O sociólogo Luiz Werneck Vianna
(PUC-RJ), em artigo no Estadão - 1/10/2017- analisa o risco de crise
institucional com o seu método de análise da formação histórica da civilização
brasileira.
"(...) a especificidade da civilização brasileira se caracterizava em pôr antagonismos em equilíbrio(...)Aqui, a tradição e o arcaico têm convivido com o moderno e a modernização, e temos sabido tirar proveito dessa ambiguidade para forjar nossa civilização".
"(...) Banir ou suspender a atividade política a pretexto de moralizá-la é nos deixar no vácuo, entregues a um governo de juízes ou a uma recaída num governo militar, e esse é um desastre com que contamos tempo para evitar".
Segue a íntegra.
Um imenso tribunal
Em outros tempos bicudos, não tão
distantes desses que aí estão, celebrado poeta popular lançou a profecia de
que, no andar da carruagem em que nos encontrávamos, iríamos tornar-nos um
imenso Portugal. A predição não se cumpriu. Aliás, Portugal está muito bem, e
as reviravoltas do destino nos conduziram a um lugar de fato maligno,
convertendo-nos num imenso tribunal. Vítimas da nossa própria imprevidência,
testemunhamos sem reagir a lenta degradação do nosso sistema político – salvo
quando o Parlamento introduziu uma cláusula de barreira a fim de evitar uma
malsã proliferação de partidos, a maior parte deles destituída de ideias e de
alma, barrada por uma intervenção de fundo populista por parte do Supremo
Tribunal.
Mas os militares não eram ingênuos
nas coisas da política. Força decisiva na fundação da nossa República,
tornaram-se desde então um poder moderador de fato, tendo acumulado longa
experiência no trato com a nossa complexa realidade social e política – a trágica
intervenção militar em Canudos serviu-lhes de amarga pia batismal e o
tenentismo, nos anos 1920, de um processo de seleção dos seus quadros para o
exercício do poder que lhe viria, parcialmente, com a revolução de 1930 e de
forma plena com o golpe militar em 1964.
Com esse lastro, foram capazes de
estabelecer bases sólidas para o regime autoritário que implantaram e alianças
políticas que reforçassem seu domínio. Nessas alianças se mantiveram os seus
princípios, em particular os que definiam como objetivos nacionais permanentes,
não foram principistas, atentos às consequências e à realidade em torno. Sob
essa orientação fizeram política com as oligarquias que a eles se associaram e
as favoreceram para a realização de tópicos significativos de sua agenda de
modernização capitalista do País – no caso, exemplar o agronegócio – e lhes
assegurarem bases para sua permanência no poder. Com sua atenção à política,
souberam reconhecer a hora da retirada quando seu regime se viu assediado por
irrefreável onda de protestos vindos da sociedade civil e da oposição que lhe
fazia o MDB no Parlamento, admitindo participar da transição que, mais à
frente, nos traria a democracia da Carta de 88, que, por sinal, ora nos cumpre
defender das ameaças que a rondam.
Hoje, mais uma evidência do desamor
da nossa história pelas linhas retas – nascemos tortos, filhos quasímodos da
combinação de uma institucionalidade política modelada nos princípios do
liberalismo com a escravidão –, estamos novamente sob o risco de recair no
domínio de corporações estranhas à política, no caso as das que se originam no
Terceiro Poder, cujo gigantismo entre nós já extrapolou em muito os papéis que
o notável jurista Mauro Cappelletti admitia como legítimo nas democracias
modernas.
Com efeito, a atual invasão do Poder
Judiciário sobre as dimensões da política e das relações sociais não encontra
paralelo em outros casos nacionais. A categórica judicialização da política,
que até há pouco designava uma patologia mansa, no caso brasileiro perdeu
acuidade, pois se vive à beira de um governo de juízes, a pior das tiranias,
visto que dela não há a quem recorrer. Não se trata agora de um juiz intervir
com leituras criativas da lei em casos singulares, uma vez que seu objeto é a
própria História do País que se encontra em tela – o Brasil necessitaria, na
linguagem dos procuradores, secundada por vários magistrados, “ser passado a
limpo”.
Tal operação, que lembra as
malfadadas vassouras de Jânio Quadros, não separa alhos de bugalhos e deixa em
seu rastro um território infértil para a política num país de mais de 200
milhões de habitantes que não pode prescindir dela para enfrentar suas abissais
desigualdades sociais e regionais. Decerto que a chamada Operação Lava Jato tem
produzido efeitos benfazejos e, nesse sentido, precisa ser preservada, desde
que expurgada dos elementos messiânicos que a comprometem e têm caracterizado a
ação de muitos dos seus protagonistas, inebriados pelos aplausos dos incautos e
dos pescadores em águas turvas.
O gênio de Gilberto Freyre já nos
tinha advertido de que a especificidade da civilização brasileira se
caracterizava em pôr antagonismos em equilíbrio, tópica bem estudada por
Ricardo Benzaquen de Araújo em seu belo Guerra e Paz. Aqui, a
tradição e o arcaico têm convivido com o moderno e a modernização, e temos
sabido tirar proveito dessa ambiguidade para forjar nossa civilização. Somos,
pela natureza da nossa formação, compelidos às artes da dialética, e a ética
puritana nunca medrou entre nós, que mantemos parentesco com o barroco – tema
bem desenvolvido por Rubem Barbosa Filho em Tradição e Artifício (B.H,
UFMG, 1998).
Entre nós, equilibrar antagonismos
foi operação que coube à política, cenário bem diverso do caso americano, que,
no celebrado argumento de Tocqueville, reduziu a um mínimo, pela feliz
conformação da sua formação histórica, a intermediação dessa dimensão na vida
social, dado que estaria animada desde sua origem por práticas de
auto-organização. Banir ou suspender a atividade política a pretexto de moralizá-la
é nos deixar no vácuo, entregues a um governo de juízes ou a uma recaída num
governo militar, e esse é um desastre com que contamos tempo para evitar.
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