Abaixo o belo, dramático e
lúcido texto de Marco Aurélio sobre a COVID19. Ele acusa a necessidade de se
criar “uma alavanca que faça a roda reformadora girar”. Ela ainda não existe. Mas, não só no Brasil como no mundo, seus germens estão na solidariedade entre os vizinhos, nas músicas que estão
sendo criadas, na entrega do pessoal médico e para-médico, no esforço para
ampliar o “fique em casa’, no empenho dos cientistas, em milhares, milhões de
pequenos e grandes atos para vencer este inimigo da vida.
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O vírus, a era global e a oportunidade que se abre*
Marco Aurélio Nogueira**
Abril – 2020
Pandemias já houve muitas na
história. Todas produziram abalos e levaram a grandes transformações. Mas
nenhuma foi como está sendo a do novo coronavírus.
A gripe espanhola (1917-1918),
“a mãe de todas as pandemias”, foi uma variante mutante do vírus Influenza. Os
cálculos sugerem que de 30 a 40% da população mundial foram infectados, com
cerca de 50 milhões de mortes. Só no Brasil morreram 35 mil pessoas. Os números
são imprecisos, mas indicam bem a letalidade da doença.
Antes dela houve a epidemia da
cólera (1817-1824), que matou milhares de pessoas em praticamente todos os
continentes. Causada por uma bactéria intestinal, a doença continua produzindo
estragos pelo mundo, especialmente onde faltam condições básicas de saneamento
básico e higiene.
A “peste negra”, a peste
bubônica, causada por uma bactéria presente em ratos pretos assolou o norte da
Europa e atingiu a China, o Oriente Médio e a Rússia, entre 1347 e 1352.
Calcula-se que provocou mais de 25 milhões de mortes, ou seja, cerca de 1/3 da
população europeia à época.
Depois da gripe espanhola, o
mundo foi periodicamente sacudido por doenças pandêmicas. Quanto mais o mundo
se integrou e manteve acesas as turbinas do produtivismo, mais os problemas se
tornaram comuns a todos. Em 1957 houve a Gripe Asiática (2 milhões de mortos),
dez anos depois a Gripe de Hong Kong (H3N2), que matou 1 milhão de pessoas, em
2009 foi a Gripe Suína (H1N1), que chegou a 187 países e provocou cerca de 300
mil mortes. De 1980 em diante, mais de 20 milhões de pessoas morreram devido a
complicações da AIDS, causada pelo vírus do HIV, transmitido sexualmente. Uma
epidemia trágica, ainda sem cura ou vacina.
Marco Aurélio Nogueira |
O que há de diferente na pandemia
do novo coronavírus?
Primeiro de tudo, ela é a
primeira pandemia de uma época categoricamente global. Coincide com a expansão
dos mercados, a porosidade das fronteiras nacionais, o desenvolvimentismo
produtivista e antiecológico, a alta mobilidade e a circulação intensa das
pessoas. Tudo isso facilita enormemente a que o vírus se espalhe. A própria
estrutura complexa da vida atual, com seus componentes de fragmentação e
individualização, contribui para que tudo reverbere com intensidade e meio fora
de controle. Há risco, insegurança, incertezas, que se integram à experiência
da vida cotidiana e fazem, entre outras coisas, com que todas as decisões se
tornem dilemáticas. Ao mesmo tempo, vamo-nos dando conta do que há de
intolerável e inadmissível no modo como vivemos: a desigualdade, o racismo, a
miséria, a falta de condições dignas de existência, o desperdício, a agressão
ao meio ambiente.
A época também é de crise da
política e da democracia representativa. Isso abre buracos complicados entre os
cidadãos, os legisladores e os governantes, dificultando a que as decisões
tomadas no vértice estatal repercutam positivamente na vida comunitária. Os
cidadãos desconfiam de seus governos e tendem a problematizar tudo o que parte
deles. Recusam-se a obedecer, em nome de suas verdades e da convicção de que os
governantes nada mais são do que “politiqueiros”. Sem uma dose mínima de
“obediência”, uma pandemia como a do COVID torna-se quase impossível de ser
debelada.
