A volta de Lula à disputa
eleitoral e as recentes pesquisas de intenção de voto expoem a
fragilidade e equívocos das forças de uma “terceira via” que pudesse evitar em
2022 a repetição da polarização das eleições de 2018. Marco Aurélio Nogueira põe o dedo
na ferida, em especial apontando realisticamente a falta de articulação
nacional das forças democráticas e o equívoco de atacarem Lula e o PT ao invés
de forçá-los ao entendimento amplo.
Segue o recente artigo de Marco Aurélio.
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Reinventar, articular, reconstruir*
"Fala-se
em ‘terceira via’ para 2022 como se fosse mágica, mas pouco se faz por ela."
O melhor seria passar um pano
em tudo e começar de novo.
Só que é impossível.
Sociedades, Estados, sistemas políticos, instituições, acumulam pó e sujeira,
mas não podem ser limpos com panos e detergentes comuns. Requerem recursos e
ingredientes que não se encontram no mercado. E que, hoje, nesse Brasil que
está deixando de ser tão brasileiro, fazem uma falta lancinante, que machuca e
faz sofrer.
Marco Aurélio Nogueira |
Com qual economia, para começo
de conversa? Uma pujante, consciente de suas possibilidades, disposta a incluir
o País no sistema de intercâmbios internacionais, capaz de gerar renda e
empregos, de adotar a sustentabilidade como critério estratégico, de aceitar o
Estado como regulador ativo? Ou uma perdulária, sem produtividade, voltada para
si, sem tecnologia incorporada? Uma economia atenta aos imperativos categóricos
do planeta, a começar da agenda climática e ambiental, ou caolha, dedicada à
destruição da natureza, ao desmatamento predatório, à conquista da terra como
bem a ser explorado sem cautela e sem interesse coletivo?
Não temos um projeto para
revitalizar a Federação, equiparar minimamente Estados e municípios, dar a cada
um deles as condições necessárias para progredir. O País está manco, caminha
claudicando.
Não
temos um plano para recuperar os sistemas vitais, a educação, a saúde, a
assistência – a proteção social. Tudo nessas áreas é imperfeito, deixa a
desejar, as carências estão expostas à luz do dia, sem que saibamos como
abordá-las.
Falta-nos um projeto de Estado,
um padrão de governança que tenha estabilidade e produza resultados, que
valorize e blinde as instituições contra aventureiros autoritários, ideólogos
reacionários, redes irresponsáveis, negacionistas contumazes, oportunistas,
corjas de malfeitores que só pensam nas vantagens a obter, que são ignorantes
da sociedade existente. Estamos sentindo na pele as consequências do desvario
que nos acometeu em 2018 e possibilitou a eleição de uma cúpula de estroinas perversos.
É assustador constatar que
estamos assim apesar de possuirmos recursos técnicos, intelectuais, culturais e
políticos para reinventar o Brasil. Vivemos como se dependêssemos de um milagre
celestial, de uma explosão popular ou das conclusões de uma CPI no Senado. Por
que nossos políticos preferem se entregar ao jogo miúdo da pequena política, a
lançar granadas de baixa potência e que não atingem o alvo, optando por
privilegiar seus interesses partidários, regionais, ideológicos, em vez de
oferecer algo consistente à sociedade?
Quero crer que isso se deva a
alguns fatores.
Primeiro, nossos políticos não
têm dimensão intelectual. Não falo de formação escolar ou de diplomas, que
todos os exibem a mancheias. Falo de capacidade de compreender o mundo, a sociedade
em que atuam, os cidadãos que os elegem. Nesse ponto, falta-lhes o fundamental.
Ética pública democrática, domínio da linguagem, generosidade cívica,
comunicação. Em muitos falta também honestidade.
Segundo, os partidos vivem em
crises que se sucedem sem interrupção e os impedem de atuar como entes
coletivos, que saibam disputar o poder sem virar as costas para a sociedade e
com coesão suficiente para que sejam confiáveis para o eleitorado. Ora se
estapeiam em brigas internas fratricidas, ora se arrastam para obter os
apanágios e as prebendas do governo de plantão, ora se entregam aos mandachuvas
de sempre, incapazes de confrontá-los ou ponderar sua imprescindibilidade.
Gostam de polarizações simplificadoras, da posição confortável de repetir mantras
surrados, como se servissem para todo o sempre.
Terceiro, a base do que mais
nos falta: capacidade de articulação nacional e democrática. O provincianismo e
o tribalismo político predominam. Hoje se admite que em 2022 se vai repor a
polarização que nos atazana a vida desde 2018. Fala-se em “terceira via” como
se fosse mágica, mas pouco se faz por ela. Não se reconhece que o polo Lula é
superior em tudo ao polo Bolsonaro e que, portanto, não se deveria bater em
Lula e nos petistas, mas, sim, forçá-los ao entendimento amplo. O PT poderá
voltar ao governo, por que não? Tudo terá de ser processado para que o País
renasça. Por todos, incluídos Lula e o PT. Sem isso será mais do mesmo.
Lula e o PT, afinal, não são os
únicos jogadores e é muito fácil atribuir a eles a responsabilidade pela não
existência do que poderia reconstruir o Brasil e unificar os brasileiros. É
fácil, mas é um equívoco, que somente serve para ocultar a incompetência que
grassa entre os demais jogadores.
LEIA TAMBÉM: Tática e Manobra
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(*) Originalmente publicado em "O Estado de São Paulo", 22 de maio de 2021.
(**) Professor Titular de Teoria
Política da Unesp.
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