"O presidente constantemente afirma que se todo mundo ficar em casa a economia acaba. O que acaba a economia é pandemia descontrolada. Essa visão distorcida é um efeito de aparente deslocamento (paralaxe) do objeto observado, no caso a realidade, para se adequar à visão do observador - o presidente e seu ministro da (des)economia - e assim desconsiderarem aquela realidade".
Luiz Martins de Melo*
Março- 2021
O Estado de bem-estar social
foi uma enorme inovação política e social introduzida no capitalismo. Se foi o
cálculo econômico, uma maior consciência social ou o fantasma do comunismo que
o fez se tornar a política que viabilizou os trinta anos gloriosos do
capitalismo no pós-segunda guerra mundial é difícil saber. Provavelmente uma
mistura dos três. Essa construção institucional para a vigência de um capitalismo
civilizado é o que ainda confere um padrão de vida confortável nas economias
desenvolvidas. Ela passou a sofrer um forte ataque de uma concepção
liberal-conservadora que fora derrotada no imediato pós-guerra mas que voltara
renovada, no final dos anos setenta e início dos oitenta, renovada com as
vitórias de Reagan e Thatcher nos Estados
Unidos e Reino Unido. Trump e seu filhote Bolsonaro são um subproduto dessa
destruição institucional.
Pandemia no Brasil 2021 |
Skidelsky mostra que a
contrapartida dessa visão de sofrimento e morte está fortemente inserida na
corrente hegemônica da macroeconomia com o conceito de austeridade fiscal.
"Pode-se dizer que a insistência na necessidade de dor de curto prazo (por exemplo, austeridade) em prol do ganho de longo prazo, quando o curto prazo pode durar décadas e o longo prazo pode nunca acontecer, atesta um sadismo intelectual refinado".
A idéia de austeridade fiscal
desconhece que o cidadão, não o indivíduo, é um pagador de impostos em todas as
suas atividades como trabalhador, produtor e consumidor. O Estado de bem-estar social
é um direito seu, não um favor do Estado e um entrave para a realização da sua
máxima satisfação como indivíduo.
A formação econômica e social
do Brasil produziu uma elite que sempre tratou a questão social como um caso de
polícia. A sociedade elitizada e
preconceituosa mantém um enorme desprezo pela vida humana dos outros, desde que
não estejam entre os reconhecidos como seus iguais. Esse preconceito e discriminação
ficaram claros com a enorme penetração do negacionismo na sociedade e a impiedade
pela vida dos cidadãos brasileiros mostrado pelo atual governo e compartilhada
pelos seus seguidores.
Essa visão perversa e canhestra
é uma concepção distorcida da vida social. Não consegue nem enxergar o custo
econômico, o prejuízo na arrecadação de impostos, para ficar na visão deformada
do processo econômico do ministro da (des)economia. Não leva em conta nem o
impacto na atividade produtiva dos mortos e infectados. Quanto custou e custa
ao Estado por ano um cidadão atingido pela Covid-19? As mais de 270 mil mortes
vão reduzir a força de trabalho e diminuir o seu potencial de produzir e pagar
impostos.
O presidente constantemente
afirma que se todo mundo ficar em casa a economia acaba. O que acaba a economia
é pandemia descontrolada. Essa visão distorcida é um efeito de aparente
deslocamento (paralaxe) do objeto observado, no caso a realidade, para se
adequar à visão do observador - o presidente e seu ministro da (des)economia - e assim desconsiderarem aquela realidade.
No primeiro semestre de 2020 a
maioria das previsões para o crescimento da economia apontava para uma queda do
PIB que cairia de 6% a 9%. Caiu 4,1%. O elemento central para essa relativa
melhora foi a pressão da sociedade e o reconhecimento pelo Congresso da
necessidade de um grande gasto público que gerou uma expansão fiscal de 7% do
PIB (R$ 524 bilhões), O auxílio emergencial foi o principal fator para
esse desempenho melhor do que o previsto.
O ministro da (des)economia
antes do final de 2020, naquela sua visão distorcida, já anunciava que a
recuperação era um sucesso garantido, a pandemia estava em queda e não haveria
mais necessidade de expansão fiscal. O país estava pronto para iniciar o
círculo virtuoso (sic) das reformas liberais que trariam a “fada confiança” de
volta e o investimento privado deslancharia e produziria o crescimento
econômico. Faltou combinar com o COVID-19.
