A DEMOCRACIA SOB ATAQUE

Joana Pessoa, Historiadora
Ricardo Pessoa, Bancário Aposentado


“A democracia é a melhor entre todas as formas possíveis de governo, ainda que seja capaz de apresentar problemas de toda espécie, como promessas demais, muitas das quais descumpridas. Existe a corrupção. Mas a democracia é muito valiosa e precisamos reformá-la e protegê-la dela própria. É muito ruim que a maior economia do mundo, que é também a mais antiga democracia moderna, esteja nas mãos de um populista. Na Europa, a direita também está em ascensão. Por trás disso tudo está, infelizmente, a estagnação econômica. As pessoas ficam furiosas. Nesse estado, elas se tornam demagogas”.(Entrevista de Adrian Wooldridge, ‘O Estado inteligente’, Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2017, edição nº 2552)
Na esteira do colapso do Bloco Socialista (representado pela queda do Muro de Berlim em 1989 e pelo fim da União Soviética em dezembro de 1991), assistimos ao fortalecimento do neoliberalismo, consubstanciado no chamado “consenso de Washington”, e cujos principais expoentes foram o presidente Ronald Reagan (1981/1989) e a primeira-ministra Margareth Thatcher (1979/1990).

Nos anos 80 vimos declinar, em grande parte do mundo, a influência da ideologia socializante. Essa tendência pode ser claramente observada no enfraquecimento das políticas voltadas para a criação de um Estado de Bem Estar – decorrente de pacto social-democrata que vigeu em toda Europa desde o fim da II Grande Guerra Mundial -, o que redundou em privatizações, maior competitividade, perda de diversas conquistas sociais e estímulos ao livre mercado.

Já com a crise de 2007/8 é o neoliberalismo que entra em xeque, apresentado um quadro de permanente turbulência nos mercados financeiros e altas taxas de desemprego, cenário agravado com a crise dos refugiados. É nesse novo contexto que nos deparamos com o crescimento do populismo.


A atual onda de descontentamento com os chamados políticos tradicionais tem revelado forças "antissistema" de cunho nacionalista e anticapitalista: o UKIP no Reino Unido, a Frente Nacional francesa ou o Podemos espanhol exemplificam a tendência. À direita ou à esquerda, tais partidos têm em comum a reafirmação dos chamados estados nacionais e a retórica contrária ao mercado financeiro e à globalização.

Assim, notícias revelando o crescimento eleitoral de posições extremadas nos assombram cada dia mais e nos põem diante de "um museu de grandes novidades". A ascensão de Donald Trump à Casa Branca, o Brexit e a vitória dos votos antiestablishment, anti-imigrantes e anti-União Europeia na Hungria e na Polônia. Além das expressivas votações recebidas por Marine Le Pen (Frente Nacional), Jean-Luc Mélenchon (França Insubmissa), Geert Wilders (Partido para a Liberdade, dos Países Baixos) e por Nobert Hofen (Partido da Liberdade da Áustria), que, nas eleições realizadas em outubro de 2017, conquistou 62% das Cadeiras do Parlamento juntamente com o centro-direitista Partido do Povo Austríaco de Sebastian Kurtz (centrando sua campanha contra a imigração). Finalmente, a entrada do AfD no Parlamento alemão (será a primeira vez, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, que um partido de extrema direita comporá o Bundestag).

É interessante notar que, mesmo na Alemanha, país com a mais forte economia dentro da zona do Euro, o quadro de recrudescimento do populismo favoreceu o fortalecimento da extrema-direita.

O número de votos angariados por esses partidos é diretamente proporcional ao aumento do sentimento de frustração experimentado por setores das sociedades europeia e estadunidense. Desde o fim da Guerra Fria (início dos anos 1990), esse cidadão vivencia as consequências do desmonte do Estado do Bem-Estar social (especialmente na Europa Ocidental) e das novas facetas do processo produtivo (terceirização, transferência dos parques industriais do primeiro para áreas com menores custos de produção, redução da mão-de-obra, etc.). De modo geral, as pessoas entendem que vêm perdendo qualidade de vida, sentem que não há perspectiva de melhora pela via da política "tradicional" (cujos representantes estariam "longe do povo") e que "no passado era melhor".

Essa percepção alimenta e é alimentada pelo populismo, que simplifica as causas históricas para a atual crise e promete soluções de curto prazo. Como resultado, as bandeiras desses movimentos falam em nacionalismo e antiglobalização, sensibilizando largos setores da sociedade. A promessa de Trump de fazer a América grande novamente ou a disposição de Marine Le Pen de rever a participação francesa na união monetária europeia, por exemplo, trazem alento ao americano desempregado ou ao francês para quem o franco, além de lhe proporcionar comprar mais coisas, estaria carregado da identidade de uma França soberana e genuína.

Diante dessa retórica ultradireitista, refugiados e imigrantes (em 2015, a Comissão Europeia anunciou estarmos diante da maior crise migratória desde a Segunda Guerra) serão acusados de trazerem ainda mais desemprego e a degeneração dos valores nacionais tradicionais, além de terrorismo.

O nacionalismo xenófobo e o soberanismo, bem como os discursos islamofóbicos e antieuropeu, ameaçam a democracia. De modo geral, a ultradireita ergue muros, reedita a lógica do nós contra eles e da defesa de uma suposta civilização, remetendo à tradição do nacionalismo romântico e imperialista do século XIX. E, especificamente no caso europeu, o extremismo de direita ameaça a própria União Europeia, projeto costurado a partir do fim da Segunda Guerra, e de tão importante contribuição para "o avanço da paz e a reconciliação, a democracia e os direitos humanos." (Presidente do Comitê do Prêmio Nobel, ao entregar o Nobel da Paz à União Europeia, em 2012).

O fato é que as posições identificadas com o centro político, notadamente os sociais-democratas e socialistas, têm se enfraquecido em toda a Europa, decorrência, em grande medida, das políticas de austeridade que favorecem o fortalecimento das opções populistas. Para se opor às propostas populistas, a grande dificuldade dessas forças tem sido construir um difícil equilíbrio que as distancie das políticas conservadoras sem cair na retórica antissistema.

Merkel e Macron têm diante de si um enorme desafio: promover reformas nas estruturas da União Europeia que aprofundem o processo de unificação e ao, mesmo tempo, desenvolver políticas que neutralizem o crescimento dos movimentos populistas que, justamente, atuam em sentido contrário. Não poderemos ignorar que esses dois líderes, representantes das duas maiores economias da região do Euro, terão a tarefa de reestruturar as bases da União, bastante comprometidas em função do crescimento desses movimentos de ultadireita, populistas e antissistema. Esses esforços também poderão se tornar mais penosos em função de como se dará a evolução da questão Catalã, que poderá trazer maiores dificuldades à economia espanhola e, em último caso, à estabilidade econômica do Bloco como um todo.

Inquestionavelmente, a chamada "globalização" deve ser humanizada, suas possibilidades de negociação, pluralismo e debate, aprofundadas. O populismo está na contramão desse sonho. Um caminho para a superação desses problemas é aumentar a participação popular, em especial da juventude, – fortalecendo a democracia – e garantir a inclusão social para combater a xenofobia e o populismo de extrema-direita ou de esquerda.

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