Como lembrou Byung-Chul Han,
filósofo coreano que vive em Berlim, uma das vantagens dos asiáticos é que eles
aceitam com facilidade a autoridade do Estado e suas ordens. Estariam mais
predispostos a aceitar um Estado autoritário, que procede por tecnologia da
informação e controles digitais. É um recurso de sobrevivência, mas também pode
ser a porta de entrada de formas ditatoriais e não democráticas de organização
da comunidade política, com controles permanentes sobre tudo e todos.
Em segundo lugar, a pandemia
atual convive com redes e trocas frenéticas de informação. Isso, por um lado, é
excelente, pois facilita a comunicação e a cooperação entre médicos,
pesquisadores e cientistas. Ter dados disponíveis e acessíveis é uma poderosa
ferramenta de conhecimento e gestão. A malha digital e a inteligência artificial
são preciosas seja para monitorar ameaças, seja para debelá-las.
Por outro lado, porém, essa
nova estrutura de informação e comunicação promove a produção incessante e a
disseminação de notícias falsas, boatos e mentiras, que geram confusão e dificultam
a gestão do problema. É o que a OMS chamou de “massivo infodêmico”, algo como
um vírus que espalha desinformação e ideologias regressivas, anticientíficas e
irracionais. No caso concreto do COVID-19, ativistas desse tipo – humanos e
robôs, sistemas programados para disparar mensagens – estão na dianteira do
“negacionismo” obscurantista (recusando-se a reconhecer a pandemia, o
aquecimento global e até a curvatura da Terra) e da pregação de saídas
nacionalistas hostis ao entendimento entre os Estados.
O COVID-19 irrompeu num momento
de exuberância científica, de conhecimento ampliado, de reconhecimento do valor
da ciência e de suas aplicações na área médica e sanitária.
Se os humanos conseguirem
suportar o impacto inicial da doença (o confinamento) e não forem prejudicados
por governantes inescrupulosos, que manipulam politicamente o problema e
duvidam de sua gravidade, é de esperar que o vírus seja controlado. A vida,
porém, não será mais a mesma. A pandemia deixará marcas profundas na
experiência humana individual e coletiva, afetando a economia, o modo como se
trabalha, os relacionamentos, a política.
O sistema produtivo conhecerá
crise profunda, agravando ainda mais o mundo do trabalho, muita coisa nova
surgirá, os desafios serão grandiosos. Será difícil que o neoliberalismo se
reponha e uma nova versão do Estado social baterá às portas. Em meio a dor e
medo, poderá se abrir uma oportunidade para que se comece a pôr em xeque o
desenvolvimentismo produtivista, com sua cegueira ecológica, climática, ambiental,
sua voracidade predatória. Poderá ser um bom momento para que se recupere a
ideia, tão mal aproveitada antes, de “sustentabilidade”.
O problema é que falta uma
alavanca que faça a roda reformadora girar: política democrática, programas de
ação, agentes organizados que unifiquem os cidadãos e pautem os governos. Há um
“vazio” existencial e político que impede a materialização de propostas
democráticas consistentes. Caso não se reverta essa situação, a pandemia
causará um efeito negativo adicional: levará à acomodação dos interesses
dominantes e à reprodução (modificada em maior ou menor grau) do
desenvolvimentismo prevalecente, com sua voracidade destruidora.
Poderá até ser pior. Em vez de
reformas para frente, a pandemia poderá impulsionar o ressurgimento do
“nacionalismo”, das pulsões “patrióticas”, em detrimento dos esforços de
articulação internacional, a imposição do unilateralismo no lugar do
multilateralismo. O que levará de roldão a democracia e parte importante do que
há de humanismo, fraternidade e liberdade na experiência moderna.
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(*) Publicado originariamente em "Revista Será?", 10/04/2020
(**) Cientista político brasileiro, doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo e professor de teoria política na Universidade Estadual Paulista.
Adorei!
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