Tem gente a pensar que se o
Butantan e a Fiocruz pudessem produzir 200 milhões de vacinas o povo brasileiro
estaria salvo do Covid-19. Mas muitos cientistas não pensam assim, pois
evidencia-se a amplitude mundial da catástrofe sanitária e socioeconômica da
pandemia do covid-19 e o imperativo de seu enfrentamento na mesma escala
global. E o momento é revelador do despreparo das instituições reguladoras
internacionais já enfraquecidas pela globalização do capitalismo.
O artigo a seguir, assinado por equipe liderada por Joseph Stiglitz e Michael Spence, ambos “prêmios Nobel” de economia, reforça aquela evidência ao apelar à iniciativa dos países desenvolvidos – ainda que a partir de seus próprios interesses - em prol das populações pobres e das regiões subdesenvolvidas.
Denunciam a resistência de “interesses corporativos das economias
avançadas” e de respectivos Governos que “(...) se deixam levar pela miopia”.
Prosseguem os autores: “(...) A ascensão do nacionalismo pandêmico revelou
uma série de deficiências nos regimes internacionais de comércio, investimento
e propriedade intelectual”.
Ao apontar os imensos recursos
financeiros e de conhecimento já disponíveis à sociedade mundial, esta análise dos autores enseja-nos entrever alguns dos limites do capitalismo.
Segue o artigo.
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Ninguém estará a salvo enquanto todos não estiverem*
Joseph Stiglitz/Michael Spence/ Jayati Ghosh**
Abril/2021
Os Estados Unidos esperam se
tornar “independentes” da covid-19 em 4 de julho, seu Dia da Independência, quando
houver vacinas para toda a população adulta. Mas, para muitos países em
desenvolvimento e emergentes, o final da crise ainda está muito distante. Como
mostramos em um relatório para a Comissão para a Transformação Econômica
Mundial do Instituto do Novo Pensamento Econômico (INET), para que seja
possível uma recuperação global rápida é necessário que todos os países possam
se declarar independentes do vírus.
Mas além da tão adiada reforma
desse regime, o mais urgentemente necessário é uma suspensão dos direitos de
propriedade intelectual atribuídos a produtos essenciais para o combate à
covid-19 ou a criação de recursos comuns de patentes (pooling) para seu uso
compartilhado. Muitos países reivindicam estas medidas, mas os interesses
corporativos das economias avançadas opõem resistência, e seus Governos se
deixam levar pela miopia. A ascensão do nacionalismo pandêmico revelou uma
série de deficiências nos regimes internacionais de comércio, investimento e
propriedade intelectual (algo que a comissão do INET analisará em um relatório
posterior).
As economias avançadas,
sobretudo os Estados Unidos, têm agido com determinação para reativar suas
economias e apoiar famílias e empresas vulneráveis. Entenderam (embora
talvez seja uma lição passageira) que, em crises como esta, as medidas de
austeridade são profundamente contraproducentes. Mas os países em
desenvolvimento, em sua maioria, têm grandes dificuldades para obter recursos
que lhes permitam manter os programas de apoio vigentes, por não falar de absorver
os custos adicionais impostos pela pandemia. Os Estados Unidos gastaram cerca
de 25% de seu PIB em medidas de apoio à economia, conseguindo assim limitar a
desaceleração, mas as nações em desenvolvimento só puderam gastar um valor
muito menor.
Nossos cálculos, baseados em
dados do Banco Mundial, mostram que o gasto nos Estados Unidos, da ordem de
17.000 dólares per capita, foi 8.000 vezes maior que nos países menos
desenvolvidos. Além do uso decidido da política fiscal, há três medidas que os
países desenvolvidos podem adotar e que os beneficiarão, além de colaborar com
a recuperação mundial. Em primeiro lugar, impulsionar uma grande emissão de
direitos especiais de saque (DES, na sigla em inglês), o ativo global de
reserva do Fundo Monetário Internacional. O FMI pode emitir de forma imediata
650 bilhões de dólares em DES sem necessidade de aprovação dos legislativos
nacionais. E o efeito expansivo da medida será muito maior se os países ricos
transferirem suas atribuições desproporcionais do DES a outros países com
necessidade de efetivo.
