Alfredo Maciel da Silveira
Novembro/2017
Neste
7 de novembro completaram-se os 100 anos da revolução russa. Teria ela
culminado uma sucessão de abalos políticos ao longo de 1917, explicáveis como
um fenômeno russo isolado?
Na
verdade ela só pode ser compreendida em seu contexto mais amplo. A Rússia de
1917 fora o epicentro da cadeia de terremotos políticos que varreram os países centrais
do capitalismo europeu na virada entre os séculos XIX e XX.
Um
capitalismo que entrara em sua fase monopolista e financeira, de feroz
competição pela disputa de mercados e acesso a fontes de suprimento, o que
culminara com a primeira guerra mundial, traduzida na luta entre países pela
anexação de territórios e submissão de povos. Ao par disso, aquele era um
capitalismo sem controle das crises cíclicas geradoras do desemprego e da
miséria, sem a regulação do trabalho e sem quaisquer mecanismos de proteção
social. E a guerra, propagandeada em nome do "interesse" e do orgulho
nacionais, lançava o povo trabalhador à morte nos campos de batalha, levando à
fome e a destruição de famílias nas cidades e nos campos.
Concomitantemente
desenvolvera-se a organização dos trabalhadores em sindicatos, partidos
social-democratas de base operária e partidos de base camponesa. No caso da
Rússia disseminara-se a inovação dos conselhos de trabalhadores, os sovietes,
de base profissional, comunal, de fábricas, de seções militares, etc. E no
plano do conhecimento social e político a obra de Karl Marx e F. Engels, destacadamente
"O Capital", tornara-se a referência dos estudos e discussões da
intelectualidade revolucionária. Tal é o ambiente europeu ocidental em que toda
uma geração de militantes russos emigrados, refugiados da perseguição tzarista,
gestará organizações russas de vanguarda de múltiplas tendências.
Em
fevereiro de 1917 dá-se o primeiro ato da revolução russa quando, após semanas
de mobilização popular, greves, de desorganização do aparato repressivo, de
adesão dos soldados à revolução, enfim cai o tzarismo. A revolução tem um
caráter democrático e capitalista. Mas a burguesia russa temerosa do
protagonismo e do poder dos trabalhadores organizados através dos sovietes,
alia-se à nobreza e ao latifúndio e constitui rapidamente um governo
provisório. Consequências maiores foram a continuação da guerra com todas as
suas consequências para os trabalhadores e o não atendimento da demanda dos
camponeses pela terra.
Pelo
lado dos partidos revolucionários instala-se a divisão que marcará
profundamente, não só a história da revolução russa, mas o movimento
revolucionário internacional. Já em abril, entra definitivamente em cena a
liderança de Lenin e seu brilhante e combativo grupo de quadros bolcheviques na
revolução. Antevendo o altíssimo risco do avanço alemão na guerra e da
contra-revolução, seja para o proletariado russo num primeiro momento, seja por
consequência para a revolução na Alemanha, Lenin e seus correligionários do
mais alto nível travam feroz batalha dentro de seu próprio partido e perante as
demais correntes, particularmente a menchevique, no sentido de virar a linha
política dos revolucionários, até então enredados entre o compromisso
programático democrático-burguês da revolução e o retrocesso reacionário do
governo provisório. Tratava-se agora de
fazer avançar o protagonismo do proletariado russo em aliança com os camponeses
médios e pobres mediante a transferência do poder aos sovietes, única forma de
negociar a paz e atender ao campesinato já em ação pela tomada das terras. A
gestão da economia - a produção e a
distribuição - mesmo que de imediato não
socialista, passaria necessariamente ao controle do proletariado. Alem das
óbvias questões que o novo programa bolchevique suscitava quanto à sua
viabilidade, dado o conhecido atraso estrutural da economia e das relações
sociais ao longo da vastidão do império russo com mais de 90% de população
camponesa, a situação imediata caracterizava-se pela grande confusão e
desinformação no meio das massas sobre a verdadeira atuação dos partidos muitas
vezes camuflada pelo discurso democrático-revolucionário. E também pelo fato de
que os bolcheviques à altura eram francamente minoritários nos sovietes. Daí se
impunha um longo, tenaz e heroico trabalho pedagógico junto às massas e às suas
lideranças, de modo que, pela sua própria experiência compreendessem a linha a
seguir em seu papel de verdadeiros protagonistas!
