"No cerne do texto constitucional, entretanto, vige o princípio da solidariedade, antípoda desde E. Durkheim, das concepções utilitaristas, alvo oculto das campanhas bolsonaristas em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, acompanhando a orientação da candidatura presidencial e do seu principal consultor econômico de explícita adesão ao ideário do neoliberalismo....(Na Constituição de 88)...a solidariedade foi elevada a princípio fundador da República, com o mesmo estatuto dos princípios da liberdade e da igualdade, conferindo caráter público à previdência social, que ora muitos dos atuais eleitos querem deslocar para a dimensão do mercado".(Luiz Werneck Vianna, em seu artigo mensal no Estadão, "A hora dos intelectuais", 4/11/2018).Segue o artigo*.
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Luiz Werneck Vianna |
A hora dos intelectuais
Luiz Werneck Vianna**
O martelo está batido.
Começamos uma nova história sem uma idéia na cabeça, condenados em meio às
trevas a tatear em busca de um caminho para uma sociedade que se perdeu de si
mesma, do seu passado e de suas melhores tradições, tanto nas elites como nos
setores subalternos. É hora de recolher os cacos, identificar as raízes dos
nossos erros, da autocrítica impiedosa quanto aos rumos equívocos em que nos
deixamos enredar e ameaçam pôr sob risco nossas conquistas democráticas.
Trata-se de uma derrota política levada a efeito no campo do processo
eleitoral, terreno que sempre identificamos como propício ao avanço dos temas
sociais e das lutas pela igualdade, e cuja expressão quantitativa ainda mais
denuncia a sua gravidade e o alcance de suas repercussões.
Mas com o erro também se aprende e não são poucas as lições que essa miserável sucessão presidencial deixa como legado para os que recusam que o veneno do que há de mais anacrônico no passado volte a assumir as rédeas do nosso futuro, como nesse retorno patético ao anticomunismo do presidente eleito, que, na verdade, visa a atingir a nossa Constituição. Com efeito, fora os artifícios de mão usados na campanha vitoriosa de Bolsonaro, como o desse No cerne do texto constitucional, entretanto, vige o princípio da solidariedade, antípoda desde E. Durkheim, das concepções utilitaristas, alvo oculto das campanhas bolsonaristas em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, acompanhando a orientação da candidatura presidencial e do seu principal consultor econômico de explícita adesão ao ideário do neoliberalismo.
O princípio da solidariedade e
o centro político guardam relações antigas no processo de modernização
conservadora do País, pois se iniciam com Vargas na legislação social sob a
inspiração do corporativista Oliveira Vianna, embora sob o registro restritivo
do autoritarismo e da tutela dos trabalhadores. Depurada dessa chave a
Constituição, que é obra do centro político, solidariedade foi elevada a
princípio fundador da República, com o mesmo estatuto dos princípios da
liberdade e da igualdade, conferindo caráter público à previdência social, que
ora muitos dos atuais eleitos qauerem deslocar para a dimensão do mercado.
Dessa perspectiva, não se pode
ignorar talento político aos estrategistas do campo vitorioso, que mantiveram
sob estrita clandestinidade seu programa in pectore de reformas, inclusive as constitucionais,
confiando ao PT e a seus aliados e aos intelectuais que gravitavam em torno
dele, em nome da luta contra a corrupção, a tarefa de implosão do centro
político, trave-mestra da arquitetura constitucional e de suas principais instituições,
como o Poder Judiciário, como em escandaloso fato recente vindo à luz por
inconfidências palacianas em que se ameaçava o Supremo Tribunal Federal.
Caem os véus e já se divisa a
situação de risco a que seremos submetidos. Querem nos reduzir ao Homo
economicus, aqui, no país do carnaval, do Círio de Nazaré, do culto de massas a
Nossa Senhora Aparecida e do candomblé, onde o capitalismo jamais foi uma ideia
popular, vindo de cima por imposição do Estado. Aqui, onde as favelas são
denominadas comunidades e o individualismo metodológico só existe na
bibliografia importada, vinculados que estamos às nossas raízes ibéricas, na
forma do belo estudo de Rubem Barbosa Filho em Tradição e
Artifício (UFMG, 1998), em trilha aberta pelo saudoso brasilianista Richard
Morse.
O sistema de defesa contra a
barbárie está à mão e começa a operar na defesa da Carta de 88, reduto das
nossas melhores tradições e programa para uma futura social-democracia, que ela
já contém em embrião. Seus defensores estão alinhados, à frente de todos o
decano do STF, o ministro Celso de Mello. Os primeiros esboços do que deverá
ser a oposição começam a ser debatidos, e digno de atenção é o pequeno texto do
ensaísta Antonio Risério Por um outro caminho, em que se sustenta a tese
da necessidade “de construção de um novo e contemporâneo partido de
centro-esquerda verdadeiramente centrado no campo da social-democracia. (...) A
fusão de PPS, Rede e PV (linha Eduardo Jorge) pode vir a ser um passo primeiro
e fundamental. Mas é preciso trazer para este campo magnético os focos genuínos
da social-democracia que ainda resistem (minoritários) no PSB e no PSDB. Tentar
trazer também para este processo construtivo os raros verdadeiros democratas
que insistem em tentar sobreviver no MDB. E em outros movimentos e instâncias
da sociedade”.
Esse sistema geral de
orientação não sairá do papel sem os intelectuais, a quem coube assumir
posições de vanguarda na formação da opinião pública em momentos cruciais da
história do nosso país, tal como no movimento abolicionista pela obra e ação de
Nabuco, Antônio Rebouças e José do Patrocínio, e mais recentemente nas lutas
sociais e políticas em favor de um Estado Democrático de Direito, pelo
envolvimento ativo de personalidades que, entre tantas, podem ser lembradas: Florestan
Fernandes, Raimundo Faoro e Fernando Henrique Cardoso. O momento da hora
presente confronta nossos intelectuais com desafios e exigências do mesmo
calibre.
Na cena política aberta à nossa
frente não há como negar que o longo ciclo da modernização conservadora chegou
ao fim nesta triste sucessão presidencial. O passado não mais ilumina, como
diria um grande autor, e não se pode ser mais fiel a ele. Reflexividade não é
um conceito da moda entre cientistas sociais, mas uma exigência do tempo
presente que requer de cada um de nós a escolha do caminho a seguir quando nos
devemos soltar do que nos aparecia como destino de um país do Terceiro Mundo e
dele prisioneiros. Sem os intelectuais não faremos isso.
(*) publicado originariamente
em O Estado de São Paulo, 4 de novembro de 2018,https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-hora-dos-intelectuais,70002583391
(**) Sociólogo, PUC-RIO
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