O segundo conjunto de medidas
também envolve o FMI, dada sua influência sobre a política macroeconômica dos
países em desenvolvimento, em particular aqueles que recorrem a ele para
resolver problemas de balança de pagamentos. É animador que o FMI tenha sido um
ativo propulsor da implementação de abundantes e prolongados programas de ajuda
fiscal nos Estados Unidos e na União Européia, e que tenha reconhecido
inclusive a necessidade de aumentar os gastos públicos nos países em
desenvolvimento, apesar da adversidade das condições externas.
Mas, na hora de estipular os
termos dos empréstimos para países com problemas de balança de pagamentos, as
ações do FMI nem sempre coincidem com suas declarações. Uma recente análise da
ONG Oxfam Internacional sobre os programas de ajuda do FMI, incluindo os
vigentes e os recém-encerrados, concluiu que, entre março e setembro de 2020,
76 dos 91 empréstimos negociados pelo Fundo com 81 países incluíam exigências
de cortes nos gastos públicos, o que poderia se traduzir na deterioração dos
sistemas sanitários e previdenciários, congelamento de salários dos
funcionários públicos (incluindo médicos e professores) e redução dos
seguros-desemprego, das licenças por doença e de outros benefícios sociais. A
austeridade (sobretudo em se tratando de cortes nessas áreas essenciais)
não terá nos países em desenvolvimento melhores resultados do que alcançaria
nos desenvolvidos. Além disso, aqueles países poderiam contar com uma maior
margem fiscal se recebessem mais assistência (incluída a já mencionada emissão
dos direitos especiais de saque).
Finalmente, os países
desenvolvidos podem organizar uma resposta integral aos enormes problemas de
dívida que muitas nações enfrentam. Todo dinheiro gasto em pagar dívidas é
dinheiro que não se usa para combater o vírus e reativar a economia. No começo
da pandemia, esperava-se que uma suspensão dos pagamentos de dívida de países
em desenvolvimento e emergentes seria suficiente; porém, mais de um ano já se
passou, e alguns devedores precisam de uma reestruturação integral, em vez dos
típicos emplastros que só servem para gerar as condições para a próxima crise.
Os países credores podem fazer
muito para facilitar essas reestruturações e estimular uma participação mais ativa
do setor privado (que até agora se mostrou bastante resistente a colaborar).
Como salienta o relatório da Comissão, se alguma vez houve um momento para
fazer valer os princípios de força maior e necessidade, esse momento é agora.
Não se pode pedir aos países devedores que paguem o que não podem, sobretudo à
custa de tanto sofrimento.
As políticas aqui descritas
seriam de grande ajuda para os países em desenvolvimento e custariam pouco ou
nada para os países desenvolvidos. A rigor, aliás, o interesse próprio do mundo
desenvolvido exige fazer o possível para ajudar aos países em desenvolvimento e
emergentes, sobretudo quando isso é tão fácil e beneficiaria grande parte da
humanidade. A cúpula política nos países desenvolvidos precisa compreender que
ninguém estará a salvo enquanto todos não estiverem, e que a saúde da economia
global depende de uma forte recuperação em todas as partes.
LEIA TAMBÉM: Os sete segredos de 2020
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(*) Originalmente publicado em El País, 06 de abril de 2021.
(**) Joseph E. Stiglitz é ganhador do prêmio Nobel de Economia, professor da Universidade Columbia (EUA) e membro da Comissão Independente para a Reforma da Fiscalidade Corporativa Internacional; Michael Spence é ganhador do prêmio Nobel de Economia, professor emérito da Universidade Stanford e pesquisador-sênior do Instituto Hoover; e Jayati Ghosh é secretária-executiva do International Development Economics Associates, professora de Economia na Universidade de Massachusetts em Amherst e integrante da Comissão Independente para a Reforma da Fiscalidade Corporativa Internacional; este artigo também é assinado por Rob Johnson, Rohinton Medhora, Dani Rodrik e outros integrantes da Comissão para a Transformação Econômica Mundial do Instituto do Novo Pensamento Econômico.
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