A
conclusão lógica e surpreendentemente paradoxal era a de que a vida
"pregara uma peça" em todo o movimento revolucionário socialista
internacional. A sorte da revolução nos países mais avançados do capitalismo
mundial estaria sendo jogada de início ali na Rússia, de um capitalismo tardio
encravado numa sociedade atrasada. Em contrapartida, a sorte da revolução russa
dependeria crucialmente da realização subsequente da revolução, na Alemanha em
primeiro lugar, e sucessivamente nos
demais países capitalistas avançados.
Os
meses seguintes até outubro foram de uma luta encarniçada envolvendo golpes,
manobras e artimanhas entre as forças representantes das classes em luta, indo
desde campanhas acusatórias aos bolcheviques como sendo pró-Alemanha (devido a sua
insistência pela paz, sendo Lenin tachado de "espião"), até o apelo
de Kerensky (chefe do governo provisório) aos bolcheviques armados, já em
agosto, para que defendessem Petersburgo do golpe reacionário do Gen. Kornilov,
como de fato o fizeram com sucesso e consequências políticas decisivas, pela virada
definitiva na correlação de forças a favor dos bolcheviques!
Ao
fim de outubro (7 de novembro em nosso calendário), o poder passou de forma
praticamente pacífica aos sovietes, já sob a liderança do partido bolchevique.
O
ano de 1917 foi um desses casos atordoantes de aceleração do tempo histórico.
Um jogo pesado típico de "guerra de movimento" ou "de
manobras", quando as ações empreendidas pelos sujeitos sociais em luta,
premidos pelo próprio andar do jogo, poderiam ser facilmente confundidas, por
observadores menos argutos, como fruto de decisões voluntaristas de seus
líderes, julgáveis como "errôneas" por esses observadores. Quando
aqueles jogos de então são interpretados por críticos de hoje - claro está aqueles
que Lenin denominaria "contraditores bem intencionados" -
condicionados em sua vivência aos ritmos muito mais lentos, compassados em
décadas, das "guerras de posição", como as que desde então têm
caracterizado o movimento socialista no mundo ocidental, há sempre o risco de
"distorção cognitiva"...
Um
caso emblemático seria o da dissolução da Assembleia Constituinte pelos
bolcheviques em janeiro de 1918. Sob as lentes da democracia representativa e
do sufrágio universal de hoje, teria sido um "golpe" revelador do "viés
autoritário" bolchevique. O fato é que os partidos majoritários na Assembleia
mas minoritários e perdedores nos núcleos detentores do novíssimo poder
soviético de base proletária, simplesmente exigiam a exclusão de Lenin e
Trotski do governo revolucionário cuja vitória só fora possível, e nos dias
seguintes reforçada, pelo apoio popular ao programa de paz com a Alemanha e de terra
aos camponeses. Programa que justamente aqueles perdedores dificultaram
enquanto puderam. Dentre estes os SR - Socialistas Revolucionários, majoritários
na Constituinte e com base social no extenso campesinato e na pequena
burguesia. Mesmo Rosa Luxemburg, insuspeita conselhista e camarada dos
bolcheviques, mas condicionada pelo contexto institucional parlamentar alemão, criticou
a dissolução da Constituinte sem ter devidamente em conta o contexto da luta
pelo poder na Rússia.
O
que sucedeu depois, pela riquíssima bagagem de lições para a contemporaneidade,
mereceria a continuação desta análise, não fosse a limitação aqui auto imposta em
benefício de uma leitura breve. A destacar apenas o fato de que veio a
fracassar a tão esperada revolução na Alemanha e no resto da Europa, deixando
os bolcheviques em condições dificílimas de prosseguir. O que fazer com a
revolução que o proletariado iniciara?
Cabe
então apenas para finalizar, trazer citações justamente de dois ilustres
observadores da época, tendo um deles papel central nos acontecimentos.
