Urgente: A retomada do desenvolvimento (II)

Sérgio Gonzaga de Oliveira (*)
Maio - 2019
No primeiro artigo dessa série, publicado em março próximo passado, destaquei a importância e a natureza política de um projeto de desenvolvimento para o Brasil. Pretendo agora tentar um diagnóstico que nos dê uma visão abrangente da estagnação da economia nos últimos 40 anos. Com essa intenção são analisadas sucessivamente a acumulação de capital, a formação dos mercados, a dinâmica populacional e a produtividade.
No período de 1930 a 1980 quando as taxas de crescimento superaram, em média, os 6% ao ano, uma das principais ações estratégicas para o desenvolvimento era a política de “substituição de importações”. Durante o “milagre econômico”, na década de 70, essa política foi radicalizada. Havia uma clara exigência de que tudo, ou quase tudo, fosse produzido internamente. Lembro que nessa época trabalhava no Projeto Carajás e a importação era muito difícil. Quando nossas avaliações indicavam que alguns equipamentos não podiam ser produzidos no Brasil, éramos obrigados pela legislação a fazer o que se chamava de "Lista Cacex", onde indicávamos tudo que pretendíamos importar. Esses documentos eram tornados públicos e as Federações das Indústrias, ou órgãos similares na época, concordavam ou não com a importação, indicando fabricantes nacionais nos itens que julgavam que pudessem ser produzidos no Brasil. Não se comprava nada no exterior sem a aprovação dos fabricantes locais. A Petrobrás nesse tempo desenvolvia um extenso programa de capacitação de fabricantes nacionais para suas encomendas.
Plataforma de  petróleo
No final dos anos 70 do século passado o ciclo de substituição de importações se esgotou. O Brasil emergiu para a democracia em meados dos anos 80 com um parque industrial bastante diversificado. Os penosos ciclos de monocultura agrícola tinham, em grande parte, ficado para trás. No entanto, esse extenso período foi marcado por longos anos de ditadura, desrespeito aos direitos humanos, forte concentração de renda e agressões ao meio ambiente.

A acumulação de capital

Mas o ciclo de substituição de exportações não foi só isso. Além das rigorosas barreiras à importação, foram atraídos capitais estrangeiros que se instalaram no Brasil sob forte proteção alfandegária e subsídios de toda a ordem. Paralelamente o Estado investiu pesadamente em indústrias de base (siderurgia, química, petróleo e outros) e infraestrutura física (energia e transporte, principalmente), tendo em vista que os capitais privados eram escassos ou não se dispunham a arriscar em projetos de tão longo prazo. Certamente esses investimentos públicos foram tão importantes para esse ciclo de desenvolvimento quanto a política de substituição de importações.  Nesse período, a acumulação de capital pelo Estado não provinha somente da diferença positiva entre as receitas e despesas resultantes de suas atividades correntes. Os capitais estatais, na falta de superávits fiscais significativos, foram obtidos por um misto de emissão de moeda, aumento da dívida pública ou elevação de impostos.
A má notícia para o período atual é que essas fontes extras de recursos estatais parecem esgotadas. Após a hiperinflação do final dos anos 80 e início dos 90 é praticamente impossível, do ponto de vista político, contar com emissão significativa de moeda devido ao risco de retorno da inflação. O endividamento público parece também ter chegado próximo ao limite máximo. Em um país cronicamente instável é preciso conter essa dívida em níveis razoáveis para evitar mais instabilidade futura.O total de impostos, por outro lado, está bem próximo da média dos países da OCDE e a opinião pública tem reagido fortemente à sua elevação.
Com essas restrições, o retorno da capacidade de investimento do Estado brasileiro dependerá da redução das despesas correntes do governo e, principalmente, da retomada do crescimento, que promova o aumento da receita pública. Numa primeira etapa, tudo indica que as fontes possíveis de acumulação de capital e investimentos produtivos estejam no setor privado.

