Sergio Augusto de Moraes
Outubro de 2017
Como sabemos a revista “Veja” é propriedade de uma empresa
capitalista. Portanto seria ingenuidade esperar que sua ampla cobertura dos 100
anos da Revolução Russa de outubro de 1917 , feita na edição de 11/10/2017,
fizesse um balanço positivo de seu desenvolvimento e do percurso de sua maior
criação, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas(URSS), extinta em 1991.
Dessa cobertura o artigo mais instigante é o de Daniel A.
Reis, historiador conhecido como de esquerda, que conclui com as seguintes
palavras “Esse é o desafio que se coloca para uma eventual reinvenção do
socialismo no século XXI- voltar a associar socialismo a democracia. Só assim
ele terá condições de prosperar como
alternativa”.
Se tomarmos esta tese ao pé da letra estamos de acordo com o
historiador. Mas não avançaremos se não assinalarmos aquilo que está no fundo,
os fatos que impediram ou dificultaram tal associação. No meu entender o mais
importante foi o que esta tese de Marx revela: “...uma organização social nunca
desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz
de conter ; nunca relações de produção novas e superiores se lhe substituem
antes que as condições materiais de existência destas relações se produzam no
próprio seio da velha sociedade” (1).
Ninguém duvida que a Russia de 1917, um dos países mais atrasados da Europa que, como dizia Lenin, conservava tantas instituições antigas incompatíveis até com o capitalismo, estava longe de satisfazer as condições para que se estabelecessem “relações de produção novas e superiores”.Diante das enormes dificuldades, dentre as quais se destaca a derrota da revolução na Alemanha, Lenin então não vê outra saída senão inverter a tese de Marx : “Dizem vocês que para construir o socialismo é necessário civilização. Muito bem. Porém então porque não podíamos criar primeiro tais pré-requisitos de civilização em nosso país, como a expulsão dos latifundiários e capitalistas russos, e depois iniciar o movimento rumo ao socialismo?(Nossa Revolução, 17/01/1923).
Era um caminho extremamente difícil. Mas mesmo assim “ A primeira década após a revolução
foi um “tempo incrível de grande experimento : social, político, econômico,
estrutural. “ Havia muitos liberais e uma aura de pensamento liberal. Naquele
momento, antes de Stalin, nós perdemos uma grande oportunidade de construir
nosso próprio modelo ou alguma forma de democracia que levaria a uma Rússia
menos violenta, menos trágica” diz a jornalista russa Anna Baydakova, do jornal
russo “Novaya Gazeta” conhecido por reportagens investigativas e visão crítica
sobre o governo da Rússia ( citado por Adriana Carranca, no “O Globo” de
22/10/17).
Entretanto em todo o decorrer de seu artigo nosso historiador
acusa o percurso da revolução de 17 de ditatorial, como se isto fosse algo
intrínseco, uma determinação inexorável, para aqueles que ousaram acabar com o
domínio do capital na Rússia de então. Não destaca a tentativa de cerco e
aniquilamento que a reação interna, apoiada pelos exércitos de 14 países
capitalistas, realiza logo após a vitória da revolução obrigando-a a jogar o
melhor do proletariado russo na fogueira da guerra; tampouco, que é depois de
constatar o desaparecimento do proletariado russo, dizimado por estas guerras e
pela fome, que Lenin, com enorme tristeza,
se vê obrigado a reconhecer que a ditatura do Partido Bolchevique era a única alternativa para evitar um retrocesso no
caminho do socialismo.
Lenin morre em 1924 e três anos depois começa a era Stalin. Ele
inicia então a coletivização forçada da terra e um esforço extraordinário para
criar uma base industrial. Para fazer isto e também para garantir seu poder
inicia uma brutal repressão política inclusive contra os bolcheviques que
constituíam o melhor da “velha guarda” leninista, drama retratado em 1956 pelo
Relatório Khruschov.
Nosso historiador não considera que a vitória e o
desenvolvimento da revolução socialista na Rússia era, em si, uma enorme
contribuição à democracia ao dar aos povos do mundo uma prova de que era
possível um país escolher uma via não
capitalista de desenvolvimento. Que poderia ou não ser ditatorial. Para
ficarmos num exemplo mais recente basta lembrar do governo de Salvador Allende,
no Chile, uma tentativa de avançar para o socialismo pela via democrática
sufocada brutalmente pela reação interna, apoiada política e materialmente pelo
governo dos EEUU. Esta intervenção
violenta dos mais poderosos países capitalistas é um outro determinante
do endurecimento ou mesmo do aniquilamento de governos que buscaram a via
socialista.
Mas quase no final de seu artigo Daniel A. Reis revela de
onde vem seu viés negativista ao dizer “Assim, a bipolarização entre
“comunismo” ditatorial e “social-democracia” gestionária marcou profundamente a
história do socialismo no século XX” (pg 95).Não foi bem assim. O que marcou
principalmente a história do socialismo no século XX não foi esta contradição
mas sim a que opôs o sistema socialista e a URSS ao mundo capitalista, desde
seus primórdios.