"(...)alguns traços fundamentais da nossa revolução têm uma importância não local, não nacional, particular, não apenas russa, mas internacional(...) Naturalmente, seria o maior erro exagerar esta verdade, estendendo-a não só a alguns traços fundamentais da nossa revolução. Seria igualmente errado perder de vista que, depois da vitória da revolução proletária, ainda que apenas num dos países avançados, começará por certo uma mudança brusca, a saber: a Rússia deixará logo depois disto de ser um país modelo, e será outra vez atrasado (no sentido "soviético" e socialista)" (LENIN, A doença infantil do esquerdismo no comunismo, junho, 1920)
"(...)na situação concreta e extraordinariamente original do ponto de vista histórico de 1917, foi fácil à Rússia começar a revolução socialista, mas continuá-la e levá-la a cabo será mais difícil à Rússia do que aos países europeus(...)Tais condições específicas não existem presentemente na Europa Ocidental, e a repetição destas condições ou doutras semelhantes não é nada fácil. Eis porque, diga-se de passagem - entre uma série de outras razões - é mais difícil para a Europa Ocidental do que para nós começar a revolução socialista".(LENIN. A doença infantil do esquerdismo no comunismo. junho, 1920)
"Marx previu o previsível. Não podia prever a guerra europeia, ou, melhor, não podia prever que essa guerra teria a duração e os efeitos que teve. Não podia prever que essa guerra, em três anos de indizíveis sofrimentos, de indizíveis misérias, criaria na Rússia a vontade coletiva popular que criou. Uma vontade de tal porte carece normalmente, para se formar, de um longo processo de infiltrações capilares, de uma longa série de experiências de classe(...)" (GRAMSCI, A. A revolução contra o Capital. Avanti, 24/10/1917)
"(...)Parece-me que Ilitch [Lenin] havia compreendido a necessidade de uma mudança da guerra manobrada, aplicada vitoriosamente no Oriente em 1917, para a guerra de posição, que era a única possível no Ocidente(...) Só que Ilitch não teve tempo de aprofundar sua fórmula [refere-se à fórmula da "frente única"], mesmo considerando que ele só podia aprofundá-la teoricamente(...) No Oriente o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma relação apropriada e, ao oscilar o Estado, podia-se imediatamente reconhecer uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas; em medida diversa de Estado para Estado, é claro, mas exatamente isto exigia um acurado reconhecimento do caráter nacional(...)"( GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere 7 § 16, 1929-1935).
"(...)O líder que hoje pranteamos encontrou uma sociedade em decomposição, uma poeira humana sem ordem nem disciplina, já que em cinco anos de guerra secara a produção que surge de toda a vida social. Tudo foi reorganizado e reconstruído, desde a fábrica até o governo, sob a direção e o controle do proletariado, ou seja, com os meios de uma classe recém-chegada ao governo e à história".(GRAMSCI A. Lenin, líder revolucionário. L'Unitá, 6/11/1924)
Alfredo. Você está intimado a escrever sobre "o que sucedeu depois". Pode pular a Segunda Guerra e se concentrar no mundo pós-comunista globalizado.
ResponderExcluirAhá!! Aqui mesmo no Blog Fernando! Vai na aba "Questões de Fronteira", meu artigo "A Época Histórica - Fim da História?". Valeu a "intimação"! Grande abraço. Alfredo
ExcluirSem dúvida excelente texto. Reparo apenas o detalhe. O uso da palavra revolucionário e vanguarda trazem juízo de valor desnecessário em descrição objetiva da realidade que por si qualifica os atores. E as "lutas" de fevereiro a outubro/novembro que se deram no parlamento e na mobilização do proletariado. Senti falta da fome (escassez) que acometeu as famílias sobretudo diante da guerra. Creio que essa foi a grande sacada de Lenin:aquela não era a guerra da Rússia. Excelente texto complementado por citações de Lenin e Gramsci.
ResponderExcluirOlá Fabio. Vejo que sua leitura foi atenta e crítica. Sobre a "fome" relacionada à guerra está brevemente mencionada lá no terceiro parágrafo. Não entendi bem seu reparo ao uso de palavras como "vanguarda" e "revolucionário". Posso lhe afirmar não ter havido intenção de atribuir qualquer valoração a tais palavras. Aproveito para recomendar a leitura, aqui mesmo no blog, de dois artigos de Sergio Augusto de Moraes focados especialmente nos acontecimentos posteriores a 1917. São eles: "A Revolução Russa de 1917 - erros, acertos e ensinamentos"; e "A "VEJA" e a revolução russa de 1917". São mais facilmente localizáveis na aba "Debate". poderemos conversar mais. Abraços. Alfredo.
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