A formação dos mercados: produção e consumo

A grande exceção ao padrão geral de estagnação, observado nas últimas quatro décadas, têm sido as atividades de produção e exportação de commodities agrícolas e minerais. Mesmo com a instabilidade crônica e a falta de perspectivas para o futuro, as exportações de commodities saltaram de 17 para 140 bilhões de dólares nas últimas duas décadas. Enquanto isso, os demais produtos exportados evoluíram de 35 para 99 bilhões, num aumento bem mais modesto (Comex Stat / Ministério da Economia). Esse “milagre” se deve à elevada produtividade obtida por esses setores em comparação com seus competidores internacionais. Na área agrícola e florestal, as condições muito favoráveis do solo e do clima brasileiro, associado às tecnologias desenvolvidas pela Embrapa, são em grande parte responsáveis por essa alta produtividade. Na área mineral e de petróleo não é diferente. Na extração de petróleo a tecnologia da Petrobrás para águas profundas é dominante. Naturalmente, o crescimento do consumo nos países emergentes, principalmente asiáticos, é a outra ponta desse sucesso. As cadeias produtivas das commodities envolvem máquinas, equipamentos, fertilizantes, indústrias de processamento, laboratórios, instrumentos, desenvolvimento genético e tecnológico, pesquisas, serviços financeiros e muitos outros.Tratar a exportação de commodities no Brasil atual como uma atividade “primária” e compará-la com os ciclos de monocultura do período pré-industrial, onde os produtos agrícolas eram obtidos com baixa tecnologia e mão de obra escrava ou semiescrava, parece pouco convincente. Principalmente porque a produção de commodities no Brasil é muito diversificada. São cadeias produtivas que não ficam nada a dever em termos tecnológicos e gerenciais a uma boa parte da indústria de transformação. É um setor muito dinâmico, com alta capacidade de acumulação de capital e fonte de estabilização das contas externas. Merece toda atenção em qualquer planejamento de desenvolvimento de longo prazo.
Já do ponto de vista da formação do mercado de consumo interno o Brasil tem uma grande limitação. Estudos comparativos entre países de desenvolvimento recente mostram que uma melhor distribuição de renda no início do processo favoreceu os emergentes de maior sucesso. O livro “A Ascensão do Resto”, publicado no Brasil pela Editora da UNESP e de autoria da professora Alice H. Amsden do Massachusetts Institute of Technology (MIT), tem uma boa contribuição nessa direção. Nesse ponto a herança oligárquico-escravagista do Brasil colônia, com um histórico de concentração de renda muito elevado, certamente pesou negativamente. De qualquer forma, o Brasil possui ainda hoje uma das piores distribuições de renda do planeta. É o nono país mais desigual do mundo segundo avaliação recente da ONU em um total de 108 nações. É desanimador constatar que a oitava economia do planeta esteja tão atrasada nesse quesito. O Brasil possui grande número de instituições e políticas públicas que operam no sentido da concentração de renda. O mais conhecido é o sistema de impostos, altamente regressivo, onde os mais pobres pagam mais impostos. Mas não é só isso. Muitas outras políticas públicas agravam e eternizam a distância entre pobres e ricos. Além do mais, não devemos esquecer que uma boa distribuição de renda é o melhor caminho para a formação de um forte mercado de consumo interno.
Ainda sobre a formação dos mercados, existe uma séria ameaça ao sistema produtivo que tem sido negligenciada sucessivamente pela sociedade e governos brasileiros. Trata-se da preservação do meio ambiente. No caso da Amazônia os números são alarmantes. Nessas últimas cinco décadas nada menos que 20% da floresta nativa foi destruído (BBC/WWF/2018). Estudos recentes sugerem que a destruição dessa floresta poderá afetar seriamente o clima do centro oeste e do sudeste brasileiro, atingindo mortalmente a agricultura em uma das áreas mais dinâmicas da economia (ARA/INPE/INPA/2014). Embora os estudos não sejam conclusivos a simples hipótese é muito preocupante. Vários outros pontos relacionados ao meio ambiente devem ser cuidadosamente observados no planejamento para o desenvolvimento. Os prejuízos pela negligência podem ser elevados, como se observa no caso das barragens das mineradoras, especialmente em Minas Gerais.

