacionárias, como o apoio ao supremacismo branco ou o fenômeno
Donald Trump. Mas enquanto o Ocidente se baseava em um suposto “fim da
história” imposto pelos capitalistas, o impacto da terapia de choque na vida
política, cultural e econômica russa era muito mais dramático.
Depois há a questão da OTAN.
Originalmente concebida em termos de defesa e colaboração interestatal, logo se
tornou uma organização pró-guerra dedicada a conter a disseminação do comunismo
e impedir a competição entre os estados da Europa Ocidental de entrar no reino
militar. Em geral, é verdade que ajudou a mitigar a concorrência interna na
Europa, embora a Grécia e a Turquia nunca tenham sido capazes de resolver suas
diferenças sobre o Chipre. Mas na prática, a União Europeia foi muito mais útil
do que a OTAN e, após o colapso da União Soviética, seu principal objetivo se
desvaneceu.
A perspectiva da população
estadunidense se beneficiar de um “dividendo de paz” resultante de cortes
profundos nos gastos de defesa surgiu como uma ameaça real ao complexo
industrial militar. Talvez por esta razão, o intervencionismo da OTAN (que
sempre esteve presente) se tornou mais evidente durante os anos Clinton, em
grande parte quebrando as promessas verbais feitas a Gorbachev [por George Bush
pai, Nota nossa] nos primeiros dias da perestroika. Um exemplo claro disto foi
o bombardeio da OTAN liderado pelos EUA em Belgrado em 1999, onde até mesmo a
embaixada chinesa foi atingida (embora intencionalmente ou acidentalmente permaneça
pouco clara).
Tanto o bombardeio da Sérvia
quanto outras intervenções nas quais os EUA violaram a soberania dos
Estados-nação mais fracos são evocados por Putin como precedentes para suas
ações. A expansão da OTAN até a fronteira da Rússia, numa época em que não
havia ameaça militar, foi mesmo discutida por Donald Trump, que chegou ao ponto
de questionar a própria existência da organização atlântica. Mesmo o
comentarista conservador Thomas Friedman chegou ao ponto de culpar os EUA em
uma recente coluna no New
York Times pelos
últimos desenvolvimentos, dada a abordagem agressiva e provocadora em relação à
Rússia.
Durante os anos 1990, parecia
que a OTAN era uma aliança militar em busca de um inimigo. Agora Putin satisfez
este desejo após ter sido suficientemente provocado e seu ressentimento está em
parte enraizado nas humilhações econômicas do Ocidente e na arrogância
desdenhosa em relação à Rússia e seu lugar na ordem mundial. As elites
políticas americanas e ocidentais deveriam ter percebido que a humilhação é uma
ferramenta desastrosa quando se trata de política externa, cujos efeitos são
muitas vezes duradouros e catastróficos.
A humilhação da Alemanha em
Versalhes desempenhou um papel crucial na escalada que precedeu a Segunda
Guerra Mundial. As elites políticas evitaram repetir o mesmo erro com a
Alemanha Ocidental e o Japão após 1945 através do Plano Marshall, mas voltaram
à estratégia catastrófica de humilhar a Rússia (tanto explícita como
implicitamente) após o fim da Guerra Fria. A Rússia precisava e merecia um
Plano Marshall, mas recebeu as lições paternalistas da bondade do
neoliberalismo que caracterizou os anos 1990.
Também o século e meio de
humilhação imperialista ocidental da China, que pode ser traçado desde as
ocupações japonesas dos anos 30 e o infame Massacre de Nanjing, está
desempenhando um papel central na geopolítica contemporânea. A lição é simples:
se você quer humilhar, faça-o por sua conta e risco, porque os humilhados podem
se revoltar e, por que não, morder de volta.
Nada disso justifica as ações
de Vladimir Putin, mais de quarenta anos de desindustrialização e punição
neoliberal dos trabalhadores não justifica as ações ou posições de Donald
Trump. Mas o ataque de Putin à Ucrânia não justifica a ressurreição de
instituições belicistas como a OTAN, que tanto fizeram para criar o problema. Assim
como a competição entre Estados europeus teve que ser desmilitarizada depois de
1945, hoje devemos procurar frear as corridas de armas entre blocos e fomentar
instituições fortes de colaboração e cooperação. Submeter-se às leis
coercitivas da concorrência, tanto entre empresas capitalistas quanto entre
blocos de poder geopolítico, é uma receita para mais desastres, mesmo que o
grande capital continue a ver esta escalada, infelizmente, como uma nova
avenida para a infinita acumulação de capital no futuro.
O perigo em um momento como
este é que o menor erro de julgamento de qualquer dos lados poderia facilmente
levar a uma escalada em um grande confronto entre potências nucleares, no qual
a Rússia consegue fazer frente à superioridade militar até então esmagadora dos
EUA. O mundo unipolar no qual as elites americanas viveram durante os anos 1990
já foi substituído por um mundo bipolar, mas muito mais ainda está mudando.
Em 15 de fevereiro de 2003,
milhões de pessoas ao redor do mundo saíram às ruas para protestar contra a
ameaça de guerra, no que até o The New York Times reconheceu como uma expressão
marcante da opinião pública mundial. Infelizmente, os protestos fracassaram e o
que se seguiu foram duas décadas de guerras destrutivas e ruinosas em muitas
partes do mundo. É claro que o povo da Ucrânia não quer guerra, nem os russos e
europeus querem guerra, nem os povos da América do Norte querem outra guerra. O
movimento popular pela paz precisa ser reavivado e reafirmado. Os povos do
mundo devem afirmar seu direito de participar da criação de uma nova ordem
mundial baseada na paz, cooperação e colaboração, em vez de competição,
coerção, conflito e ressentimento.
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(*)Discurso na reunião anual da Associação de Geógrafos Americanos, 27 de fevereiro de 2022. Publica-se em português conforme o site A Terra é redonda , de 07/03/2022. Originalmente publicado em inglês no Focaalblog .
(**)David Harvey é professor na City University of New York. Autor, entre outros livros, de O novo imperialismo (Loyola).
Conforme o ultimo paragrafo, para que isso ocorra, é preciso que haja uma democracia verdadeira e não esse fingimento. Me pergunto sempre ha uma verdadeira democracia num sistema capitalista ?
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