Essa visão, em conjunto com o
permanente negacionismo do presidente e o desastre que é a política de saúde
acarretou a completa flexibilização das normas de prevenção e de isolamento
social. Evidentemente a pandemia voltou mais forte. A economia voltou a
desacelerar. O desemprego aumentou. A crise social e política recrudesceu.
Essa visão comum ao presidente e
ao ministro da (des)economia permite que eles assumam uma relação inversa entre
a realidade da pandemia e a da economia. Assim propõem um pacote de expansão
fiscal inferior ao anterior, de menor valor e duração, quando a crise sanitária
está mais grave. E, para não negar o espirito de “Tanatos”, com contrapartidas fiscais.
O ajuste fiscal tem de prevalecer sobre a necessidade da vida. A vida não é um
direito do cidadão. É uma dádiva para aqueles que forem fortes, não tiverem
medo do vírus, e o enfrentarem sem mimimi. Tem que ser macho.
Mas mesmo com essa desconexão
da realidade o Bozo sente alguns golpes que o tiram do sério e o acuam. É
quando a oposição e a sociedade cobram a sua responsabilidade sobre o auxílio
emergencial, a vacinação e as medidas de prevenção social para enfrentar a
pandemia. Isso mostra a sua preguiça e o seu medo. Esse deve ser o centro da política
de enfrentamento ao Bozo e ao seu ministro da (des)economia. Isso é o que está fazendo a sua popularidade
cair. Vai aumentar a frequência dos panelaços.
Isso é o que vai trazer a possibilidade do impedimento.
Ao que parece a sociedade
começa a despertar para a luta mais frontal. A maioria dos governadores se uniu,
alguns bolsonaristas inclusive, para cobrar um plano e maior agilidade na
vacinação. Outros tomaram medidas mais duras de isolamento social.
Essas são as questões centrais
que temos de fortalecer para aumentar a coesão da oposição e isolamento do
Bozo. Mesmo que a política tenha autonomia em relação ao econômico e o social
não podemos cair na tentação de criarmos a nossa própria visão distorcida, deslocada da
realidade (em paralaxe). É legitimo que qualquer partido comece a pensar em
2022. Que tenham a proposta de candidatos próprios. Porém, a prioridade é que se construa uma frente
comum para o enfrentamento da pandemia: auxilio emergencial, até o fim da
pandemia, de R$600,00; vacinação em massa e medidas de prevenção social até que
a vacinação produza os seus efeitos de contenção da pandemia. Essa é a agenda
de “Eros” da vida.
Não é a hora de discutir as
candidaturas. Esse é o campo do Bozo. Ele não é burro. Pode ser ignorante. Mas
sabe manejar os cordéis da política, ainda tem uma forte base de apoio popular,
armou a população e corteja permanentemente as forças de segurança. O Bozo
com sua visão distorcida da realidade e o seu comportamento de quando acuado se
tornar mais agressivo, constitui um enorme risco de retrocesso institucional
com um possível autogolpe.
É essa capacidade de os políticos autoritários falarem apenas para suas bolhas e reforçarem o seu discurso radicalizado, na maioria das vezes sem relação com a realidade, que os tornam perigosos institucionalmente pela constante aposta nos extremos. Essa é tese central do livro “Os engenheiros do caos”[1].
"Por trás do aparente absurdo das fake news e das teorias da conspiração, oculta-se uma lógica bastante sólida. Do ponto de vista dos líderes populistas, as verdades alternativas não são um simples instrumento de propaganda. Contrariamente às informações verdadeiras, elas constituem um formidável vetor de coesão. “Por vários ângulos, o absurdo é uma ferramenta organizacional mais eficaz que a verdade”, escreveu o blogueiro da direita alternativa americana Mencius Moldbug. Qualquer um pode crer na verdade, enquanto acreditar no absurdo é uma real demonstração de lealdade – e que possui um uniforme, e um exército".
Temos que atravessar 2021 com a
proposta de consolidar a visão no imaginário dos brasileiros de que Bolsonaro é
um risco para a vida, para a democracia e para a economia. Para a civilização
brasileira.
__________________________
[1] da Empoli, Giuliano. Os engenheiros do caos (p. 16). Vestígio Editora. Edição do Kindle.
(*) Economista, Doutor em Economia-UFRJ, professor da Graduação e Pós-graduação do IE-UFRJ. Ex- Diretor da FINEP. Artigo originalmente publicado em "Terapia Política", março/2021, https://terapiapolitica.com.br/2021/03/11/sadismo-refinado-do-ajuste-fiscal/; versão revista e atualizada pelo autor para este blog.
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