Um dos exemplos mais gritantes deste fato foi a o esforço de
Hitler para derrotar a URSS. Ele jogou na frente leste, contra este país, dois
terços de seus exércitos e o melhor de
suas tropas. A batalha de Stalingrado está gravada na história como a primeira
grande derrota do nazi-fascismo. A ela seguiram-se outras, como a batalha de
Kursk, considerada como a maior batalha de blindados de todos os tempos e a
maior perda em unidades aéreas em um só dia, quando o Exército Vermelho
derrotou as tropas de Hitler e passou à ofensiva. Foi ou não uma grande contribuição
à democracia no mundo?
Desde sua vitória a revolução foi incansável na luta pela paz.
A luta permanente da URSS pela
coexistência pacífica entre sistemas diferentes visava, além do objetivo de
criar um mundo de paz, garantir uma transição para o pós-capitalismo num
ambiente democrático, sem guerras sangrentas. Mas a resposta do mundo
capitalista foi iniciar e manter a chamada “guerra fria”, uma corrida
armamentista que levou o mundo algumas vezes à beira da hecatombe nuclear.
Afinal , isto significa que enquanto houver capitalismo não
poderá haver uma transição pacífica e democrática para um mundo
pós-capitalista? No nosso entender ela é possível. Mas a experiência da luta
contra o capital indica que pelo menos algumas pré-condições deveriam ser
atendidas: o capitalismo deverá estar numa fase em que se torna um obstáculo
para o desenvolvimento das forças produtivas de maneira sustentável, a
democracia deverá desenvolver formas de controle do mercado e não ser por ele
controlada, a mídia democrática deverá ser poderosa, na sequência do mundo
globalizado pelo capital que conhecemos hoje deverá acontecer a livre
globalização do trabalho, os povos deverão atingir um nível de consciência
capaz de garantir um mundo de paz, o
estado nacional deverá estar reduzido aumentando assim o espaço de gestão de
instituições democráticas mundiais, como a ONU.
Por último, mas nem por isto menos importante, há que
considerar que na avaliação das tentativas de superação do capitalismo as
grandes mídias, hoje ainda controladas pelo capital, divulgam aquilo que lhes
interessa, aquilo que denigre os fatos que marcaram e marcam tais tentativas.
Mas ela não conseguirá esconder a verdade.
Parafraseando Giorgio Ruffolo (2) “o capitalismo tem os séculos
contados”.
________________________
(1) K. Marx, Prefácio à
”Contribuição à Crítica da Economia Política”, Ed. Martins Fontes, 2003, pg. 6
(2) Ruffolo, Giorgio, “Il
capitalismo ha i secoli contati” , Giulio Einaudi ed., Turin,2008,2009.
O texto acima é de muito bom estímulo para a estruturação do pensamento sobre o ainda possível socialismo, no caminho imaginado por Marx. A contribuição de Moares, abre avenidas para a pesquisa do porquê houve a ditadura gerada na URSS e, de certa forma, do porquê ela continua havendo sob o "capitalismo pós-socialista" (rsrs) de Putin.
ResponderExcluirAs condições materiais e culturais do império czarista russo, multissecular, que nunca permitiu a alfabetização de seu povo, libertado da servidão só nas últimas décadas do século XIX, que nunca conheceu democracia social nem política, que, oprimido pelos kulaks, aterrorizado pela alienação religiosa, e pelo "paizinho czar", dificilmente poderia gerar liberdade numa situação da grave fome que grassava no país, de maior área mundial, agravada com a ação destrutiva e solapadora do exército branco, aliado à invasão de tropas de 14 potências capitalistas estrangeiras, cujo propósito era destruir os germes de qualquer possibilidade de desenvolvimento de um núcleo não-capitalista de produção, que certamente poderia se converter, como se converteu, em grande alento para as lutas anti-imperialistas das massas em todo o globo.
A epopeia do povo soviético, baluarte da derrota do nazifascismo, torna-se ainda de maior admiração, pois, mesmo submetido a terrível ditadura stalinista, foi capaz de construir um país de extensa base produtiva, que competiu com bom desempenho, com o mais importante polo capitalista do mundo, os USA.
Outrossim, as mais de sete décadas, de 1917-1991, tornou-se o mais formidável laboratório de busca dos materiais e das fontes de como construir uma verdadeira democracia social, que atenda as necessidades materiais e culturais do povo, ao mesmo tempo, que siga no aprofundamento das liberdades do ser humano, sem descurar do alargamento duma civilizada convivência na política local e regional, que requer, hoje, mais que nunca, o respeito mútuo e democrático de abrangência mundial, nas áreas ampliadas, cada vez maiores, do que estão deixando de ser as velhas nações, sem demarcações de fronteiras, o que exige a redução gradativa da já encaminhada redução do poder dos aparelhos de estado.
Só a evolução das massas, alçando-se a categorias de povos altamente educados, têm condições de cumprir com tão elevadas funções. Eis a tarefa de pensar o nosso tempo.
Excelente réplica à tese do historiador. Parabéns!
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