A dinâmica demográfica

No passado recente, o Brasil conviveu com uma expansão populacional significativa. Segundo os censos decenais e projeções do IBGE, entre os anos de 1950 e 2017o país passou de uma população de 51,9 milhões de habitantes para 207,6 milhões, num crescimento de cerca de 4 vezes. Apenas para efeito de comparação, num período equivalente a Coréia do Sul teve um aumento populacional de 2,4 vezes,revelando uma expansão demográfica bem mais modesta (United Nations Data).
A explosão populacional nesse período não foi um fenômeno demográfico único. Foi acompanhada por uma intensa migração do campo para as cidades. Em 1950 a população urbana brasileira era de cerca de 36% do total. A grande maioria morava no campo. No espaço de 60 anos a situação se inverteu e a população das cidades passou para 84% do total (IBGE).
Esse duplo fenômeno provocou uma imensa oferta de força de trabalho nas cidades brasileiras, quase que simultaneamente ao desenvolvimento industrial conduzido pela política de substituição de importações e pesados investimentos estatais. Como era de se esperar os salários foram bastante rebaixados. Marx diria que se formou nas cidades brasileiras um gigantesco “exército industrial de reserva” que, dada a sua amplitude, promoveu uma elevada concentração de riqueza nas mãos das elites e um forte empobrecimento nas camadas populares. Tinha-se instalado o caldo de cultura para a continuidade da péssima distribuição de renda que herdamos do ciclo oligárquico-escravagista do Brasil colônia.
Entretanto, esses dois movimentos populacionais estão chegando ao fim. As projeções do IBGE indicam que em duas décadas a população se estabilizará. O grande desafio para um projeto de desenvolvimento inclusivo, daqui em diante, é incorporar à cidadania e ao sistema produtivo essas populações marginalizadas. Cabe lembrar que outro movimento importante surgiu no rastro da estabilização demográfica: o envelhecimento da população que cria pressões adicionais na saúde e na previdência social. A compensação dessas pressões deverá ser obtida pelo aumento da produtividade dos trabalhadores na ativa e não pela redução do valor das atuais aposentadorias, principalmente dos mais vulneráveis que na maioria das vezes fica aquém da sobrevivência.

Os desafios da produtividade

A persistente estagnação de longo prazo da produtividade na economia brasileira tem preocupado muito os economistas. A produtividade não é um fenômeno simples. Abrange pelo menos duas dimensões intimamente relacionadas: a produtividade interna às unidades de produçãoe aquela que poderíamos denominar de produtividade básica da economia. A produtividade interna está associada à tecnologia e às praticas gerenciais adotadas por cada fabricante. Já a produtividade básica é formada, em grande medida, por fatores externos aos produtores. Na sua face mais visível, depende da existência de um sistema nacional de tecnologia, organizado para apoiar ativamente o setor produtivo na incorporação de inovações tecnológicas e gerenciais. Nesse ponto o Brasil deixa muito a desejar. Tradicionalmente, os investimentos em tecnologia são baixos e a industrialização brasileira não saiu da primeira fase, onde as novas tecnologias são sistematicamente importadas.
Mas não é só isso. A produtividade básica depende muito do estágio em que se encontra a infraestrutura física (energia, comunicações e transportes) que age transversalmente, elevando a produtividade de todos os setores. Nesse aspecto o Brasil está muito aquém de suas necessidades. A energia é cara, as comunicações são precárias e o transporte de cargas é majoritariamente rodoviário.
Mais significativa ainda é a péssima situação da infraestrutura social (educação, saúde, habitação, saneamento e mobilidade urbana). Com educação de baixa qualidade, saúde precária, morando em condições sub-humanas, num ambiente insalubre e perdendo longas horas no percurso casa-trabalho, o trabalhador médio brasileiro é um herói anônimo. É inacreditável que consiga produzir alguma coisa. Alta produtividade, nem pensar.
Por fim, mas não menos importante, a eficiência do Estado afeta muito a produtividade básica. Nesse ponto, o Brasil fica muito mal na foto. O Estado brasileiro é burocrático, lento e confuso na condução dos assuntos de sua responsabilidade. Um exemplo escandaloso é a lentidão da justiça. Os processos judiciais demandam muito tempo e energia das empresas e cidadãos. O confuso e burocrático sistema de impostos é também outro fator de baixo rendimento.
A rigor esta análise deveria incluir outros aspectos da realidade atual, mas para não alongar muito o texto, fico por aqui. Acredito que esses sejam os pontos mais relevantes. E com base neste diagnóstico, bastante simplificado é verdade, pretendo no terceiro e último artigo dessa série encaminhar algumas sugestões de diretrizes estratégicas que nos ajudem a construir um projeto político de desenvolvimento de longo prazo.
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(*) Sérgio Gonzaga de Oliveira é engenheiro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e economista pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)


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