Sérgio de Azevedo Morais*
Maio-2019
A publicação, neste blog, em
julho de 2018, do ótimo artigo de Sergio Augusto de Moraes cotejando reflexões
do escritor Yuval N. Harari sobre a evolução da espécie humana, expostas em seu
livro “SAPIENS - Uma breve história da humanidade”, com o pensamento de Marx e
Engels sobre o mesmo tema, convida a uma indagação sobre o futuro dessa
evolução e, em especial, sobre a provável influência desse processo sobre a
espécie humana nos séculos e milênios à nossa frente.
Imagem - Cirque du Soleil |
“Dizemos que essas alterações são acidentais, que ocorrem ao acaso. E, porque elas constituem a única fonte possível de modificações do texto genético, segue-se necessariamente que apenas o acaso está na fonte de toda novidade, de toda criação na biosfera. O acaso puro, o só acaso, liberdade absoluta, mas cega, na raiz mesma do prodigioso edifício da evolução: hoje essa noção central da biologia moderna não é mais uma hipótese entre outras possíveis, mais ou menos concebíveis. É a única hipótese concebível, como também a única compatível com os fatos da observação e da experiência.”
É sabido que a certeza acima
expressa não é compartilhada por todos. O que não nos impede de prosseguir. Mas
não sem antes informar – o que pode interessar aos amigos deste blog – que
Jacques Monod foi um herói da resistência francesa à ocupação alemã durante a
segunda guerra mundial, tendo militado no Partido Comunista Francês nos últimos
anos da guerra.
Prossigamos. A evolução, naturalmente,
não se resume às mutações genéticas. Sabemos que determinadas mutações tornaram
os indivíduos em que elas ocorreram mais – ou, eventualmente, menos – competitivos
na luta pela vida, e este fator foi decisivo para a sobrevivência ou a extinção
de todas as espécies que existem ou existiram em nosso planeta. Além disto, a
sobrevivência e o predomínio de determinadas espécies foram favorecidos ou
prejudicados pelo ambiente em que os seres mutantes estavam inseridos, por
fenômenos naturais etc. No caso do Homo Sapiens e de seus ancestrais hominídeos,
é evidente que as formas de organização social existentes à época em que as
mutações se deram também influenciaram o sucesso ou a derrocada dos indivíduos
mutantes.
Admite-se, de forma mais ou
menos consensual, que no período abrangido pela História a configuração
genética dos seres humanos tem-se mantido essencialmente estável. E parece
razoável supor que, com as enormes populações distribuídas atualmente por todo
o planeta, e com os conhecimentos e recursos à disposição das sociedades
humanas, mutações genéticas que possam eventualmente ocorrer agora em alguns
indivíduos não serão seguidas pela extinção dos indivíduos não mutantes – que em
qualquer caso, formarão a imensa maioria.
Se for verdadeira a assertiva
acima, a evolução humana possível ficará restrita à esfera dos fatos da
consciência, da psique, da cultura, da organização social.
Jean-Jacques Elisée Reclus
(1830-1905), um geógrafo e pensador anarquista que participou da Comuna de
Paris e da primeira Internacional dos Trabalhadores, foi um pioneiro das preocupações
com a Terra e a proteção do meio ambiente. É dele a seguinte sentença, notável
tanto pela profundidade do “insight” quanto pela concisão de sua formulação: “O
homem é a natureza tomando consciência dela mesma” (L’homme est la nature
prenant conscience d’elle-même). Sentença relevante para a discussão da evolução,
repetida, com pequenas variações (como: “no homem a natureza toma consciência
de si mesma”), por pensadores de diversas orientações, como Nietschee Allan
Watts.
A sentença de Reclus parece
sugerir a existência de um “propósito” na natureza, que assim ficaria, de certa
forma, “humanizada”. Muitos pensadores e especialistas nos advertem contra esta
idéia. O próprio Jacques Monod afirmava:
“O primeiro postulado científico é a objetividade da natureza: a natureza não tem nenhuma intenção ou meta”.
“A ciência moderna ignora toda imanência. O destino se inscreve na medida em se que cumpre, não antes. O universo não estava grávido da vida, nem a biosfera, do homem. Nosso número saiu no jogo de Monte Carlo.”
Seja como for, se admitirmos
que, como acima dito, a evolução humana atualmente possível ficou restrita à
esfera dos fatos da consciência, da psique, da cultura, da organização social,
podemos aceitar como desenvolvimentos evolutivos possíveis certos cenários vislumbrados
– com maior ou menor clareza – por alguns pensadores. Embora muitos dos
cenários anunciados possam ser considerados utópicos, não é absurdo admitir que
as aspirações, os sonhos e as utopias de quem quer que seja são também, em
certa medida, aspirações, sonhos e utopias da própria espécie humana. E a
evolução possível de nossa espécie só poderá ocorrer no sentido da realização
de pelo menos algumas delas.
