"É hora de recolher os cacos,
identificar as raízes dos nossos erros, da autocrítica impiedosa quanto aos
rumos equívocos em que nos deixamos enredar e ameaçam pôr sob risco nossas
conquistas democráticas". Porque sem isto não conseguiremos enfrentar e derrotar
esse grupo nefasto que a partir de janeiro toma posse no Poder Executivo. É
esta a trilha percorrida por Werneck Vianna neste novo artigo, “Bye bye,
Brasil?”em seguimento ao anterior já postado neste Blog.
Mãos à obra.
Luiz Werneck Vianna |
Bye bye, Brasil?*
Luiz Werneck Vianna**
Bye bye, Brasil, querem nos
embarcar para uma terra nova – por ora, está difícil de evitar – sem reinações
de Narizinho, sem Jubiabá, sem um catolicismo gordo e compassivo, sem o culto
da cordialidade, sem o jagunço do Euclides da Cunha e os retirantes de
Graciliano, o abolicionismo do Nabuco, sem Gilberto Freyre, sem a Coluna
Prestes, até sem a Petrobrás e o Banco do Brasil, sair assim, com as mãos
abanando e as cabeças vazias. O embarque deve ser imediato, para que nós, que
mal conhecemos o liberalismo, num país onde jamais o capitalismo foi uma ideia
popular, passemos direto ao neoliberalismo e ao culto da teologia da
prosperidade, glória a Deus.
Cirurgia de tal envergadura não
é obra solitária, ela foi concebida durante décadas com argumentos vindos de
vários setores da vida social, inclusive do PT, que desde suas origens investiu
contra a tradição republicana brasileira e o centro político que a encarnava,
tal como no episódio famoso, ocorrido em pleno regime militar, em que sua
principal liderança declarou que o principal inimigo das classes trabalhadoras
era a CLT, e não o AI-5, vindo a sustentar um sindicalismo de resultados em
oposição às antigas lideranças sindicais, em boa parte tradicionalmente
associadas ao centro político. Em outro momento, com Lula candidato em segundo
turno à sucessão presidencial vencida por Collor, seu partido recusou a
participação em seu palanque de Ulysses Guimarães, um dos grandes próceres do
nosso liberalismo político, como antes declinara assinar a Carta de 88, obra,
no fundamental, do centro político, sob a inspiração desse mesmo Ulysses, que a
apresentou ao mundo com palavras memoráveis.
A desconstrução do centro
político contou com a ação de outros personagens, como setores das elites
originárias da dimensão do mercado, desde sempre, tal como no caso da sua
acirrada oposição, nos anos 1930, à legislação social, refratária à regulação
pelo direito da vida social e ao embrião de social-democracia admitido pela Carta
de 88. E mais recentemente, pela ação do Ministério Público, que interpretou em
chave salvacionista a luta justa e necessária contra a corrupção sem atentar
para as suas consequências e sem discriminar alhos de bugalhos, comportando-se
como um macaco solto numa loja de louças, com o que levou à lona a sua
representação política.
Estamos em pleno mar, navegando
com mapas incertos e pilotagem inexperiente, ela própria sem saber para onde
nos quer levar. Os quadros econômicos selecionados pelo governante eleito, os
principais formados na ortodoxia da Escola de Chicago, com seus compromissos
conceituais e práticos com os processos de globalização, inarredáveis na medida
em que correspondem a movimentos seculares das coisas pertinentes à economia
mundo, ao menos desde as grandes navegações empreendidas pelo Ocidente – nossa
Ibéria à frente –, em suas cabines de comando já se encontram contestados pelo
trumpismo do futuro chanceler Ernesto Araújo. A bússola deve estar apontada
para qual destino: o da globalização ou o da denúncia do globalismo?
Ruma-se para qual direção, a da
autarquia e a do nacionalismo (isso com a turma do Paulo Guedes?), que, na
linguagem de Trump, significa America first, atrelando nossa pobre carroça aos
objetivos imperiais do presidente americano, que se deixou embair pela
anacrônica guerra de civilizações ideada por Samuel Huntington?
Logo nós, que não viemos da
matriz anglo-saxônica, mas da ibérica, e somos da família dos bandeirantes, e
não da dos pioneiros, para lembrar as antigas lições de Viana Moog; nós, que
seguimos a estrada universal em direito do sistema da civil law, esta, sim,
entranhada na História do Ocidente, ao contrário do sistema da common law, que
Hegel, por exemplo, não reconhecia como filho da razão, e sim do casuísmo de
uma cultura singular, sem protagonismo, portanto, na marcha do espírito com que
a criatura buscava seu encontro com seu Criador. O Ocidente é uma criação
europeia e é aí que nós, os americanos, como reconheceram os fundadores da
grande República do Norte, cultores dos autores do Iluminismo nos Federalist
Papers, estamos instalados, não se podendo omitir, no caso brasileiro, a
criação do seu Estado pelo herdeiro de uma dinastia europeia.
A metafísica rústica dos
ideólogos do trumpismo, como o célebre personagem de Voltaire, ignora a
sociologia do risco, tão bem estudada pelo sociólogo Ulrich Beck, na crença
ingênua de que tudo no mundo se encaminha no sentido da sua melhor solução.
Nosso planeta não conheceria uma crise ambiental, em que pesem os alarmes emitidos
pela comunidade dos cientistas, inclusive da Nasa, uma agência americana de
indiscutida legitimidade científica, acerca dos dados que se acumulam sobre os
perigos do aquecimento global. A crer no que enuncia uma parte dos nossos
futuros governantes, o desmatamento da Amazônia em nome de uma política
expansiva das fronteiras do nosso capitalismo para o agronegócio e a mineração
não importaria em riscos e sua denúncia não passaria de fabulações de
intelectuais desavisados.
Não se deve chorar o leite derramado.
O lado vencedor na sucessão presidencial foi esse que aí está. A oposição a ele
não tem por que se precipitar. O mundo gira e a Lusitana roda. Por quanto tempo
ainda haverá Donald Trump? E os militares, mais uma vez no proscênio, terão
perdido a memória de suas grandes personalidades do passado, dos que lutaram em
torno da bandeira do petróleo é nosso, do marechal Rondon, dos pracinhas que em
campos de guerra na Itália enfrentaram com bravura o fascismo, das virtudes sem
mácula do marechal Lott? E os seres subalternos, até quando suportarão o
capitalismo sans phrase, em bruto e sem amortecedores, que ameaça vir por aí?
Os brasileiros não vão se
despedir de si, apenas dizem um até breve.
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(*) Originalmente publicado em
O Estado de São Paulo, 2 de dezembro de 2018.
(**) Sociólogo PUC-Rio
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