No rescaldo da tentativa de golpe deste "7 de setembro", Werneck volta uma vez mais às raízes históricas da formação da sociedade brasileira, desta vez tomando como fio condutor as “desventuras e promessas” do liberalismo político, desde as lutas pela independência e o estabelecimento do império. Mostra como o capitalismo no Brasil seguiu um curso iliberal desde os anos 30 com o Estado Novo, “(...)em clara ruptura com suas tradições em que o liberalismo mal ou bem ocupava um papel de fermento nas lutas democráticas.”
Por fim, aponta a Constituição
de 1988 como a referência maior da ampla aliança política necessária a consolidação
das mudanças democráticas:
"O Brasil que aí está é fruto desse processo de modernização autoritária, contra o qual, na esteira de massivas manifestações populares em articulação com amplas alianças políticas, soube triunfar com a promulgação da Carta democrática de 1988. Tal como se constata, esse triunfo não foi pleno, na medida em que uma má política criou condições para uma inesperada vitória eleitoral dos refratários às mudanças democráticas que nosso texto constitucional ampara e viabiliza".
Segue a íntegra do artigo de Werneck.
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Desventuras e promessas do liberalismo brasileiro*
Luiz Werneck Vianna**
Setembro - 2021
Não foi a primeira vez e nem
será a última em que se tentou nos infaustos acontecimentos deste 7 de setembro
fazer a roda da história retroagir a fim de repor o país nos trilhos do
malsinado regime do AI-5, obsessão manifesta do governo que aí está. A
intentona, preparada como um plano de estado-maior a que não faltaram recursos
oficiais e de setores reacionários das elites econômicas, em particular do
agronegócio, tinha em mira jogar por terra a Carta de 88 cujas instituições
obstam os arreganhos absolutistas no exercício do poder presidencial. O sistema
de controle do poder contemplado no texto constitucional, orientado para a
defesa dos direitos políticos e sociais consagrados por ele, demonizado pela
clique no poder como entraves às suas ações liberticidas, deveria ser
derrogado. Ferindo de morte o constitucionalismo democrático, ao Judiciário
caberia apenas agir nos litígios privados na contramão dos processos
civilizatórios emergentes desde a derrota do nazi-fascismo na segunda guerra
mundial.
Luiz Werneck Vianna |
A envergadura do golpe que se
tramava não pode ser subestimada, que não deve ser tratado como um pesadelo
fortuito de uma noite mal dormida. Foi real a parada militar em Brasília – os
militares sabiam o que se seguiria? –, como reais as concentrações de massas da
avenida Paulista e na praia de Copacabana e noutras capitais, como também reais
as vociferações do presidente Bolsonaro em todas elas, cruzando o país a bordo
de aviões oficiais, dardejando ofensas a autoridades judiciárias com o ímpeto
de Donald Trump no frustrado golpe ao Capitólio de 6 de janeiro do ano passado.
Real igualmente o suporte financeiro com que setores das elites econômicas
deram à mobilização de milhares de pessoas que acorreram às ruas em apoio a
Bolsonaro naquela jornada equívoca de 7 de setembro.
Só não
vê quem não quer, o governo que aí está não caiu sobre nós como um raio num dia
de céu azul, suas raízes têm causas remotas a começar da nossa formação como
sociedade e estado-nação. Padecemos dos males da herança maldita do latifúndio
e da escravidão, livramo-nos tardiamente da segunda e ainda coexistimos com a
primeira, a essa altura reciclada em agronegócio com seus personagens elevados
a posições destacadas na economia e na política. O desenlace do nosso processo
de independência política se operou na forma clássica de uma revolução passiva
– seu condutor era o príncipe herdeiro da dinastia reinante na metrópole –
abortando a revolução nacional-libertadora que tomava forma em movimentos como
a Inconfidência Mineira, no de 1817 em Pernambuco e se disseminava pelo
Nordeste, especialmente na Bahia, sob a inspiração de ideais liberais
influentes na revolução americana.
Os efeitos dessa solução
política “por cima” comprometeram no Império a sorte dos liberais com a recusa
do imperador do texto da constituição elaborada pela assembleia constituinte,
de caráter liberal em política, vindo a promulgar de modo autocrático a Carta
de 1824, que outorgava a ele um poder moderador com o qual limitava o papel da
representação e se punha à margem da soberania popular.
Wanderley Guilherme dos Santos,
em um ensaio de 1974 “A práxis liberal no Brasil: propostas para reflexão e
pesquisa”, procede a um inventário crítico do destino desse conceito entre nós.
Descontado o que há de datado nesse estudo, ele captou com precisão as razões
do malogro do nosso liberalismo político a partir de dois momentos de
importância capital na formação do Brasil moderno, o da Abolição e o da
República.
Ambos movimentos são analisados
a partir dos manifestos com que elites políticas da época desencadearam suas
campanhas, o Radical Liberal, de 1869, e o Republicano do ano seguinte.
Persuasivamente, Wanderley sugere que os rumos futuros da sociedade teriam sido
demarcados pelo tipo de orientação neles predominante, enquanto os liberais
radicais, defensores de uma monarquia constitucional postulavam em favor de
reformas de clara adesão ao liberalismo político, inclusive com a abolição do
trabalho escravo, os republicanos, que desejavam o apoio das classes
proprietárias a fim de atingir seus objetivos, se fixaram no tema da mudança de
regime. Tais divergências entre as elites modernizadoras de então teriam
comprometido em boa parte o destino dos ideais liberais debilitando o impulso
original que o animava.
A revolução de 1930 abre um
novo ciclo na política brasileira dominado pela paixão da modernização
econômica e de um Estado dotado de meios eficientes na sua aceleração. É o
tempo da fórmula corporativa e do predomínio da ação estatal como reguladora de
todas as instâncias da vida social, culminando com a criação do Estado Novo e
da Constituição outorgada de 1937. O capitalismo brasileiro deveria seguir um
curso iliberal em clara ruptura com suas tradições em que o liberalismo mal ou
bem ocupava um papel de fermento nas lutas democráticas. O empreendimento
bem-sucedido tanto em economia como no controle social do mundo do trabalho e
da sociedade em geral concedeu permanência, afora os ajustes que se fizeram
necessários ao longo do tempo, às instituições e ao estilo de mando autocrático
do Estado Novo, exemplar no caso do regime militar de 1964 a 1985,
especialmente sob o AI-5, redigido pelo mesmo Francisco Campos, autor do texto
da Carta de 1937.
O Brasil que aí está é fruto
desse processo de modernização autoritária, contra o qual, na esteira de
massivas manifestações populares em articulação com amplas alianças políticas,
soube triunfar com a promulgação da Carta democrática de 1988. Tal como se
constata, esse triunfo não foi pleno, na medida em que uma má política criou
condições para uma inesperada vitória eleitoral dos refratários às mudanças
democráticas que nosso texto constitucional ampara e viabiliza.
A modelagem do governo
Bolsonaro é com todas as letras a do capitalismo iliberal. Nesse sentido, há um
fio vermelho entre ele e a história do nosso autoritarismo político, remota ou
contemporânea, como o Estado Novo e o AI-5, que se opuseram à passagem do
liberalismo político. Derrotá-lo, mais do que abrir caminho para as forças
vivas da sociedade atual, significa passar a limpo as trevas do nosso passado.
LEIA TAMBÉM: Três escudos - analisando o liberalismo econômico no Brasil
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(*) Originalmente publicado no blog Democracia Política e Novo Reformismo, em 19/09/2021
(**)Luiz Werneck
Vianna é sociólogo, PUC-Rio