Para ilustrar o que dissemos,
apresentamos em seguida três textos inspirados e inspiradores de autores de
épocas, origens e formação diversas: Rudyard Kipling(1865-1936), Francisco de
Assis (1182-1226) e Lev Trotsky (1879-1940). Eles nos
propõem ou nos anunciam modos mais perfeitos de sermos humanos, refletindo idéias
de algumas das escolas de pensamento que têm influenciado nossa caminhada no
mundo: o Cristianismo, o Estoicismo e o Marxismo. Embora só um dos mencionados
textos mencione explicitamente o “super-homem”, o homem melhor, o homem novo, é
dele que todos falam.
Ouçamos essas vozes. Elas tocam
a sensibilidade de todos, independentemente de suas convicções, por serem fruto
da labuta, da fé, do suor e do pranto, assim como da paixão, das lutas e do
júbilo de multidões de pessoas, anônimas ou não, que passaram por este planeta.
Elas expressam aspirações, sonhos e utopias de toda a espécie humana.
Se
Se és capaz de manter a tua calma quando
Todo o mundo ao teu redor já a perdeu e te culpa;
De crer em ti quando estão todos duvidando,
E para esses no entanto achar uma desculpa;
Se és capaz de esperar sem te desesperares,
Ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
E não parecer bom demais, nem pretensioso;
Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,
De sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se encontrando a desgraça e o triunfo conseguires
Tratar da mesma forma a esses dois impostores;
Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas
Em armadilhas as verdades que disseste,
E as coisas, por que deste a vida, estraçalhadas,
E refazê-las com o bem pouco que te reste;
Se és capaz de arriscar numa única parada
Tudo quanto ganhaste em toda a tua vida,
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
Resignado, tornar ao ponto de partida;
De forçar coração, nervos, músculos, tudo
A dar seja o que for que neles ainda existe,
E a persistir assim quando, exaustos, contudo
Resta a vontade em ti que ainda ordena: "Persiste!";
Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes
E, entre reis, não perder a naturalidade,
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
Se a todos podes ser de alguma utilidade,
E se és capaz de dar, segundo por segundo,
Ao minuto fatal todo o valor e brilho,
Tua é a terra com tudo o que existe no mundo
E o que mais - tu serás um homem, ó meu filho!
Rudyard Kipling, 1895 (tradução de Guilherme de Almeida)
Oração de Francisco de Assis
Senhor, fazei de mim um instrumento da Vossa paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor.
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.
Onde houver discórdia, que eu leve a união.
Onde houver dúvidas, que eu leve a fé.
Onde houver erro, que eu leve a verdade.
Onde houver desespero, que eu leve a esperança.
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria.
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.
Onde houver discórdia, que eu leve a união.
Onde houver dúvidas, que eu leve a fé.
Onde houver erro, que eu leve a verdade.
Onde houver desespero, que eu leve a esperança.
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria.
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, fazei que eu procure mais:
consolar, que ser consolado;
compreender, que ser compreendido;
amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe.
É perdoando que se é perdoado.
E é morrendo que se vive para a vida eterna.
consolar, que ser consolado;
compreender, que ser compreendido;
amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe.
É perdoando que se é perdoado.
E é morrendo que se vive para a vida eterna.
(Tradutor desconhecido)
O homem novo
“O homem será capaz de mover
rios e montanhas, de construir palácios para o povo no topo do Mont Blanc e no leito
do Atlântico; ele naturalmente será também capaz de comunicar a sua vida diária
não apenas riqueza, colorido e intensidade, mas também supremo dinamismo... O
homem assumirá como tarefa tornar-se mestre de seus próprios sentimentos, elevar
os seus instintos até o ápice da consciência, torná-los transparentemente
claros, implantar fios de guia (guiding threads) sob o limiar da consciência,
criando assim um tipo sócio-biológico mais elevado ou – se quiserem – um
super-homem. O homem se tornará incomparavelmente mais forte, mais sábio, mais
refinado. O seu corpo – seus movimentos com maior harmonia, sua voz com mais
ritmo – mais musical; as formas de existência adquirirão uma teatralidade
dinâmica. O ser humano médio será exaltado ao nível de um Aristóteles, Goethe,
Marx. Acima deste ápice novos cumes serão elevados.”
Lev Trotsky, Literatur und
Revolution, Viena, 1924 (pp. 176-9)
(tradução do inglês por Sérgio
de Azevedo Morais)
_______________________
(*) Sérgio de Azevedo Morais é engenheiro - UFRJ e Mestre em Ciências - Manchester University, Inglaterra.
_______________________
(*) Sérgio de Azevedo Morais é engenheiro - UFRJ e Mestre em Ciências - Manchester University, Inglaterra.
Meu pai, de onde estiver, está lhe aplaudindo
ResponderExcluirE eu o aplaudo de volta. Obrigado.
ExcluirO autor
Sérgio, você está de parabéns pelo maravilhoso trabalho, nessa época de mediocridades e de ignorância. Um grande abraço.
ResponderExcluir